Reportagens

Suaves caminhos

Engenheiros paulistas, priorizando materiais naturais, construíram estradas de terra integradas ao ambiente, onde se rola tão macio quanto num asfalto.

Carolina Elia ·
7 de outubro de 2004 · 20 anos atrás

Diz-se que não é nada fácil chegar ao Paraíso. Para quem já tentou ir aos parques estaduais Carlos Botelho e do Alto Ribeira (PETAR), que preservam um pequeno éden de Mata Atlântica no interior de São Paulo, o dito popular era a mais pura verdade. A SP-139, que corta o Carlos Botelho, e a SP-165, único acesso ao Alto Ribeira, tinham condições para lá de sofríveis. Na primeira, levava-se em média 4 horas para se cobrir um trecho de apenas 33 quilômetros. Na outra, em dia de chuva, nem cavalo passava. Os usuários pediam providências. O governo estadual até se dispunha a consertá-las. Mas tinha pela frente um problema para engenheiro nenhum botar defeito.

As duas estradas cortam parques, o que de cara descartava o método tradicional para por rodovias em condições de trânsito adequadas: asfaltá-las. A lei proíbe que isso seja feito em vias que atravessam áreas de preservação. A solução foi tentar achar uma tecnologia que desse ao motorista que freqüenta a SP-139 e a SP-169 a sensação que ele estivesse passando sobre asfalto, só que com as rodas em terra. Quem resolveu o problema, empregando apenas matéria-prima natural, foi o pessoal da Companhia de Desenvolvimento Agrícola do Estado de São Paulo. Em 7 anos, essa turma recuperou quase 5 mil quilômetros de estradas rurais em São Paulo. Em nenhuma usou asfalto.

O primeiro passo foi nivelar a pista, cuja buraqueira impedia que os carros mantivessem suas quatro rodas no mesmo nível. Não foi fácil. Por ser área de Mata Atlântica, portanto floresta tropical, o índice pluviométrico na região é muito alto. E a chuva é o inimigo número um de qualquer estrada de terra. A água abre sulcos profundos, lava o leito e provoca deslizamentos. Nessa região há ainda dois agravantes: as minas e as nascentes. O Alto Ribeira possui a maior concentração de cavernas calcárias do mundo e o Parque Carlos Botelho abriga nascentes que abastecem as bacias do Paranapanema e do Rio Ribeira de Iguape. Essa formação geológica contribui para que as paredes da Serra estejam sempre úmidas, pingando água ininterruptamente.

Para neutralizar os estragos provocados pela água, empregou-se uma série de macetes. De cara, assim que a pista foi nivelada, os engenheiros deram a ela um formato convexo para forçar a água para as laterais. Depois foram construídos sistemas de drenagem nas margens que a encaminham para dentro de caixas de alvenaria. Delas, a água segue para tubulações subterrâneas que cruzam a pista e desemboca em uma escadaria, pela qual vai até os riachos vizinhos. Esse curso artificial é todo feito com madeira e pedras colhidas na região.

Madeira foi um dos materiais mais utilizados na recuperação das rodovias SP-139 e SP-165, principalmente nas encostas. Toras retiradas de áreas reflorestadas foram cravadas embaixo da estrada para dar sustentação ao terreno. A mesma técnica foi utilizada para a recuperação de voçorocas, que são crateras imensas provocadas por erosão. Apesar de ser uma reserva ambiental, o fluxo constante de água corrói as encostas e provoca deslizamentos de terra. A falta de manutenção levou as voçorocas a carcomerem vários trechos da pista. Para conter o solo, os técnicos também recorreram ao plantio de espécies nativas e ao uso de pedras próprias do local.

Todos os recursos naturais dos parques foram levados em consideração na revitalização das estradas, se não como matéria-prima, pelo menos como motivo de preocupação. Cascalhos retirados de jazidas a 60 km dali foram usados para fazer uma espécie de “asfalto” rudimentar, ecologicamente correto. Jogados sobre a pista, foram comprimidos contra a terra batida, aumentando sua aderência e permitindo que ela agüentasse melhor o fluxo de veículos. Na SP-139, por exemplo, circulam cerca de 100 veículos por dia além de uma linha de ônibus. Nos feriados, o número sobe para 300. Nos trechos mais íngremes, misturou-se cimento ao solo para dar mais segurança aos motoristas. Mesmo assim, a interferência na paisagem foi muito pequena.

Na hora do acabamento, os técnicos responsáveis pela obra também tiveram o cuidado de incluir lombadas feitas de argila e pedra para impedir que os carros andassem em alta velocidade. Essa decisão foi tomada pensando mais nos animais do parque, que ás vezes atravessam a pista, do que nos viajantes. O desafio imposto por lei de se construir uma estrada decente dentro de uma reserva ambiental sem usar asfalto levou à execução de um projeto criativo e bonito. Ainda ajudou a incentivar o ecoturismo na região e a animar os pesquisadores a fazerem estudos neste rico recanto de Mata Atlântica.

Só no Parque Estadual Carlos Botelho existem atualmente 100 projetos de pesquisa científica em andamento. A maioria foi estimulada pela facilidade de acesso à reserva. O parque abriga uma das maiores concentrações de biodiversidade do país. Lá moram onças-pintadas, muriquis e mono-carvoeiros – os maiores primatas das Américas. O Alto Ribeira também é um paraíso para os cientistas por possuir sítios arqueológicos, paleontológicos e 250 cavernas cadastradas. A “estrada-parque”, como o projeto foi apelidado, acabou também se tornando uma mão na roda para a população dos quatro municípios interligados pelas rodovias (São Miguel Arcanjo, Sete Barras, Iporanga e Apiaí). Agora, ela rola mais macio, sem prejudicar seu meio ambiente.

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