Reportagens

Os apuros da lagosta cearense

Pescadores criam plano de manejo para salvar uma das principais atividades do Ceará: a pesca da lagosta. O governo ainda não se mexeu para apoiar o processo.

Rodrigo Squizato ·
14 de outubro de 2004 · 20 anos atrás

A pesca da lagosta na costa do Ceará está em plena decadência. Entre 1991 e 2003, a produção caiu de 2,9 mil toneladas para menos de 1,3 mil toneladas. Os números são indício de um sério problema ambiental criado por questões econômicas e sociais. Como comer lagosta nunca foi barato e capturar o animal não é difícil, a atividade potencialmente sempre teve uma boa margem de lucro. Em período de bonança, um pescador chegava a ganhar anualmente 16 mil reais. Não era mau para ele, mas acabou sendo péssimo para o crustáceo. A corrida pelo dinheiro, aliada ao emprego de métodos não seletivos de pesca, está varrendo o bicho do litoral do estado.

Preocupado com a preservação de suas finanças, um grupo de pescadores cearenses, que no Sul e no Sudeste são conhecidos como jangadeiros, lançou um plano de manejo não apenas para recuperar os estoques de lagosta mas também para mantê-lo em níveis sustentáveis. O plano foi concebido no Fórum dos Pescadores contra a Pesca Predatória do Litoral Leste do Ceará (FPPP), fundado em 1995 pelo suíço René Shärer, que aportou no Ceará três anos antes como um aposentado decidido a dedicar-se ao trabalho voluntário.

Um problema central que o projeto quer atacar é a captura da lagosta miúda, muitas vezes tirada do mar antes de entrar na idade reprodutiva. Para tanto, precisa lidar com uma burocracia cheia de boas intenções, mas que tornou as duas espécies de lagostas que existem na costa do Ceará – a vermelha (Panulirus argus) e a verde (Panulirus laevicauda) – vulneráveis a uma fraude de cores. Atualmente, existem dois padrões de tamanho mínimos que definem quais as lagostas que podem ser retiradas da água: 11cm para a verde e 13cm para a vermelha. Nestes 2 centímetros de diferença, uma lagosta que sai vermelha do mar cearense chega como verde aos Estados Unidos, o principal mercado importador do produto.

O golpe conta com a fiscalização relapsa em solo americano. Na alfândega de lá, o exame limita-se à verificação dos rótulos. Raramente os pacotes são abertos, única maneira de se flagrar a confusão voluntária das cores. Por isso o plano de manejo recomenda um padrão único de tamanho, de 13cm, para ambas espécies. Também sugere fiscalização dura para banir do litoral cearense a pesca baseada em métodos não seletivos, como o uso de redes ou compressores. Tanto um quanto o outro retiram da água número excessivo de lagostas, o que impede a renovação adequada de seus estoques para garantir a temporada do ano seguinte.

Suas conseqüências são patentes na Prainha do Canto Verde, a 120 quilômetros de Fortaleza. Com 1.200 habitantes, a comunidade vive basicamente do que trazem do mar seus 140 pescadores. Ultimamente, eles não têm tido muito o que oferecer às suas famílias. No primeiro final de semana de outubro, não conseguiram tirar da água mais do que uma dezena de lagostas. Atualmente, só mesmo em maio, logo depois do período do defeso, conseguem alcançar produção semelhante à de uma década atrás. Os pescadores do Canto Verde estão entre os maiores entusiastas do plano de manejo de lagostas na costa cearense.

Um dos melhores exemplos de manejo bem-sucedido de lagostas está na Austrália, onde o sistema foi implantado há 41 anos. A pesca é controlada pelo número de armadilhas, área de atuação de cada barco pesqueiro, tamanho mínimo e máximo para definir as lagostas que podem ser retiradas da água e, finalmente, horário determinado para puxar as arapucas até a superfície. Anualmente, a Austrália produz entre 8 e 12 vezes mais lagosta do que o Ceará, principal produtor brasileiro do crustáceo. Boa parte desse sucesso se escora na fiscalização. Os pescadores cearenses querem implantar na sua costa uma tão boa quanto a australiana. O problema é o custo.

O plano de manejo requer 2 milhões de reais para funcionar adequadamente. Não parece muito para uma atividade que no ano passado gerou receitas de 30 milhões de dólares, mas é sempre difícil achar quem queira abrir a carteira para custear o serviço. O pessoal do Canto Verde está disposto a contribuir. Pelo projeto, os pescadores vão destinar 1 real do valor obtido com cada quilo de lagosta pescada para financiar a fiscalização. Pedem apenas uma contrapartida do governo: realizar um senso das embarcações, com suas respectivas tripulações, e mapear os demais agentes da cadeia produtiva que vive da lagosta.

“Não adianta tentar administrar o esforço de pesca se não se sabe ao certo o que ele é e quem faz parte dele” explica Schärer, que além do Fórum contra a Pesca Predatória, ajudou a fundar a Associação dos Amigos da Prainha do Canto Verde. Outro ponto fundamental para o projeto dos pescadores cearenses é a conscientização do principal mercado consumidor, o norte-americano. Schärer diz que já tem reservado um estande na International Boston Food Show, uma das maiores feiras americanas da indústria de pescados. O objetivo da participação será mostrar a importadores, chefes de cozinha e consumidores os danos causados pelo consumo da lagosta pequena. A idéia não é original. Baseia-se em estratégias semelhantes usadas por defensores do atum e do esturjão (peixe de cuja ova sai o caviar) para mobilizar os consumidores em favor de sua preservação.

Se os norte-americanos vão digerir os argumentos cearenses ainda não se sabe. Mas eles engoliram a pressão feita em favor do esturjão e do atum. As perspectivas, portanto, são boas. No Ceará, pelo menos entre quem vive diretamente da pesca da lagosta, elas são ótimas. Pescadores, armadores e exportadores parecem saber muito bem que o plano de manejo, a médio prazo, é sua única saída. Quem ainda parece não perceber o tamanho do problema são as autoridades. Seu engajamento é fundamental para o projeto dar certo. O pessoal que busca um futuro para a atividade acha que elas permanecem muito ao largo disso.

José Alberto de Lima Ribeiro, o Beto, presidente do conselho de pesca da Prainha do Canto Verde e membro do Grupo Técnico de Trabalho da Lagosta (GTT Lagosta) – um conselho criado pelo Ibama e condenado ao torpor burocrático por inventar propostas inexeqüíveis, como extinguir 9 mil postos de pesca para viabilizar a produção local da lagosta — tem muita esperança no plano. Boa parte dela baseada na tradição de luta de sua comunidade em defesa dos direitos dos pescadores e da qualidade ambiental.

Os direitos, Canto Verde conheceu em 1979, ano em que as dunas que seus habitantes ocupavam viraram alvo da especulação imobiliária que tomava de assalto o litoral cearense. Alguns pescadores venderam suas posses e o comprador, Antonio Sales Magalhães, resolveu estendê-las na marra. Apoiado por uma decisão da justiça local, tentou fazer seu terreno chegar à faixa de praias, algo em torno de 700 hectares de muita areia de frente para o Oceano Atlântico. O pessoal do Canto Verde só descobriu que estava prestes a perder as terras onde seus familiares tinham se assentado há cerca de 120 anos quando a decisão de usucapião estava na mesa do juiz de Beberibe, município onde a vila está localizada.

Contaram com ajuda do Centro de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos, criado na década de 70 pelo então arcebispo de Fortaleza, Dom Aloísio Lorscheider, e começaram a armar uma baita confusão. Não ganharam ainda, mas também não foram removidos de lá. Aguardam decisão do Supremo Tribunal de Justiça em Brasília e prometem recorrer ao Supremo Tribunal Federal se perderem.

O trabalho em favor da qualidade ambiental é mais recente, mas seus resultados são até mais visíveis para os forasteiros. Uma das marcas de qualquer praia brasileira, principalmente as freqüentadas por gente de classe média – cachorros sem coleira – não existe mais na Prainha do Canto Verde. Foi uma decisão da comunidade, que, se não baniu inteiramente os cães, impôs regras claras aos seus donos. Em áreas públicas, cachorro só na guia. Na mesma votação em que botaram coleira nos proprietários de cães, baniram completamente os porcos que andavam soltos pelas vielas entre as suas casas, vivendo das tripas de peixes que os pescadores deixavam na praia depois de escamá-los.

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