Reportagens

Queimada em nome da ciência

ONG ambientalista de pesquisa e o maior plantador individual de soja no mundo se unem para fazer pesquisa sobre os efeitos do fogo em vegetação de transição.

André Luís Alves ·
20 de outubro de 2004 · 20 anos atrás

Essa é a história de uma parceria que para muita gente, apesar de ter sido feita em nome da ciência, continua inimaginável. Ainda mais porque envolve atear fogo em região de floresta. Ela está acontecendo em Querência (MT), uma das últimas fronteiras agrícolas do estado, próxima ao Parque Nacional do Xingu. Numa fazenda cedida pelo Grupo A. Maggi, maior produtor de grãos do país, pesquisadores do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), com o apoio do Centro de Pesquisa de Woods Hole e da Universidade de Yale, estão fazendo queimadas controladas para descobrir se as chamas podem desencadear um processo de “savanização” na região, cuja cobertura original marca a transição entre a vegetação do Cerrado e a da Amazônia.

O projeto foi concebido para se verificar cientificamente com que freqüência o uso de fogo em uma floresta desse tipo pode provocar o seu empobrecimento a ponto de torná-la ainda mais vulnerável a incêndios. Para a pesquisadora do Ipam, Cláudia Azevedo Ramos, ao final dos seis anos de projeto será possível entender a dinâmica do fogo nesse tipo de vegetação de forma a evitar os incêndios acidentais. “Dados do Ipam mostram que cerca de 50% do fogo na Amazônia é acidental. Esse projeto é para poder entender como isso acontece e como associar o uso econômico com a preservação ambiental”. Além de estudar a transformação da vegetação com o uso do fogo, também está sendo monitorado o comportamento de aves, répteis, mamíferos e insetos de solo, e as emissões de carbono das queimadas.

O Experimento Savanização, como é conhecido o projeto, acendeu seu primeiro fogo no dia 16 de agosto com a supervisão do Corpo de Bombeiros. Ele está sendo feito em três áreas de 150 hectares cada, divididas em três lotes iguais. No primeiro lote será ateado fogo todos os anos. No segundo, de três em três anos. O terceiro lote servirá como parâmetro para avaliar o quanto a vegetação e o comportamento dos animais foram alterados. A piromania a serviço da investigação científica vai custar 110 mil dólares por ano. O dinheiro paga quatro cientistas, cinco alunos de pós-graduação, catorze técnicos em ateamento e controle de fogo e garante os equipamentos utilizados para fazer as medições do projeto, entre eles 40 sensores de temperatura e umidade relativa do ar pendurados em árvores a 5, 10 e 15 metros de altura.

O Ipam desenvolve projetos experimentais semelhantes, como o Seca Floresta, no Pará, e o Seca Cerrado, em Brasília. As iniciativas visam simular os efeitos de uma seca mais prolongada nessas duas regiões. Entretanto as áreas testadas têm 1 hectare. A escala em que ocorre o “Savanização” chamou a atenção de outros pesquisadores, como o doutor em física Nicolau Priante, que atualmente lidera um grupo de pesquisa em Física e Meio Ambiente na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). “Mato Grosso já foi referência sobre prevenção ao fogo, mas possui poucas pesquisas sobre os efeitos gerados pelos incêndios. A escala em que está sendo realizado este projeto vai fornecer informações que nós não temos em nenhum outro tipo de pesquisa”, reconhece.

A parceria pouco comum do Ipam com o Grupo Maggi divide opiniões. Não chega a ser inédita a aliança entre madeireiros que buscam a certificação florestal e ONGs como a WWF-Brasil, Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) e Amigos da Terra – Amazônia Brasileira, além do próprio Ipam. Mas é a primeira vez que ambientalistas se unem a um plantador de soja. “Tivemos uma discussão por causa de linhas de pensamento antagônicas dentro da própria entidade”, conta Oswaldo de Carvalho Jr., pesquisador do Ipam e um dos idealizadores do Savanização. “Pessoas nos perguntaram que tipo de ONG é essa que põe fogo na Amazônia. Nossa resposta é que a idéia é entender como funciona a dinâmica do fogo”.

Carvalho também ressalta que um experimento como este só poderia ser feito em uma grande área e de acordo com suas estimativas existem na Amazônia três vezes mais áreas de reserva legal em propriedades privadas do que em Unidades de Conservação criadas. O pesquisador explica que o contato de parceria é para uma parte da fazenda do grupo Maggi. “Nós não endossamos outras atividades do grupo ou as ações do governador”, esclarece. Mas reconhece a necessidade da parceria. “Quando pensamos em conservação precisamos envolver outros atores, como os produtores rurais, e fazer pesquisas nesses espaços”, finaliza.

Esta visão é contestada por Vicente Puhl, coordenador do Fórum Mato-grossense de Meio Ambiente (Formad), que congrega 38 organizações não-governamentais e movimentos sociais do estado. Apesar de reconhecer a importância de pesquisas para se conhecer mais profundamente os efeitos do fogo como instrumento de manejo, Puhl avalia como equivocada a parceria com o Grupo Maggi para o desenvolvimento da pesquisa. “O Grupo Maggi é o maior produtor individual de soja no mundo e concentra sua produção na Amazônia Legal, representando um risco para se pensar em sustentabilidade”. Puhl lembra também que muitos cientistas já denunciaram o risco da expansão da monocultura da soja na Amazônia.

O gerente de meio ambiente do grupo Maggi, Ocimar Vilela, que já foi presidente de uma ONG em Rondonópolis, argumenta que tudo é feito dentro do que a lei permite. O gerente do grupo explica que a empresa está recuperando Áreas de Preservação Permanentes (APPs) que já estavam desmatadas. “Sabemos que não dá para atingir 100% de sustentabilidade com a soja, mas queremos chegar o mais próximo disso”, afirma.

Já Vicente Puhl lembra que o grupo Maggi é da família do governador de Mato Grosso, Blairo Maggi (PPS), e que o atual governo pouco tem feito para garantir o cumprimento da legislação ambiental. “Mato Grosso dispõe do melhor sistema de monitoramento ambiental do Brasil mas é o campeão de desmatamento e queimadas ilegais sem que nenhuma ação efetiva para mudar este quadro esteja sendo feita”, critica. “A pesquisa em uma área do grupo lhe permite posar de ambientalmente correto, dando aval para conseguir empréstimos internacionais questionáveis”.

O empréstimo a que Puhl se refere foi dado ao Grupo Maggi pelo IFC (International Finance Corporation), braço do Banco Mundial que libera recursos para o setor privado. Foram 30 milhões de dólares para serem investidos na expansão da soja na região onde o projeto Savanização está sendo desenvolvido. Este episódio provocou a saída do Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais da consulta sobre o desembolso, realizada pelo IFC no final de setembro no Rio de Janeiro. As entidades defenderam a retirada com o argumento de que o empréstimo, sem avaliação dos impactos ambientais da expansão da soja na região leste de Mato Grosso, pode abrir um precedente para a exploração do agronegócio em áreas de transição de floresta.

Roberto Smeraldi, da ONG Amigos da Terra – Amazônia Brasileira, acredita que o futuro da produção da soja está na conciliação com a preservação ambiental. “A preservação ambiental gera passivos que têm efeito bumerangue para o próprio setor, como a importância da água nos cerrados do Centro-Oeste”, ressalta. “Em atividades com características semelhantes às do mercado financeiro aplicam-se outros conceitos, que apostam na insustentabilidade e na impunidade. Mas aí já é especulação financeira e não agricultura”, define.

A aproximação entre Ipam e o Grupo Maggi se deu por uma coincidência. Um buscava terras para fazer suas experiências. O outro, queria ONGs para desenvolver projetos com base no Sistema de Gestão Ambiental e Social. Foi um casamento selado a fogo.

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