Reportagens

Montanhismo consciente

Escaladores reflorestam o Morro da Urca e adotam condutas de "mínimo impacto".

Carlos André Ferreira ·
4 de agosto de 2004 · 20 anos atrás

A primeira pessoa a pisar no topo do Pão de Açúcar, uma rocha de 600 milhões de anos que se projeta a 396 metros de altura na boca da baía da Guanabara, foi a inglesa Henrietta Carstairs, em 1817. Para consagrar sua façanha, Henrietta achou por bem cravar uma bandeira da Inglaterra no cume. O gesto enfureceu os alunos da Escola Militar que havia na época na base do Morro da Urca. Poucas semanas depois, os cadetes subiram pelo mesmo caminho e trocaram a bandeira pela de nossa metrópole, Portugal.

De lá pra cá milhares de brasileiros e estrangeiros lançaram-se nas encostas do Complexo da Urca (formado, além do Pão de Açúcar, pelos morros da Babilônia e da Urca) em busca de aventura e reconhecimento. Hoje, graças à variedade de vias e estilos que oferece, a Urca é um dos principais centros de escalada do mundo. Na alta temporada, que vai de maio a agosto, falta espaço nas paredes para tanto escalador. Às vezes eles são 500 de uma vez nas quase 300 vias de escalada, muitas batizadas pelos conquistadores com nomes curiosos: Ácido Lático, Lagartão, Pássaros de Fogo, Cavalo Louco, Urubu Capenga, Cabeça Oca, Caixinha de Surpresas, Tiro no Escuro…

Tamanha notoriedade acabou gerando danos ambientais que vêm comprometendo a biodiversidade local. O impacto recai com mais força na flora. Bromélias e orquídeas, algumas de espécies raras e que só ocorrem na região, vêm sofrendo com o uso excessivo das trilhas e com a abertura de novas vias nos paredões. Para dar segurança nos trechos, uma série de pinos de aço, chamados de grampos, são fixados na pedra. Além de acentuar a deterioração da rocha, os grampos, se colocados em grande quantidade, também geram uma poluição visual indesejável.

Os pioneiros iniciaram as conquistas sistemáticas nas primeiras décadas do século XX. A técnica utilizada então não levava em consideração o impacto ambiental. Não por uma falta de cuidado dos antigos: simplesmente não se pensava em Ecologia naqueles tempos. A retirada da vegetação, o corte de árvores para servir de “escada” e o grampeamento em larga escala eram as práticas vigentes. “Nós até tínhamos uma consciência ecológica. Ninguém podia fumar na pedra e levávamos sempre o nosso lixo de volta”, diz o escalador Tadeusz Hollup, que ainda hoje, aos 75 anos, continua em atividade. “O material era muito precário, usávamos cordas de sisal e cânhamo. Nos pés usávamos coturnos adaptados com tachas, que chamávamos de bota cardada. Era impossível subir sem os grampos”, explica Hollup, que viveu o que ele chama das três fases do montanhismo no Brasil: o pioneirismo dos anos 40, a explosão da prática nas décadas de 70 e 80, e a fase atual, em que a preocupação ambiental se consolidou entre a maioria dos praticantes.

SOS Urca – Mesmo com a mudança de atitude, a região do Pão de Açúcar ainda sofre com a presença excessiva de visitantes. Principalmente na trilha que leva ao Morro da Urca (primeira parada do bondinho), utilizada até por crianças, tamanha a facilidade de acesso. “O estado atual da trilha é preocupante. Utilizada acima de sua capacidade e sem um planejamento de traçado, se nada fosse feito, em breve teríamos um processo degradante irreversível”, diz Bernardo Collares, presidente da Federação dos Esportes de Montanha do Estado do Rio (Femerj).

Cansada de esperar por uma atuação mais forte do poder público, a Femerj decidiu criar um grupo de trabalho chamado SOS Urca. O título já diz tudo, é preciso salvar a Urca. O grupo vem realizando, desde 2002, uma série de atividades de recuperação e preservação da região. Retirada do capim invasivo (colonião), replantio de espécies nativas, mutirões de limpeza, fechamento de atalhos, recuperação das trilhas e a colocação em prática da conduta de Mínimo Impacto são as principais ações do SOS Urca.

Até mesmo práticas que podem parecer inofensivas, como dar frutas para os micos, podem gerar um impacto nocivo. “Os micos não são naturais dessa região, foram trazidos do nordeste. Com a fartura de alimentos eles se reproduziram demais e vêm destruindo a flora e a fauna”, alerta Juliana Fell, coordenadora do SOS Urca. Segundo ela, ninhos de passarinho têm sido atacados pelos micos em busca dos ovos.

“Conseguimos unir nesta ação junto com a Femerj representantes do Exército e da empresa que administra o bondinho e agora temos que trazer também o poder público municipal”, diz Juliana. A próxima meta do grupo é recuperar a trilha do Morro da Urca. Toras de eucalipto serão utilizadas para conter a erosão e delimitar o caminho a ser seguido, evitando assim o alargamento ainda maior da trilha e garantindo um aproveitamento melhor das curvas de nível, que ajudam a diminuir a inclinação da subida. “O caminho foi aberto sem planejamento. Hoje as pessoas se agarram na vegetação para auxiliar na subida e isso vem gerando um impacto terrível, que piora com a erosão, provocando deslizamento até de grandes árvores”, afirma Juliana que, assim como todos os outros envolvidos, trabalha voluntariamente no projeto. “Hoje o assunto meio ambiente já é bem-vindo, não somos mais vistos como ‘eco-chatos’, a população aplaude sempre que nos vê trabalhando nas atividades de reflorestamento e pergunta como pode participar”, conclui.

Outra entidade preocupada com a preservação do Complexo da Urca é a ONG Grupo de Ação Ecológica (GAE). André Ilha, um dos fundadores, tenta há mais de 10 anos que a região seja declarada como Parque Natural Municipal. “Vivemos uma situação no mínimo curiosa. A Urca é ao mesmo tempo órfã e disputada entre diferentes pais”, diz André. União, Município e Exército têm se declarado sucessivamente responsáveis pela área. Segundo Ilha, a situação já esteve pior. “Tivemos aqui uma favela e depois um incêndio. Do ponto de vista geral, está melhor que há 30 anos, mas em locais como o Morro da Urca o estado é crítico”, alerta André.

Na Justiça – A paixão do montanhista pelo seu local de exercício é tão grande que pode levar uma divergência para os tribunais de justiça. Em 1989, dois experientes montanhistas, Mário Arnaud e Roberto Groba, resolveram abrir uma nova via de escalada no Pão de Açúcar. Ao comunicarem sua intenção aos colegas, a dupla passou a receber uma saraivada de críticas, abaixo-assinados e apelos para que não seguissem adiante. Segundo os opositores, entre eles o GAE, a Associação de Moradores da Urca e até o Centro Excursionista Petropolitano, a via iria atravessar uma área de espécies endêmicas de bromélias e orquídeas.

Sem uma solução consensual, o assunto foi parar na Justiça. Arnaud e Groba acabaram sofrendo uma ação civil pública. Segundo o defensor público que atuou na acusação, Elton Leme, coincidentemente um especialista em bromélias há mais de 30 anos, a face sul escolhida era particularmente rica em flora já que recebia menos sol, deixando-a com mais umidade para a vegetação. “Ali temos espécies raras de bromélias como a Vriesea botafoguensis, isso sem contar que os ecossistemas em costões rochosos são extremamente frágeis”, argumenta. Atuando hoje como juiz de direito, Leme afirma que será preciso mais de um século para que a vegetação se recupere naquela região. “Condutas que se praticavam no passado não cabem mais na atualidade. A abertura daquela via não se justificava”, diz.

“Não houve um impacto na vegetação, nós procurávamos sempre a rocha livre”, defende-se Roberto Groba. “Se qualquer retirada de vegetação fosse gerar um processo igual, teríamos que acabar com o esporte no Rio”, desabafa. A justiça, no entanto, decidiu pela condenação de Arnaud e Groba e impôs como pena a recuperação da área, que até hoje permanece parcialmente grampeada. Vale lembrar que a Lei de Crimes Ambientais só viria a ser promulgada em 1998, o que livrou os escaladores de uma ação criminal. Elton Leme acredita que a repercussão do caso acabou gerando um impacto positivo na comunidade de montanhistas. “Acho que o pessoal ficou mais cuidadoso”, conclui.

Conduta consciente – Há novidades no front. Um novo tipo de prática vem sendo adotada, não só entre montanhistas, mas em todas as atividades de aventura e ecoturismo: a conduta de mínimo impacto.

O conceito inspirou a realização, em fevereiro de 2002, do I Seminário sobre Mínimo Impacto em Paredes. No encontro foi produzido um documento com diversas recomendações sobre a questão ambiental, disseminadas desde então nos cursos oferecidos pelos clubes de montanhismo. Flávio de Aguiar, instrutor há 10 anos do Clube Excursionista Light, é um dos que difundem entre seus alunos os pilares do Mínimo Impacto. “São oito princípios muito fáceis de seguir e que, se respeitados, vão garantir para as gerações futuras o mesmo prazer que nós temos hoje ao nos depararmos com um ambiente preservado” explica Flávio. Planejamento, segurança, preservação, limpeza e respeito são os conceitos-chave que regem o mínimo impacto. “Devemos lembrar sempre que nós somos visita no ambiente natural, e assim devemos nos comportar”, conclui Aguiar.

O crescimento da consciência ecológica é um bom sinal, mostra que o homem vem tentando se reconectar com a natureza. No entanto, os ecossistemas são estruturas muito mais frágeis do que imaginamos. Cabe a cada um de nós cuidar para que as riquezas naturais sejam preservadas, assim como cabe àqueles que exploram comercialmente as atividades de ecoturismo, uma responsabilidade educacional para com seu público. E por fim, devemos aprender com as escorregadas e derrapadas do passado e corrigir o rumo, deixando para trás apenas as nossas pegadas.

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