Verão de 1969, Monte Pascoal, Bahia. Maria Tereza Jorge Pádua tinha um revólver 38 no coldre e um pequeno índio pataxó no colo. O menino rechonchudo a olhava fixamente. Nunca tinha visto uma mulher branca. Muito menos armada. A mulher vestia calça marrom, blusa rosa sem manga, chapéu de grife, chamativos óculos escuros e um lenço rosa choque amarrado no cabelo. Uma choupana ao fundo e outros dez índios compunham a cena semelhante à de um faroeste americano, mas registrada na região tropical do Brasil por uma máquina fotográfica.
A imagem retrata uma fração dos 61 anos da mais atuante ambientalista brasileira. Maria Tereza realizava na época um profundo estudo para implementar o Parque Nacional Monte Pascoal. Estava em contato com os índios pataxós para estabelecer os limites entre o Parque e a área da tribo – fincada no meio da Mata Atlântica. Depois de algumas incursões na região, teve sucesso.
O Monte Pascoal foi a primeira porção continental avistada pelos portugueses no descobrimento do Brasil. Maria Tereza, a primeira mulher branca a subi-lo. E a ajudar a preservá-lo. Na época, era chefe da seção de parques nacionais do antigo Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF). Tinha 26 anos, 1,70m de altura. Chamava a atenção pelo pioneirismo na área, por ser mulher, por trabalhar duro e, finalmente, pela beleza. O cacique Tororim, um pequeno líder pataxó, por exemplo, fez questão de carregá-la no colo quando Maria Tereza aportou na região. A tribo parou para ver. “Ele tinha metade do meu tamanho, mas eu pesava 20 quilos”, exagera, com um largo sorriso no rosto.
Os anos passaram, mas o princípio de defesa da fauna e flora brasileiras permaneceu. Maria Tereza foi chefe da seção de parques do IBDF por 14 anos, diretora-geral do instituto por um ano, presidente do Ibama por quatro meses, fundadora e presidente por nove anos da ONG Funatura. No longo trajeto, foi responsável pela criação de um total de 8 milhões de hectares de parques e reservas biológicas – mais de 50% das áreas de preservação no país. Criou 15 parques nacionais, influenciou a aprovação de pelo menos quatro e implementou vários outros. Segundo ela, é o que restará de natureza. “No final, sobrarão somente as áreas de preservação criadas pelo homem”, afirma.
Do alto de sua experiência, não esconde a frustração quanto aos 18 meses de Marina Silva à frente da área ambiental. “O governo Lula tem batido recordes em criar impactos ambientais negativos”, lamenta, citando como exemplos o esvaziamento político do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) e o desperdício de centenas de milhões de dólares em empréstimos e doações por pura desorganização administrativa. Também bate duro na prioridade desenvolvimentista do governo, que vem manifestando insatisfação diante da morosidade dos processos de licenciamento ambiental de grandes obras, sobretudo as novas hidrelétricas. Segundo ela, as empresas fazem “estudos baratos”, que não satisfazem as mínimas exigências legais e podem provocar desastres sociais, ecológicos e econômicos. Reconhece a burocracia do Ibama, mas diz que o governo nada faz para melhorar o funcionamento do órgão.
Riscos e conquistas – Maria Tereza nasceu em São José do Rio Pardo, interior de São Paulo, a terra onde o escritor Euclydes da Cunha, trabalhando como engeheiro, escreveu Os Sertões. Cresceu brincando em cachoeiras e passeando pela Mata Atlântica. Apaixonou-se pelas florestas brasileiras e pelo livro Os Sertões. Aos 14 anos recitava trechos completos do clássico. Estudou engenharia agronômica em Lavras (MG) e fez mestrado em Ecologia e Manejo da Vida Silvestre. Casou-se duas vezes. Tem três filhos, dois netos.
Aos 24 anos tornou-se aviadora, formada em uma das primeiras turmas de pilotos agrícolas do Brasil. No ano seguinte, desafiando os preconceitos da época, já estava lecionando no mesmo curso, ao lado de experientes pilotos da falida Panair. O conhecimento de aviação salvaria sua vida alguns anos mais tarde, quando sobrevoava o Pantanal e o piloto se perdeu. Com pouca gasolina e sem uma pista de pouso alternativa, a ambientalista tirou-os de lá estudando rapidamente os mapas de navegação.
Não foi a única vez em que lutar pela preservação ambiental significou botar a própria pele em risco. Trabalhando pela implantação do Parque Nacional do Pantanal Mato-grossense, Maria Tereza recebeu ameaças de contrabandistas e coronéis. “Homens da região”, contrariados, deixavam jacarés enforcados por onde Maria Tereza passava, enquanto ela estudava a área que seria preservada no parque nacional. Na mesma época, invadiram sua casa em Brasília, empaparam de sangue uma fralda de um de seus filhos e colocaram em cima de sua cama. O recado: não era bem-vinda. Nem a ameaça mais incisiva a tirou do rumo, e o parque do Pantanal foi aprovado.
Para quem viveu conflitos desse nível com os seres humanos, os bichos do mato não poderiam ser vistos com temor. “Não temos animais perigosos em nossa fauna. Só tinha medo mesmo de abelhas africanas, trazidas para o Brasil, e queixada (espécie de javali)”, explica. Andava com espécies inofensivas de cobra no bolso da camisa. “Coisa de moça”, afirma com ironia.
Entre colegas ambientalistas, Maria Tereza tem fama de mulher polêmica, brava e extremamente decidida. Todos concordam em um raciocínio: ela fez história e foi o mais importante quadro na área de meio ambiente nos últimos 40 anos. Na prática, nem sempre levou os louros. “Nosso sistema de parques não era um décimo do que é hoje. Isso mudou com o trabalho de Maria Tereza. Ela era a cabeça de tudo”, afirma Sônia Wiedmann, procuradora do Ibama. Antes de Maria Tereza, o Brasil possuía apenas 0,28% de sua extensão territorial preservada, ou 2,4 milhões de hectares. O número quadruplicou com o seu trabalho.
O deputado José Sarney Filho usa um tom reverente ao lembrar de sua convivência, como ministro do Meio Ambiente (1999-2002), com a militante Maria Tereza: “Nunca discordamos frontalmente, porque as reivindicações que ela fazia eram sempre procedentes. Ela cobrava ações que acabaram sendo mais lentas do que as expectativas”. Ele destaca a atuação de Maria Tereza na preservação do Cerrado e na organização das ONGs ambientalistas. “É uma das mais respeitadas e admiradas ambientalistas brasileiras. Pessoalmente, é distinta, elegante, aberta ao diálogo. Sempre se pautou pelo profissionalismo”.
Mas antes das liberdades democráticas, ser ambientalista era ainda mais complicado. Maria Tereza foi uma das primeiras pessoas a brigar por unidades de conservação numa época em que a imagem de tratores derrubando florestas refletia o desenvolvimento do país. Em 1981, bateu de frente com o então presidente João Figueiredo ao pedir demissão do IBDF, onde trabalhava há 18 anos, em protesto contra a construção de uma estrada dentro do Parque Nacional do Araguaia.
Nos anos anteriores, dedicara-se à causa ambiental mesmo sob as pressões dos piores anos da ditadura militar. Apesar de ter um irmão militante de esquerda e de ser contra o regime fardado, trabalhou diretamente com o poderoso chefe da Casa Civil do governo Ernesto Geisel (1974-1979), Golbery do Couto e Silva. O ministro não queria a criação da Reserva Ecológica do Rio Trombetas, no Pará. Achava que iria interferir na mineração de bauxita. Travaram uma queda-de-braço, até Maria Tereza perder a esperança.
No dia em que iriam anunciar a criação de várias áreas de preservação, todas propostas por Maria Tereza, recebeu a notícia de que um decreto havia sido negado. Teve certeza que era a Reserva de Trombetas. Errou. Golbery perdeu a batalha para a ambientalista. O único decreto negado no dia foi o tombamento de uma pequena árvore de andiroba dentro do IBDF. Emocionada, chorou lágrimas pretas de maquiagem.
Agnóstica, nem naquele dia a ambientalista fraquejou. À sua maneira, agradeceu à força superior que a ajudou a vencer o poderoso Golbery: “Minha religião é a natureza”, diz. As matas brasileiras, certamente, olham por ela.
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