O texto a seguir é a continuação da primeira parte do artigo “Epitaph for a Jaguar“, de George Schaller, que narra as aventuras e desventuras do primeiro estudo moderno sobre a onça-pintada, feito em 1978, por Schaller e Peter Crawshaw, na fazenda Acurizal, no Pantanal Matogrossense.
“Uma hora e quinze minutos depois da injeção do anestésico, a onça cambaleou para fora de nosso campo de visão, ainda se recuperando dos efeitos da droga. Embora feliz com o sucesso da captura, eu sentia uma inquietação vaga que se recusava a tomar uma forma consciente no meu pensamento. Alguma coisa não se encaixava: esse animal era muito pesado e suas patas muito grandes para ser a fêmea jovem de Acurizal que vínhamos seguindo há meses. E onde estava a mãe?
Uns dias mais tarde nossa cozinheira nos contou que, em conversa com a esposa de um dos peões da fazenda, ficara sabendo que uma onça tinha sido morta em Acurizal no mês anterior. A morte de mesmo um animal seriamente afetaria a já reduzida população, e ficamos preocupados não apenas pelos animais, mas também pelo nosso projeto.
Procurando mais informações, Peter e eu fomos falar com Cláudio, um empregado que havia mostrado interesse em nosso estudo, trazendo pequenos animais para a nossa coleção científica e nos repassando informações sobre pegadas que ele encontrava. Perguntamos sobre a onça morta. Montado em sua mula, ele olhou por cima de nossas cabeças para as montanhas distantes e disse “Não sei de nada, eu não estava com a comitiva”.
Fomos então falar com João, um peão com as feições largas e agradáveis de um índio boliviano. Seus olhos se desviaram dos nossos quando nós o questionamos. “Em alguns assuntos, eu tenho apenas que obedecer a ordens”, ele falou suavemente e virou as costas.
“‘Sim, eu matei a onça. Não tenho nada a esconder. Eu não tinha falado nada antes porque vocês não haviam me perguntado’.”
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Felix, um posseiro de barbas longas e emaranhadas, sustentava uma família com doze pessoas plantando mandioca, bananas e outros produtos. “Não sei de nada”, ele falou, abrindo bem os braços, fingindo ignorância. “Eu caço alguns veados, queixadas e tatus. Nunca onças. Eu digo só o que sei”.
Incapazes de quebrar a conspiração de silêncio, fomos até o barracão de Filinho, um empreiteiro de cercas. Uma matilha de vira-latas com as costelas aparecendo anunciou a nossa aproximação, latindo freneticamente. Filinho nos escutou e seus olhos não tinham sinal de arrependimento quando ele francamente admitiu, “Sim, eu matei a onça. Não tenho nada a esconder. Eu não tinha falado nada antes porque vocês não haviam me perguntado”. Ele disse ainda que Geraldo, administrador da fazenda que cuidava ocasionalmente dos interesses da fazenda em nome do proprietário ausente, havia dado ordens para matar as onças. Na opinião de Geraldo, gado e onças não podem coexistir. “Existe um ditado no Brasil”, ele nos disse uma vez: “Não se pode assobiar e chupar cana ao mesmo tempo”.
Em um final de tarde, Filinho havia surpreendido a fêmea adulta na carcaça de um bezerro e a matou com um tiro de 22. Ele vendeu a sua pele para um mascate, dono de uma das lanchas comerciais que vendem e compram produtos ao longo do rio Paraguai. O couro de uma onça vende por mais ou menos 100 dólares; o de uma jaguatirica, por 50 dólares; o de uma lontra, por 30 dólares; e o de um jacaré, por 3 dólares. (Nota do tradutor: esses preços são de 1978 e não refletem a inflação em dólar até hoje).
No Pantanal, há proteção legal protegendo a fauna, mas pouca fiscalização para fazer cumprir a legislação, e caçadores ilegais operam livremente, com impunidade. Em São Matias, na Bolívia, próximo à divisa com o Brasil, um homem chamado Otis Paraguaio opera um curtume para processar as peles de animais caçados no Pantanal. Alfredo dos Santos e seus dois filhos viajam abertamente pelo rio Paraguai em um barco, a partir do qual caçadores em canoas penetram as áreas alagadas e retornam carregados com couros. Além deles, há vários outros intermediários cujos nomes são também conhecidos.
Uma patrulha militar uma vez apreendeu Alfredo dos Santos com o barco carregado de peles e o entregaram às autoridades civis. Poucos dias depois ele estava novamente em liberdade, todas as acusações retiradas. Quando questionado, o oficial responsável respondeu, “Eu não quero ser um herói morto”. As leis da fronteira operam nas terras pouco povoadas do Pantanal; piranhas são competentes em fazer desaparecer cadáveres.
Quando nós esclarecemos ao Filinho que ele poderia ser preso por ter matado uma onça, mesmo se autorizado pelo Geraldo, ele respondeu de forma natural: “Bom, se eu for para a cadeia, um dia eu vou sair e vou voltar. Aí eu posso esquecer que tenho crianças e posso atirar no Geraldo”.
No meio de uma noite, um dos peões, de nome José, veio até a sede onde nós morávamos. Primeiro ele pediu álcool etílico, usado localmente para beber puro ou misturado com leite e açúcar. Depois ele pediu desculpas pelo horário, dizendo que ele tinha medo de ser visto conosco, especialmente pelo capataz Aníbal. Este tinha a aparência de abutre e uma personalidade correspondente; todos os moradores locais o detestavam.
José nos informou então que não apenas uma, mas duas onças tinham sido mortas. João, José e Aníbal haviam encontrado a fêmea jovem – também, como a mãe, em uma carcaça de bezerro. Relutante em abandonar a sua presa, ela não fugiu e foi morta a tiros. Segundo ele, Aníbal havia cortado a língua do animal, a qual quando comida é atribuído o poder para curar reumatismo e outras doenças, e escondeu a pele em sua casa.
Assim, como eu havia suspeitado, a fêmea com colar era nova na fazenda, um animal subadulto que provavelmente havia deixado sua área natal e se estabelecido em Acurizal recentemente. A mãe e a sua filha estavam mortas.
“‘É impossível matar todas as onças’, um fazendeiro me disse uma vez, presunçosamente. ‘Alguns animais nunca serão pegos nos pombeiros’.”
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Assim como Acurizal, muitas fazendas na região haviam matado duas ou três onças em tempos recentes. Em Bela Vista, cinco haviam sido mortas em 1974. Quatro anos depois, a população ainda não havia se recuperado; apenas quatro indivíduos permaneciam em uma área de 94 km². Um caçador matou 37 onças-pintadas em uma fazenda durante um período de 12 anos, e outro, 68 em outra fazenda, em 8 anos.
Empregados rotineiramente matam onças, caçadores profissionais trazem clientes estrangeiros em caçadas ilegais, e caçadores comerciais de peles são responsáveis por um número desconhecido de mortes. Ainda há quem tente imitar Sasha Siemel, um caçador que, com uma carabina ou com uma zagaia matou mais de duzentas onças no Pantanal entre os anos de 1920 e 1930. “É impossível matar todas as onças”, um fazendeiro me disse uma vez, presunçosamente. “Alguns animais nunca serão pegos nos pombeiros”.
Eu poderia ter dito para ele que palavras ignorantes como aquelas foram provavelmente ditas também para a pomba-passageira, dos Estados Unidos, e para o quagga, um equídeo aparentado com as zebras, da África do Sul, que costumavam ser muito numerosos, mas foram extintos em tempos recentes pelo Homem. Mas eu apenas enfatizei que a onça já foi extinta ou drasticamente reduzida em grandes partes do Pantanal, em grande parte pela perseguição movida pelos fazendeiros nos últimos 25 anos. Nenhuma espécie em que a fêmea tem, em média, apenas um filhote a cada dois anos pode suportar tal pressão. A menos que essa atitude local mude, somente com um grande parque nacional se poderá salvar a espécie no Pantanal.
A razão ostensiva para se eliminar as onças é por elas atacarem o gado. De fato, elas realmente atacam, embora elas sejam responsáveis por apenas uma percentagem muito pequena do gado que morre anualmente. Em um município do Pantanal, o número de cabeças de gado foi reduzido de aproximadamente 700 mil para 180 mil em seis anos, por uma combinação de doenças, enchentes e falta de pasto, depois que enchentes severas submergiram as pastagens por meses a fio. Por resultado de manejo deficiente do gado em muitas fazendas, apenas uma vaca em cada quatro ou cinco consegue criar um bezerro.
Enquanto trabalhávamos na fazenda Bela Vista, nós capturamos uma fêmea adulta de onça-pintada e a monitoramos por dois meses e meio, até que o seu colar parou de funcionar. Nós tivemos contato com ela por 35 dias. Durante esse período, ela predou apenas um bezerro, uma taxa equivalente a doze cabeças de gado por ano – uma percentagem baixa, principalmente considerando que parte do gado abatido é selvagem ou feral ou teria morrido de outras causas.
Essa fêmea em Bela Vista também revelou fatos interessantes sobre movimentos das onças. Mantendo contato ininterrupto com ela, dia e noite, descobrimos que esse felino supostamente noturno frequentemente andava pela floresta em pleno dia, embora ela geralmente estivesse mais ativa logo depois do entardecer e antes do amanhecer. Ela permanecia inativa, provavelmente dormindo, por cerca de 8 das 24 horas do dia. A distância diária percorrida variou de 2 a 12 quilômetros. Algumas vezes ela permanecia por vários dias em uma área pequena, principalmente se tivesse ali uma presa. Em outras ocasiões, ela ia rapidamente para algum lugar distante, como se tivesse um compromisso a cumprir.
Eu gostava de monitorar essa fêmea à noite, sozinho exceto pelo sinal de rádio que me ligava por uma centena de metros a ela, a floresta silenciosa e imóvel sob um fiapo de lua. Escutando os sons noturnos, procurando por substância em cada sombra, eu me enchia não apenas de suspense, mas também de uma sensação de plenitude.
Nós seguíamos a fêmea de Acurizal também, mas eu o fazia mais como uma obrigação, sem alegria, tentando coletar informações sobre o tamanho de seu território. Nós sabíamos que com os dois outros animais mortos, logo teríamos que procurar outra área de estudo. Ainda assim, essa fêmea nos proporcionou raros momentos de prazer.
“Escutando os sons noturnos, procurando por substância em cada sombra, eu me enchia não apenas de suspense, mas também de uma sensação de plenitude.”
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Uma vez, pouco depois do meio-dia, Peter pegou o sinal dela quando ela se deslocava por uma mata de galeria. Nós a seguíamos discretamente, nunca perto o suficiente para poder vê-la; apenas a antena direcional no receptor nos indicava os seus movimentos. Ela saiu da sombra fresca da floresta e mergulhou na claridade ofuscante do sol em pequenos morros rochosos com vegetação esparsa de árvores baixas e tortuosas. Ela manteve um passo constante, de repente dando uma guinada e voltando em nossa direção, o sinal aumentando de volume até que Peter falou “Eu posso ouvir o sinal sem o auxílio da antena”.
A uns 100 m de distancia ela parou em uma ravina entre duas colinas e, conforme descobrimos mais tarde, descansou perto de uma pequena poça. Ali ela permaneceu por todo o calor implacável da tarde, e ainda estava ali, o sinal plácido e constante, quando os chamados melancólicos de um jaó anunciaram a chegada da noite. Nós continuamos ali, a onça, Peter e eu, juntos na escuridão. Eu fiz uma cama de capim seco e dormi por um tempo, deixando Peter para escutar o sinal a intervalos de trinta minutos. Exceto por breves períodos de atividade, a onça dormiu também, não mostrando nenhum movimento durante a noite. Com as primeiras vocalizações roucas de um grupo de bugios no amanhecer, ela se deslocou rapidamente ao longo do vale, seu sinal ficando cada vez mais fraco até que as matas a levaram.
A nosso pedido, um agente de fiscalização visitou Acurizal para investigar a morte das onças. Ele também confiscou a pele da onça que Anibal havia escondido em sua casa. Agora, pela primeira vez, eu finalmente a encontrava – a fêmea jovem que em vida me havia eludido. O couro com sua beleza triste, os olhos vazios, o furo da bala – eu não queria guardar essa lembrança. Era esse animal realmente parte do passado? Entre certas tribos amazônicas, a onça-pintada representa o sol, um ser imortal que desde a aurora da vida tem sido o protetor de toda a vida, incluindo a do Homem, e quando morre, sobe de volta ao céu para reiniciar mais uma vez o círculo cósmico do renascimento.”
“E assim, nas palavras tristes e amarguradas do George, mas segurando-se em uma esperança no futuro, foi encerrada a primeira etapa do projeto pioneiro de estudo das onças-pintadas no Pantanal. Em agosto de 1978, George e eu saímos de Acurizal, ele voltando temporariamente para os EUA, e eu para São Paulo, para esperar o nascimento de minha segunda filha, Beatriz. Em julho, enquanto ainda na fazenda, no período mais negro do projeto, nós havíamos recebido a visita de um médico brasileiro-suiço, Dr. Jorge Schweizer, com o qual ele já estava se correspondendo. Inteirado da situação insustentável em Acurizal, ele nos levou em seu avião Cessna até Poconé e Cuiabá, para conversar com fazendeiros e com autoridades do IBDF, para decidir novos rumos para o projeto. Através de negociações entre o IBDF e a Secretaria de Agricultura do Estado de Mato Grosso, ficou decidido que até a definição de uma nova área de pesquisa para continuar o estudo das onças, ficaríamos temporariamente estabelecidos no Parque de Exposições Cidade Rosa, a 11 km de Poconé, cuja infraestrutura, com várias casas, à época se encontrava ociosa. Pomposamente, mudamos o nome do lugar para CEPEFAUNA -Centro de Pesquisas da Fauna do Pantanal Mato-grossense. George e eu combinamos concentrar nossos esforços no estudo de algumas das principais presas da onça, principalmente a capivara e o jacaré, ao longo da rodovia Transpantaneira, então ainda em processo de implantação, entre Poconé e Porto Jofre.
Na próxima matéria, aproveitando ainda textos traduzidos de artigos publicados originalmente em inglês, aproveitarei para reproduzir uma matéria que teve uma repercussão considerável quando publicada em 1986. O artigo, escrito por mim, contava a retomada do projeto das onças, já em sua nova fase, no sul do Pantanal, e do uso de um avião ultraleve no monitoramento das onças aparelhadas com rádio-colares, em uma experiência pioneira, com tecnologias de ponta da época, no estudo desses felinos”.
Continua no próximo post…
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