O biogeógrafo argentino Adrian Monjeau gosta das áreas de fronteira em que o conhecimento científico da biologia e da ecologia esbarram com a necessidade de debates filosóficos e éticos. Sua ciência estuda a distribuição de espécies e ecossistemas através do espaço geográfico e do tempo geológico. Ele sabe que estamos muito aquém das ações necessárias para sustar as extinções causadas pelas ações humanas. Apesar de existirem mais de 100 mil áreas protegidas no mundo, poucas de fato funcionam. Além disso, elas compõem um território fragmentado demais para cumprir o seu papel de proteger as espécies. De uma amostra de 1.500 áreas protegidas que estudou na América do Sul, apenas 8% estão em bom estado de conservação. No entanto, Monjeau é otimista ao acreditar que o ser humano será capaz de incorporar o valor das outras espécies às suas próprias decisões de políticas públicas e criar o que ele chama de uma ética da biosfera. Ele também pensa que esse impulso pode vir de um grupo seleto de algumas centenas de lideres, de grandes empresários a artistas, fora da política tradicional que amarra as decisões ao curto prazo da próxima eleição. Monjeau tem vindo ao Brasil regularmente para participar de um estudo sobre extinção em unidades de conservação e territórios indígenas, em parceria com a equipe de Fernando Fernandez, biólogo da UFRJ e também colunista de O Eco. E foi para esta equipe e para o próprio ((o))eco que ele concedeu a seguinte entrevista.
Fernando Fernandez: Adrian, ano passado você ministrou uma palestra na UFRJ, com um título que despertou muita atenção, que foi “Maten las ballenas” (Matem as baleias). O que você quis dizer com esse título?
Bom, este é um título provocador, mas se trata de uma brincadeira. De maneira alguma quero matar as baleias como o capitão Ahab, de Moby Dick. O título se inspirou numa área protegida na península Valdés, Patagônia, patrimônio natural da humanidade. O avistamento de baleias se tornou o grande protagonista de toda a atividade nessa área, e há também os elefantes e lobos marinhos. Mas a fauna terrestre não tem nenhuma proteção. Todos os turistas e responsáveis pelas áreas protegidas estão hipnotizados pelas baleias, sobretudo com as caudas das baleias. Tirar uma foto de uma cauda de baleia é o objetivo de todo o grande circo que é essa área protegida.
FF: Você acredita então que a grande atração exercida pelas baleias pode trazer pessoas demais para essa unidade de conservação, resultando em prejuízos para a conservação da fauna terrestre?
Exatamente. O avistamento de baleias não produz efeitos positivos para a conservação das outras espécies. O que acontece é mais próximo do contrário. O negócio está crescendo, e há cada vez mais pessoas que não propiciam nenhum benefício para a fauna “não-carismática”. Então propus aos funcionários: — Vocês devem matar as baleias!, no sentido filosófico. Tirar a baleia do centro do discurso da conservação e se preocupar com a conservação de toda a fauna, coisa que não estava acontecendo. O resultado foi desastroso. O fato de que eu estava falando filosoficamente foi mal compreendido. Em filosofia se fala da morte do homem, da morte na natureza, que significa tirar algo do centro, tirar o foco de determinada coisa. Matar as baleias significa tirá-las do protagonismo que possuem, e se preocupar com o resto. Obviamente as pessoas entenderam que Monjeau havia dito que temos que matar as baleias! Minha metáfora saiu do controle e foi um atrativo para os jornais durante semanas. Um desastre absoluto [risos].
FF: Você se formou com Rapoport, um grande biogeógrafo argentino. Você poderia nos falar um pouco sobre a contribuição que a biogeografia poderia dar para a conservação?
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Existem padrões emergentes que operam a um nível geográfico, que podem ser mapeados, e que podem existir em várias escalas. É óbvio que outros ramos da ciência também são importantes, como o estudo de populações, competição, predação e outras interações. Mas, do meu ponto de vista como biogeógrafo, essas interações estão contidas dentro de uma estrutura maior. Há na natureza uma estrutura hierárquica de ecossistemas aninhados uns dentro dos outros, com forças parecidas com as que eram creditadas aos deuses gregos: clima, geologia, geomorfologia, hidrologia, e por debaixo de tudo isso a flora e a fauna. Então, a missão da biogeografia é olhar a “big picture” (o cenário maior), é ver como as espécies interagem com o clima, com a geologia, com a geomorfologia, com a história do planeta, com a história evolutiva. É como alguém que escuta uma sinfonia. Se estamos sentados num auditório, os sons dos instrumentos chegam aos nossos ouvidos se mesclando na harmonia que foi escrita na partitura. Mas se começamos a caminhar pelo palco, passamos a escutar os instrumentos de corda mais altos que os de sopro e assim por diante. Passamos então a escutar uma coisa distinta da que escutamos quando estávamos de longe. Quem escuta a sinfonia de longe, escuta as coisas como elas foram escritas, combinando a totalidade do que cada instrumento está tocando, enquanto quem escuta de perto escuta apenas uma parte da harmonia total. A lição da biogeografia é a mais holística, a mais inclusiva. Ou assim diz um biogeógrafo [risos].
FF: Você trabalhou com um famoso biólogo da conservação, John Terborgh. Ele escreveu o artigo “The big things that rule the world” (As coisas grandes que controlam o mundo), que fala sobre a influência de grandes animais, sobretudo dos predadores de topo, sobre a diversidade. É a ideia de que retirando do sistema um predador de topo, como a onça-pintada ou o puma, você tem perdas de diversidade, pela perda da regulação sobre as espécies mais abaixo.
É a orquestra incompleta.
FF: Claro. Depois você escreveu “Uma ética para as últimas feras”. Então eu queria que você falasse um pouco sobre o lugar dos grandes animais, dos predadores de topo, no nosso mundo atual. Sobre que lugar eles têm e o que nós podemos fazer a respeito.
Sim. Escrevi “Uma ética para as últimas feras”, porque não existe uma ética desenvolvida satisfatoriamente para outras espécies que não a nossa. Talvez para umas poucas, como nossos pets, enquanto as feras são combatidas, baleadas em algum momento pelas suas peles, para obter um troféu, pelo perigo que representam, ou pela ameaça ao gado. Então me ocorreu que os animais que hoje se encontram nas últimas, precisam de um grande salto ético humano, num contexto de uma ética da biosfera. Sem isso, nenhum dos grandes predadores de topo, por exemplo, vai conseguir sobreviver. Estou clamando para que os filósofos trabalhem em uma ética séria e bem fundamentada, para que o homem seja retirado do centro do discurso. A pergunta é: como devemos ser para poder coexistir nesse mundo tão pequeno junto com outras espécies, e junto com as funções dos ecossistemas? É uma pergunta filosófica, mais do que ecológica, porque o problema transcende a capacidade da ecologia. Sou pessimista por um lado, mas otimista por outro…
Eduardo Pegurier: Qual é o lado pessimista e qual o otimista?
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Estou estudando tipos de área protegida na América do Sul, áreas de conservação estrita, de conservação integral, extrativista, territórios indígenas e assim por diante. O resultado pessimista é que das mais de mil e quinhentas áreas protegidas estudadas, só 8% estão em boas condições de “saúde”, digamos. Esses 8% são ilhas muito pequenas e isoladas entre si, insuficientes em termos de superfície e conectividade para salvar da extinção esses grandes animais que agora estão em fragmentos muito pequenos, e necessitariam de pelo menos centenas de milhares de quilômetros quadrados. Essa é a visão pessimista.
EP: Você está falando dos grandes carnívoros?
Grandes carnívoros e grandes herbívoros também. Não existe aí o tal equilíbrio ecológico. O padrão não é de equilíbrio, é de extinção. Eu sou um defensor da conservação integral, mas por mais que acreditemos nela, não conseguiremos implementá-la em velocidade suficiente. Nenhum discurso conservacionista por si só será suficiente para garantir o que devemos conservar. Nem as reservas de conservação estrita, nem reservas indígenas, muito menos as extrativistas. Nenhuma por si só pode garantir o êxito de evitar a extinção e garantir os serviços ecossistêmicos em nível continental. Para piorar, diferentes discursos estão se enfrentando: socioambientalistas enfrentando conservacionistas estritos, aqueles que defendem reservas indígenas enfrentando uma conservação mais convencional, e por aí vai. Então vem a conservação dos grandes animais, que é difícil.
EP: E qual é o lado bom?
A parte otimista é que existe progresso enquanto existe consciência, que temos tecnologia suficiente e ciência e conhecimento suficiente para intervir fortemente nessas áreas protegidas e reflorestar, refaunar e dar assistência às espécies. A refaunação que está sendo feita pelo laboratório do Fernando Fernandez, por exemplo, me parece maravilhosa, uma forma de colocar a conservação no ataque. A conservação costuma estar sempre na defesa, tratando de cuidar dos últimos remanescentes de alguma espécie, mas há cada vez mais lutas, mais gente, mais contaminação, mais emissão de carbono. Então, embora haja mais de 100 mil áreas protegidas no planeta, o processo de extinção continua. Continua porque existem áreas protegidas que são falsas, e muitos discursos, como a sustentabilidade, que são falsos.
EP: Você citou a hostilidade entre os vários grupos: conservacionistas clássicos, grupos que defendem o extrativismo, os que defendem os indígenas. Você vê possibilidade desses grupos se integrarem?
O ideal seria unir todos os interessados nos recursos naturais (conservacionistas, extrativistas, indígenas…) em cima de duas causas principais: evitar a extinção e conservar a funcionalidade dos ecossistemas. Se estivermos de acordo nisso, o resto são matizes. Com minha esposa e filhos, eu preparei uma aquarela que chamei de “A Mandala da Conservação”, onde todas as discrepâncias do mundo conservacionista estão mapeadas ao redor desse núcleo comum. Basicamente elas são: Para quem conservar? Para nós ou pelas espécies por si mesmas? Precisamos trabalhar todos juntos, contrários apenas a um inimigo comum que não tem nenhum interesse em evitar a extinção. Não é porque ele deseja a extinção, mas por que não se importa.
Bernardo Araújo: Vemos muitos casos, principalmente na África, de populações que são manejadas de maneira intensiva, às vezes dentro de territórios privados. Isso tem ajudado, aparentemente, na conservação dessas espécies. Você acha que iniciativas assim poderiam funcionar para a América do Sul? Poderíamos fazer da economia, por assim dizer, uma aliada da Conservação?
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Todo pincel que pinte o mapa de verde é bem-vindo. Então, se a conservação privada funcionar mesmo, então ela é bem-vinda. Temos que estar todos juntos. Nenhum de nós, em separado, alcançaria, mesmo que estejamos a pintar com distintas cores, com distintas forças. O século XXI precisa ser a era da paleta de cores. Não do preto contra o branco ou do vermelho contra o verde, e sim a era da aquarela. Nesse sentido, tenho também uma visão pessimista e outra otimista. Não pensem que eu as compatibilize [risos]. Imagino como seriam os presidentes de duzentos países juntos falando sobre como salvar o mundo. Não resolveriam nada, porque os governos mundiais são muito conservadores, e eles tomam o conjunto de decisões que conduz o planeta ao futuro. Cada presidente teria de estar na mesa de negociação representando seus eleitores. Para isso teria de tomar decisões politicamente corretas para sua porção do mundo, para seu horizonte de três ou quatro anos, manter-se um escravo do consenso. Mas o consenso não necessariamente garante decisões corretas para daqui a mil anos. Tem sido difícil obter do conjunto das nações uma resposta suficientemente ágil para a Conservação. Por outro lado penso que ter presidentes de duzentas grandes corporações mundiais poderia surtir mais efeito, com sua capacidade de captar e gerir recursos, se conseguirmos convencê-los a isso. Também confio nos artistas. Para obter a consciência necessária, os artistas são mais escutados do que os cientistas. Então juntemos duzentos CEOs de empresas e duzentos artistas de destaque. Grandes artistas que possam sair pelo mundo levando uma mensagem muito embasada, dizendo: — Isso é o que falta. Assim é que temos de ser.
Bruno Moraes: Edward Wilson já argumentou que seria possível transformarmos o mundo em um meio-mundo. A ideia se contrapõe ao seu comentário de que temos uns 90% da superfície terrestre direcionados para a economia humana, propondo que poderíamos utilizar apenas 50% dessa área, com os outros 50% constituídos de massivas reservas conectadas entre si. O texto dava o exemplo interessante de um multimilionário que comprou uma área imensa para proteger os ursos norte-americanos. O que você acha desse tipo de iniciativa?
Há um trabalho de Brooks e colaboradores onde aparecem as nove grandes prioridades globais para a Conservação, compilando áreas que diversos especialistas apontaram. Se sobrepusermos todos esses mapas, temos 80% da superfície terrestre. Se cada um conservasse o que quer conservar, teríamos 80%, e não 50% da Terra. Por outro lado, a economia humana já superou a “biocapacidade” terrestre de sustentá-la desde 1975-1978. Agora precisamos de um planeta e outros 30-40% para sustentar a gula gigantesca da crescente economia humana. Portanto estamos longe dos 50%, porque se os conservacionistas juntos reclamam 80%, a economia humana reclama 140% [risos]. Então, o sonho de Wilson é uma utopia. Sobre o “missionário” norte-americano que quer conservar os ursos, há um exemplo notável na América do Sul que é o de Douglas Tompkins, e sua mulher, Kristine, no Chile e na Argentina. Na Patagônia, compraram quatro grandes fazendas, restauraram o ecossistema nativo e então as doaram ao governo para criar o Parque Nacional de Monte León. Quem dera tivéssemos mil Tompkins, ou dois mil Tompkins.
BA: Acho que seria legal que você falasse um pouco sobre a pesquisa que veio desenvolver no Brasil.
Bem, como pesquisador visitante, vou tentar responder a uma pergunta que tem a ver com tudo isso que falamos. A pergunta é: “Quais discursos funcionam e quais discursos não funcionam para evitar a extinção em Áreas Protegidas e territórios indígenas da Mata Atlântica?”. Quero ver onde houve retração de áreas de distribuição das espécies, onde espécies se extinguiram e, sobretudo, o porquê, o quê ocorreu.
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