Reportagens

Vaqueiros gentis criam bois mais sustentáveis

Selo internacional identifica fazendas que usam práticas de redução do sofrimento animal e do impacto da pecuária sobre o meio ambiente.

Camila Frois · Fernando Angeoletto ·
30 de julho de 2014 · 10 anos atrás

A fazenda possui um programa de melhoramento genético que visa aumentar a produtividade por hectare, diminuindo a necessidade de área desmatada. Fotos: Fernando Angeoletto
A fazenda possui um programa de melhoramento genético que visa aumentar a produtividade por hectare, diminuindo a necessidade de área desmatada. Fotos: Fernando Angeoletto

Dos milhares de hectares de florestas postos abaixo na Amazônia brasileira, 75% viraram pasto, em especial no Mato Grosso, estado campeão em produção de carne e também em desmatamento acumulado. Apesar do estigma, há fazendas mato-grossenses buscando melhorar suas práticas, com as Fazendas São Marcelo, que conseguiram o selo da ONG Rainforest Alliance de pecuária sustentável, o que significa muita floresta, animais silvestres protegidos e caubóis gentis.

A preocupação com a expansão das pastagens sobre florestas tropicais motivou a organização a lançar padrões de certificação para fazendas de gado na América do Sul. A organização tem mais de 17 mil membros pelo mundo e lidera a Rede de Agricultura Sustentável, um conjunto de ONGs de países latino-americanos dedicadas a projetos de redução de impacto da agropecuária.

Sabrina Vigillante, diretora de iniciativas estratégicas da Rainforest Alliance, diz que o objetivo é estimular um modelo de produção de carne economicamente viável e compatível com a conservação da biodiversidade local. A aposta é que as fazendas certificadas inspirem o avanço do setor nesta direção.

O desafio para diminuir a pegada da pecuária, porém, não é lá tarefa simples no Brasil, país que tem o segundo maior rebanho bovino do mundo, atrás só da Índia, onde boi não vai para a panela por motivos religiosos.

O topo do ranking tem seus custos. Segundo o relatório “A farra do boi na Amazônia”, do Greenpeace, a cada 18 segundos, no Brasil, em média um hectare de Floresta Amazônica é desmatado e convertido em pasto. A ONU diz que a pecuária mundial gera 20% da emissão dos gases de efeito estufa no mundo. No Brasil, essa taxa sobe para mais de 60%. Além disso, o gado produz metano, um mal inevitável, já que o gás é produto do processo digestivo dos animais ruminantes. Outro ônus é o consumo de água. Para cada 1 kg de carne são necessários 15 mil litros, quantidade cinco vezes maior do que na produção de cereais, de acordo com a FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura).

Apesar dos conhecidos impactos, segundo projeções de janeiro deste ano feitas pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, o aumento do poder aquisitivo dos consumidores brasileiros irá gerar um crescimento de 42,8% na quantidade demandada de carne nos próximos 10 anos.

Para atender essa demanda, as Fazendas São Marcelo saíram na frente. Com unidades em Tangará da Serra e Juruena (Mato Grosso), em 2012, elas foram as primeiras do mundo a conquistar o selo da Rainforest Alliance de pecuária sustentável. Isso significa que oferecem um bife desvinculado do desmatamento ilegal na Amazônia, dos maus tratos de animais e do trabalho informal. Para o Grupo JD, que administra as fazendas, é possível transformar em bons negócios o reconhecimento internacional pela proteção das florestas brasileiras.

“A certificação já fez a diferença para um contrato de venda de 100% da produção das fazendas para o Frigorífico Marfrig, num período em que a disputa pelo mercado estava acirrada”, diz Arnaldo Eijsink, engenheiro agrônomo e diretor-geral da São Marcelo.

Mata ocupa o maior espaço

Nas Fazendas São Marcelo, o gado é criado parte do ano no sistema extensivo (solto no pasto) e, durante as secas, em sistema de confinamento para diminuir o tempo de engorda.
Nas Fazendas São Marcelo, o gado é criado parte do ano no sistema extensivo (solto no pasto) e, durante as secas, em sistema de confinamento para diminuir o tempo de engorda.
“A Sepotuba fica em Tangará da Serra (MT) e preserva 60% da vegetação nativa, o que significa 2.400 hectares de mata densa.”

O gado na fazenda Sepotuba, visitada pelo ((o))eco, é criado em sistema semiextensivo, o que significa ficar solto durante parte do ano e confinado nos meses de seca. A Sepotuba é uma das quatro unidades pertencentes às Fazendas São Marcelo – que abrangem no total 32 mil hectares incluindo áreas de Cerrado e Amazônia. Além de ao todo manterem 60 mil cabeças de gado, essas terras servem de lar para antas, veados-campeiros, macacos bugios, jaguatiricas, onças-pintadas e uma diversidade de aves provindas de comércio ilegal, reintroduzidas na reserva da fazenda depois de passarem por um centro de reabilitação do IBAMA.

Na unidade de Tangará, o horizonte é verde a perder de vista, os voos rasantes de araras e o reflexo de pinho cuiabano em uma represa quase nos fazem esquecer que estamos em uma propriedade que abriga cerca de 30 mil cabeças de gado entre as raças nelore (puro) e angus e hereford (cruzamento).

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A Sepotuba fica em Tangará da Serra (MT) e preserva 60% da vegetação nativa, o que significa 2.400 hectares de mata densa. A Reserva Legal ali é 10 pontos percentuais maior do que os 50% exigidos da propriedade pela lei na época em que ela foi adquirida. Em 2003, parte da fazenda se tornou uma Reserva do Patrimônio Natural (RPPN), a primeira do estado do Mato Grosso. “Hoje, a área é patrimônio da humanidade e jamais poderá ser derrubada”, diz Arnaldo.

Os métodos usados na sua criação de gado reduzem o impacto ambiental, embora a produção não seja orgânica. O gado se alimenta de soja e o milho transgênico, duas culturas controversas da perspectiva ambiental e o pasto é adubado com insumos químicos. Ainda assim, a propriedade mostra que é possível produzir carne de qualidade, cuidar do solo e da água e manter árvores em pé.

Mais do que manter uma porção de vegetação a salvo do motosserra, quem almeja receber o selo Rainforest precisa cumprir 136 critérios diferentes ligados a práticas socioambientais. Entre elas, o rastreamento de todo o gado da fazenda, a recuperação de áreas degradadas no entorno das nascentes, o bem estar dos funcionários com treinamento e salários justos, além da destinação adequada do lixo.

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Caubóis educados

“Quem trata o boi com educação, vê que ele entende o que a gente quer e se faz entender também. Isso deixa o rebanho menos assustado, evita acidentes e torna o trabalho mais leve.”

Com chapéu, lenço no pescoço e calça de couro, rústicos e capazes de dominar os animais no laço, os vaqueiros das fazendas São Marcelo são responsáveis por uma de suas transformações mais emblemáticas: eles tratam o gado com “gentileza”.

De voz tranquila e linguajar simples, o capataz Edmar Cruz explica que o vaqueiro não precisa ser um homem bruto para comandar os rebanhos. “Antes eu achava que trabalhar com o boi era pegar o bicho na unha, gritar, bater. Depois que a gente recebeu um treinamento aqui na fazenda, aos poucos, fui mudando o comportamento”.

Um exemplo de mudança citada por Edmar é o uso de bandeiras para conduzir o gado, no lugar das varas com que se costuma açoitar o boi em fazendas convencionais. “O gado só caminha para onde ele enxerga, então quando você coloca a bandeira ao lado do seu olho, ele naturalmente caminha para frente. Isso evita o uso da violência para conduzir o bicho”, explica Edmar.

A solução simples é símbolo de uma série de condutas mais respeitosas com o animal. Em meio às pastagens extensivas gigantescas, o papel dos vaqueiros é dos mais importantes. É ele que faz o rastreamento do gado (anotar suas informações de origem, peso, saúde), o conduz de uma fazenda para outra, identifica e cuida dos doentes, o protege de atoleiros e ataques de cobras e onças.

A premissa de boa relação com os animais influencia em todas as dinâmicas da propriedade. A sensação ao caminhar pela fazenda é de transitar por uma cidade de bois, com caminhos, estruturas cobertas, represas, tudo para os animais. O curral de touros nelore parece um mar de bois branquinhos. Ainda assim, há vaqueiros capazes de identificar alguns animais e chamá-los pelo nome em meio a milhares de cabeças de gado. Alguns bois têm personalidade mais forte. São mais reativos segundo os funcionários, e é preciso conduzi-los com mais calma.

“Quem trata o boi com educação, vê que ele entende o que a gente quer e se faz entender também. Isso deixa o rebanho menos assustado, evita acidentes e torna o trabalho mais leve”, ressalta Edmar, que recebeu um prêmio do portal Beefpoint de melhor vaqueiro de 2014. De acordo com ele, a regra é clara: gritos, choques e pancadas são vetados.

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Além do ganho ético, os bons tratos aumentam a produtividade e qualidade, explica Mateus Paranhos, zootecnista e um dos principais estudiosos em bem-estar animal do Brasil. Ele é responsável pelo treinamento dos profissionais da Fazenda São Marcelo.

Segundo o pesquisador, que também é professor na Unesp (Universidade Estadual Paulista), o treinamento passou pela adequação de instalações e procedimentos, por exemplo, durante a vacinação, o desmame ou o embarque dos animais nos caminhões. “As novas técnicas reduzem acidentes de trabalho e prejuízos, como hematomas nos bois, animais fraturados ou mortos”, diz.

Arnaldo Eijsink explica que o gado menos estressado, poupado de pancadas, produz uma carne mais sadia e macia, o que aumento o seu valor de mercado. “É o que a gente chama de melhor rendimento por carcaça”, diz.

Mais eficiência, menos desmatamento

O vaqueiro Emar Cruz maneja o tronco que evita o excesso de esforço físico, diminui o  estresse dos animais e os riscos de acidentes na pesagem e vacinação.
O vaqueiro Emar Cruz maneja o tronco que evita o excesso de esforço físico, diminui o estresse dos animais e os riscos de acidentes na pesagem e vacinação.
“A boa nutrição do rebanho reduz o tempo de engorda e, em consequência, a emissão de gás metano.”

Já o gerente técnico da Fazenda, Leone Furlanetto, conta que o investimento em tecnologia é outra estratégia importante para manter o padrão de qualidade e sustentabilidade da fazenda.

“Um exemplo de ferramenta tecnológica que colabora com o bem estar animal é o tronco hidráulico, utilizado no curral para minimizar o uso de força física no manejo”, diz Leone. Quando o boi entra no tronco, a porta se fecha em volta do pescoço, através de um dispositivo que o imobiliza para os procedimentos necessários como vacinação, marcação e pesagem. A imobilização evita acidentes, baques e fraturas nos animais, que costumavam reagir a esses procedimentos.

Outra estratégia de redução de impacto ambiental, segundo Leonardo Mello, agrônomo e gerente de unidade, é o pasto adubado (em parte com composto orgânico produzido com esterco reutilizado do próprio gado da fazenda) e usado em rotação. Isso significa dividir a terra em piquetes, pequenos lotes usados alternadamente. A técnica evita a degradação do solo e permite que o gado se alimente de capim de ponta. “Quando todo gado é criado em grandes áreas não rotacionadas, algumas cabeças podem se alimentar do melhor capim, enquanto outras ficam prejudicadas”, afirma Mello.

A boa nutrição do rebanho reduz o tempo de engorda e, em consequência, a emissão de gás metano. Ao mesmo tempo, aumenta-se a produção de carne por hectare e reduz-se a necessidade de área desmatada.

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Selo e lei se somam

O agrônomo Rodrigo Cascalles é especialista em pecuária na ONG Imaflora, certificadora oficial da Rainforest no Brasil. É a Imaflora que faz a auditoria das fazendas que querem receber o selo de pecuária sustentável. Cascalles explica que “a legislação ambiental brasileira é uma das mais exigentes do mundo, então, quando um proprietário já cumpre a lei, em geral, ele não vai ter grandes problemas para conseguir o selo”.

Entretanto, ele defende que a certificação é importante para agregar valor ao produto final e para estimular uma competição saudável entre os pecuaristas. “Quando os consumidores começarem a priorizar produtos de grupos comprometidos com a sustentabilidade, mais empresas vão se interessar em repensar suas produções”.

O agrônomo Rodrigo Cascalles da ONG Imaflora observa a RPPN da Unidade Sepotubal das Fazendas São Marcelo.
O agrônomo Rodrigo Cascalles da ONG Imaflora observa a RPPN da Unidade Sepotubal das Fazendas São Marcelo.

 

 *Essa reportagem é fruto de um parceria de ((o))eco com a Rainforest Alliance para divulgar práticas de redução de impacto.

 

 

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