Desde que a portaria dos peixes ameaçados foi publicada, em dezembro de 2014, houve uma reação do setor pesqueiro para tentar derrubar a norma que estabeleceu proteção integral para 475 peixes ameaçados de extinção. Originalmente, todas as espécies que constavam nesta lista não poderiam ser pescadas quando a portaria entrasse em vigor, agora em junho.
Temendo perdas econômicas, o setor pesqueiro protestou. O Ministério da Pesca cedeu ao apelo e abriu um grupo de trabalho com representantes dos sindicatos dos pescadores para discutir a portaria de número 445 que proíbe a pesca dos peixes ameaçados. No Congresso, o deputado Alceu Moreira (PMDB-RS) e o senador Ronaldo Caiado (DEM-GO) apresentaram decretos legislativos para sustar a norma. Em meio as reações, o Ministério do Meio Ambiente adiou duas vezes a entrada em vigor da portaria, além de estender o prazo e criar regras especiais para peixes com valor comercial.
No meio da briga entre manter e derrubar a portaria, a Justiça Federal foi chamada para decidir. O Ministério do Meio Ambiente ganhou na primeira decisão, mas perdeu na segunda instância. No último dia 11, a Justiça Federal suspendeu a validade da portaria. A decisão do desembargador Jirais Aram Meguerian, ainda preliminar, afirma que o Ministério do Meio Ambiente não deveria ter editado sozinho a norma, sem a colaboração do Ministério da Pesca.
Em resposta à suspensão da portaria, um grupo de ONGs e especialistas lançou um manifesto pela manutenção da portaria 445. O grupo foi liderado pela Oceana, ONG internacional voltada para à conservação de oceanos.
Na semana passada, ((o))eco conversou com Mônica Brick Peres, ex-gerente de Biodiversidade Aquática e Recursos Pesqueiros do Ministério do Meio Ambiente e atual diretora geral da OCEANA no Brasil. Para a oceanógrafa, a portaria só evidenciou um problema maior que assola o país, a falta de manejo de pesca.
((o))eco: Por que o manifesto contra a portaria 445?
O que estamos discutindo é que todas essas tentativas de derrubar a [portaria] 445 não deixam de ser o resultado da falta de informação, da falta de divulgação e da forma como a 445 foi publicada: sem discussão, sem consulta. Todas as portarias vieram como uma surpresa. Elas foram descobertas no Diário Oficial. E eu acho que toda a sociedade, os pescadores, os sindicatos, se sentem lesados de alguma forma. Todas as iniciativas de derrubar a norma são reflexo da insegurança que isso gerou. Mas a gente entende que é papel e responsabilidade do Ministério do Meio Ambiente publicar as listas [de espécies ameaçadas] e elaborar as políticas de conservação e proteção dessas espécies.
((o))eco: Qual é a solução?
O que é importante como mensagem é que derrubar a 445 não vai resolver o problema. Por que? a 445 só trouxe à tona, ela não é o problema, a 445 trouxe ao conhecimento de todas as pessoas comuns a situação, a falta de gestão, a falta de coleta de dados e a falta de manejo da pesca. Então, sustar, derrubar a 445 não vai resolver o problema.
E a gente sabe que a pesca pode ser uma atividade com baixo impacto se ela tiver um manejo adequado. Para isso a gente precisa de informação. Hoje a gente não tem informação e não tem manejo.
((o))eco: Que tipo de informação?
A gente precisa saber o que é desembarcado. Tudo de peixe, tudo de pescado, que chega no mar e que desembarca na terra, essa é a informação mais fácil de ser coletada e é o mínimo que a gente precisa para manejar uma pesca, mas a gente precisa mais do que isso.
A gente precisa saber o que é capturado, onde, quando e o que é posto fora. Porque quando se sabe o que está sendo posto fora, onde e quando, se consegue evitar que todas essas espécies sejam capturadas, mortas e devolvidas mortas no mar.
Precisamos garantir que o que se tira do mar é uma quantidade que a população consegue repor biologicamente. Temos também que minimizar a captura acidental de espécies que não têm uso e que serão descartadas depois de mortas. O descarte de espécie indesejável é um impacto que só se conhece quando se monitora a pesca. E sem monitoramento não existe essa informação. E, por último, precisamos proteger áreas especialmente sensíveis ou durante épocas específicas do ano. Área de berçários, áreas de ação reprodutiva. Se a gente fizer essas coisas, é possível pescar com um impacto baixo e portanto, é possível pescar e continuar pescando, alimentando as pessoas, gerando empregos.
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Desde 2008 não tem estatística pesqueira, a gente não tem observador de bordo, a gente não tem mapa de bordo, a gente não tem informação nenhuma. Para se ter uma ideia, a gente não sabe quantos barcos tem no Brasil pescando. Então a situação é grave porque está largada. Todo mundo sai, pesca e traz o que pode e o que não pode.
((o))eco: Quem faz esse monitoramento é o Ministério da Pesca?
Sim, quem tem a atribuição do monitoramento e do controle da atividade pesqueira e orçamento para isso é o Ministério da Pesca.
((o))eco: Eles têm alguma explicação por terem parado de produzir estas estatísticas?
Olha, eu desconheço. Eu sei que desde que o Ministério da Pesca foi criado [em 2009] não temos [estatísticas].
((o))eco: Então o último monitoramento foi feito quando ainda era secretaria do Ministério do Meio Ambiente?
Quando era do Ibama. Existem estados que tem suas estatísticas, não é? Existe controle de desembarque em alguns estados hoje, com convênio com o MPA [Ministério da Pesca e Aquicultura], mas não existe uma estatística nacional. Ou seja, são pontos. São Paulo faz estatística de pesca desde sempre. É a melhor estatística que temos no país. Mas é o único estado que sempre teve e continua tendo monitoramento dos desembarque.
O Rio de janeiro teve por um períodos, o Rio Grande do Sul tinha, mas parou de fazer há um tempo. Ou seja, quando eu digo que não tem, isso significa que não tem um programa nacional de monitoramento da pesca que precisa ter.
Eu assisti uma palestra com Daniel Pauly [especialista que estuda o impacto da pesca nos ecossistemas marinhos] há algumas semanas atrás e ele apresentou o projeto dele de reconstrução de captura mundial. Ele trabalha há 15 anos coletando dados, informações e fazendo estimativa de quanto sai peixe do mar no mundo inteiro e ele falou, “ah, chegamos a uma série de conclusões mas o único país que não tem mesmo dado é o Brasil”.
((o))eco: Como a senhora entendeu esse movimento do MMA de fazer duas portarias adiando a entrada em vigor da 445 e dando brecha para espécies com valor comercial?
Eu acho que precisava de um prazo mesmo para haver uma discussão e uma organização. Mas é preocupante o fato de que essas prorrogações estão sendo feitas sem nenhuma medida emergencial de proteção dessas espécies.
Eu sempre disse que até não precisava proibir imediatamente tudo, mas precisava começar a monitorar para gente começar a ter informação, para gente começar a fazer manejo dessas espécies e identificar quais as espécies estão mesmo piores e para determinar onde a gente precisa organizar a pesca.
((o))eco: O que significa ordenamento pesqueiro?
Ordenamento pesqueiro é manejar o uso, ou seja, é retirar do mar a quantidade certa da forma correta cujo impacto seja o mínimo possível, para o ecossistema e para as populações.
Assim como na retirada de madeira, como retirada de qualquer tipo de recurso natural vivo, é preciso tirar uma quantidade que aquela população consiga repor.
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Determinado tipo de pesca gera muito impacto, dependendo do aparato que se vai usar. Se o individuo vai pescar uma espécie com anzol, com uma rede de espera ou com arrasto de fundo, o impacto será diferente para cada ferramenta que ele escolher usar. Um exemplo teórico: Se você vai pescar uma espécie com anzol, você vai pescar exatamente a espécie que quer, com a isca que quer, do tamanho que quiser. Agora, se você escolhe usar uma rede de espera, você certamente pegará algumas outras espécies juntos, eventualmente um golfinho, uma tartaruga marinha, espécies que você não queria pegar e vai ter que botar fora. Se preferir pescar com arrasto, além de pescar qualquer coisa, você vai arrastar tudo, inclusive o fundo, impactando seriamente o ecossistemas aquático
((o))eco: No manifesto dos ambientalistas pela manutenção das medidas de proteção não houve menção à criação de novas unidades de conservação marinhas. Por quê?
A criação de unidades de conservação marinha é feita para proteger integralmente o ambiente. Então ela é importante para proteger áreas onde existem espécies raras ou ecossistemas delicados, que não aguentam nenhum tipo de atividade. E a gente acha que é importante que existam essas unidades de conservação, mas o foco da Oceana é no manejo pesqueiro. É na gestão da pesca.
Porque na maior parte do mar, a gente tem pesca. Onde não é unidade de conservação, a pesca é liberada. E a gente entende que o impacto de uma pesca não manejada acaba sendo pior. Afinal, quantas unidades de conservação pode-se ter?
Proteger 10% do mar por unidades de conservação é uma meta. Agora, se 90% que não é Unidade de Conservação se vai pesca tudo até o último, não vai dar certo. Os 10% sozinhos não resolvem nosso problema. Elas vão proteger as espécies vulneráveis, mas elas não vão manter a pesca.
E nós, da Oceana, entendemos que o manejo da pesca é importante pra manter a pesca. A gente trabalha pela sustentabilidade da pesca. A gente não quer é que a pesca acabe por falta de peixe. A gente não quer que as pessoas fiquem sem emprego, sem salários, sem comida. A gente quer comer peixe, comer peixe é importante. Pesca é uma atividade importante que tem que ser mantida. E tem muita pouca instituição trabalhando nessa área. Existem muito mais organizações trabalhando com proteção de áreas em unidades de conservação e com espécies carismáticas, como baleia, tartaruga, golfinho do que com manejo pesqueiro. E a gente acha que também é importante ter instituições que se preocupam com a manutenção, com a sustentabilidade da pesca como atividade econômica.
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O nosso slogan é, proteger o oceano para alimentar o mundo. Não tem como alimentar o mundo sem a pesca. É inviável substituir em terra a proteína que a gente tira da pesca. Não se consegue alimentar a humanidade, com o crescimento atual da sociedade, se tiver que desmatar mais florestas. Na terra, precisamos desmatar, cortar a floresta pra plantar ou cultivar o gado. Então, para produzir, se acaba com os ecossistemas e com todas as espécies que existiam ali. No mar é possível produzir alimentos sem acabar com nada.
((o))eco: A senhora considera que houve um erro político do Ministério do Meio Ambiente em publicar a lista sem falar com o setor pesqueiro?
Essa é a reclamação do setor pesqueiro, de que não houve consulta. Eu não sei se é um erro político. Eu sou da conversa. Eu acho importante conversar com as pessoas. Mas a grande reclamação é que o Ministério da Pesca não foi consultado, que os usuários não foram consultados, que os sindicatos não foram consultados. O que pegou todo mundo de surpresa. Essa é a reclamação principal.
((o))eco: E depois houve uma reação…
É, mas o que eu acho importante colocar como mensagem da Oceana é que a 445 ela tem grande importância. Ela chamou a atenção das pessoas para um problema que ninguém percebia, que é a falta de gestão pesqueira. Então eu costumo dizer que a 445 não é o problema, ela é a consequência de um problema muito maior, que precisamos encarar. E a Oceana foi criada pra isso. A gente veio para o Brasil e abriu um escritório para lidar com isso: o ordenamento de pesca. A proibição pura e simples não resolve o problema de conservação de pesca.
((o))eco: Qual é a sua avaliação da portaria 445, que restringe a pesca de espécies em perigo?
A portaria 445 trouxe esse alerta para sociedade de que algo não estava bem. Ela provocou uma mudança de comportamento e discurso tanto do Ministério do Meio Ambiente quanto o da Pesca e trouxe a discussão e os pescadores, suas lideranças e os sindicatos pra Brasília, para os Ministérios, para a discussão. A 445 está forçando os dois ministérios a fazer o que têm que ser feito, e por isso a gente é contra a revogação da norma.
*Editado em 02/07/2015 às 16h37.
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Vergonha e incompetência total para o governo brasileiro. Em nome da própria economia só podemos usar o que sabemos que poderá ser restituído pela natureza. No caso da pesca oceânica e artesanal os peixes são serviços ecossistêmicos – e portanto naturais – oferecidos pelos oceanos e bacias hidrográficas. É preciso sim – urgentemente – um controle dos estoques para se saber até onde poderemos utilizá-los sem exterminá-los. A captura de espécies que implique na ameça de sua extinção é crime ambiental previsto na legislação brasileira. Quem for contra a legislação é criminoso e deve ser punido na forma da lei.
Sou pescador artesanal á 20 anos, não sei fazer outra coisa se não pescar, tenho licença pra pesca de espinhel , e sempre trabalhei de acordo com a lei. Ao longo desses 20 anos de trabalho honesto, consegui comprar uma embarcação um pouco maior, e equipa-la. agora do nada sou proibido de pescar 90% dos peixes que fisgam nos anzois, e descarta-los(na maioria das vezes mortos) para não correr o risco de ser preso. É muito fácil proibir, difícil é organizar, debater, ser realmente conhecedor do assunto. Deveriam aprender com paises como a Noruega, Japão, Portugal que dão um banho de organização no setor. E agora?! o que faço da vida?!