A lista de cavernas existentes em Minas Gerais vai dobrar de tamanho. Um grande levantamento está catalogando 1.200 novas “cavidades subterrâneas” na região de Pains, no centro-oeste do Estado. Mas a notícia vem acompanhada de uma triste estimativa: pelo menos outras 600 cavernas teriam sido destruídas pela ação das mineradoras.
As cavernas, é bom lembrar, são patrimônio natural protegido por lei. E Pains fica em uma região cárstica, de grande valor geológico. “Carste”, palavra de origem servo-croata, é a terminologia dada por pesquisadores austríacos no início do século XX para um tipo de relevo cuja “paisagem rochosa apresenta um aspecto ruiniforme, esburacado, com drenagens subterrâneas”. Um carste é formado por rochas solúveis pela água ácida, normalmente as chamadas carbonáticas, das quais os exemplos mais comuns são o calcário e o dolomito.
O carste de Pains estende-se por outras dez cidades, numa área de aproximadamente 120 quilômetros quadrados, fazendo parte da “província espeleológica” do Bambuí, que segue até a Bahia. Na região, a mineração extrai o calcário para transformá-lo em brita, cimento ou corretivo agrícola. Ele também serve à siderurgia e seu pó é útil até para a produção de cosméticos. Segundo o Ibama, há pelo menos 50 anos existem registros oficiais das atividades de mineradoras, indústrias de calcinação e “quebradores de pedra” no carste de Pains. Nunca foram fiscalizados nem incomodados pela falta de licença ambiental. A mineração tornou-se estratégica para a economia da região e é responsável por um grande número de empregos diretos e indiretos.
A situação começa a se reverter com o esforço das mesmas entidades que se omitiram ao longo dos tempos. O motor da reviravolta foi a pressão feita pela sociedade civil, que encampou a luta de pesquisadores e ambientalistas inconformados com a degradação ambiental da região. Em meados de 2001, a área foi alvo de uma intensa fiscalização, promovida por um conjunto de órgãos públicos, que forçou a mudança dos parâmetros e regras que balizavam as atividades no carste. O resultado foi um Termo de Ajustamento de Conduta, assinado em abril de 2002 pelas empresas, que continua em vigor e vem sendo cumprido.
A fiscalização tardia proporcionou um salto de qualidade nos levantamentos que conduzem ao conhecimento da área. Empresas e entidades estão produzindo, como nunca, uma série de estudos necessários para a revisão das licenças ambientais existentes, ampliando em muito as informações sobre a caracterização da região do ponto de vista arqueológico, geoespeleológico, paleontológico e bioespeleológico.
Porém, o descaso do passado está estampado em muitos lugares, inclusive no levantamento sobre as empresas, feito quando o processo de preservação do patrimônio se iniciou. Naquela época, 45 mineradoras foram identificadas. Destas, apenas 25 possuíam direito minerário, expedido pelo Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM). Licença ambiental, então, era um luxo que passava longe da maioria das empresas. A situação era tão caótica que somente agora foi feito um mapa dos limites de atuação das mineradoras. Ele exibe interposições de direitos minerários em toda a área. Com isso, iniciou-se também uma renegociação em relação ao direito minerário, que corre paralela à instalação de novas mineradoras no local. Elas compram os tais direitos de antigos “proprietários” da lavra.
O mapa foi realizado pelo espeleólogo Marcelo Dias, do Grupo Guano Speleo, ligado ao Instituto de Geociências da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Dias é um dos pesquisadores que articulou a freada na derrocada do carste de Pains. Professor de Química e espeleólogo desde 1991, ele é freqüentador das cavernas da região e ajudou a trazer a público a destruição ambiental que rapidamente se processava ali.
As cavernas de Pains são quase virgens de pesquisas. Os estudos atuais evidenciam tanto a riqueza do patrimônio quanto sua debilidade frente às iniciativas de degradação, que não se resumem à ação das mineradoras e às indústrias de calcinação. Estas contribuem com partículas aéreas de poluição provocada pela queima do lixo industrial, de pneus e borracha vulcanizada nos fornos, alimentados também por madeira da região. “A agropecuária também causou um dano enorme”, sustenta Marcelo Dias, lembrando que áreas de pastagens e de plantio extinguiram uma rica vegetação. Já a Mata de Pains, cerca de 50 hectares de Mata Atlântica, permanece preservada principalmente no alto do carste, onde o terreno não é próprio para a prática da agropecuária. Ainda assim, muitas cavernas, dolinas (depressões circulares em forma de funil) e sumidouros estão recheadas de sedimentos argilosos provocados pela erosão do solo.
Segundo pesquisa realizada pela professora Cristiane Valéria de Oliveira, do Instituto de Geociências da UFMG, a pecuária deixou o solo compactado e endurecido, o que acarreta erosão e, conseqüentemente, o assoreamento dos rios. Foram detectados agrotóxicos nas lavouras de milho, café e feijão, mas a professora acredita que essa prática não teve ainda grandes reflexos. “A agricultura não está associada aos processos de degradação”, afirma Cristiane, para quem a contaminação dos aqüíferos está ligada à mineração. O carste de Pains está localizado na cabeceira do rio São Francisco e também atinge cidades que pertencem à bacia hidrográfica do rio Grande.
Um exemplo do admirável tesouro natural de Pains foi a descoberta de uma pequena caverna, batizadas Coqueiro Três, cuja peculiar importância geoambiental fez com que o Ibama instalasse portões para impedir o acesso de pessoas ao seu interior. Em termos de ornamentação, a Coqueiro Três é uma das mais expressivas cavernas do país. Isto é verificado pela variedade de suas formações minerais (espeleotemas), que incluem os raros “cotonetes” – grandes agulhas de gipsita e flores de calcita azuis. Segundo Marcelo Dias, a riqueza da caverna só é comparável à do salão Taqueupa, na Caverna de Santana, que fica no Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira (Petar), em São Paulo.
A Coqueiro Três estava oclusa (sem contato com o exterior) e foi descortinada pelo avanço de uma mineradora. “Pelo menos a empresa parou de minerar, não seguiu escondido”, observa o espeleólogo, contando que, por causa das condições ambientais a que foram submetidos pela descoberta, os espeleotemas da caverna estão virando pó. Por isso uma das sugestões de preservação da Coqueiro Três é que ela seja novamente lacrada. Uma solução também pouco usual, mas que poderia barrar, de acordo com Dias, o processo de “decomposição” verificado. Existem soluções menos drásticas, avisa o espeleólogo, mas custam muito dinheiro e tecnologia.
Seguir adiante com a exploração ao trombar com uma caverna oclusa, ou mesmo evidente, era uma atitude bastante comum. O cálculo do Ibama, de que cerca de 600 cavernas desapareceram na região, leva em conta áreas ainda totalmente preservadas. Segundo Marcelo Dias, relatos imprecisos e sua própria observação indicam que certamente se perderam mais de 100 cavernas. A falta de estudos e de documentação oficial dificulta um dado preciso. O número de 600, ressalva o pesquisador, não é exagerado quando se verifica a profusão de cavernas no local.
Certo é que nunca se saberá o tamanho da perda de sítios arqueológicos e paleontológicos. No carste de Pains foram encontrados inúmeros vestígios cerâmicos, usados como utensílios e urnas funerárias pelos índios. E também muito material lítico, como pontas de flechas, pedras lascadas, machados, pilão de pedra, bigornas. Em menor quantidade, mas com características ímpares, foram identificadas pinturas rupestres e gravuras picoteadas (esculpidas nas paredes das cavernas). Em 1998, foi descoberto um fóssil de mastodonte na Gruta do Angá.
A fauna cavernícola está por ser rastreada, e um dos indícios de sua relevância foi atestado pela bióloga Kassileny Gonçalves Rocha, em sua monografia de graduação na Universidade Federal de Ouro Preto. Ela identificou espécies importantes de troglóbios (fauna específica das cavernas) em algumas cavidades subterrâneas. Os troglóbios são considerados fauna ameaçada de extinção, e por isso sua proteção específica mereceu uma resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama). Como variam muito de acordo com as características físicas, químicas e ambientais do meio, algumas espécies podem ser encontradas em uma única caverna.
De importância fundamental para a biodiversidade, as cavernas agem como zona de contato do meio externo com um potencial hidrológico inestimável. São grandes responsáveis pela recarga de rios e aqüíferos, por facilitarem a penetração das águas superficiais. A complexidade hídrica traz também uma desvantagem ambiental: nesse tipo de relevo, a chuva carreia todo tipo de material diretamente para o lençol freático.
Os pesquisadores que atuam no carste de Pains estão longe de concluir um mapa hidrológico subterrâneo da área. Entretanto, a tese de mestrado “Gênesis e Evolução do Cânion Cárstico do Alto São Francisco”, de Marcelino de Morais, revelou o assoreamento e a diminuição do volume de água do rio São Francisco provocados pelo carreamento de resíduos sólidos para o seu leito.
O Ibama considera a mobilização para o estudo e preservação posta em prática na região de Pains um exemplo a ser seguido em outras áreas mineradas no país. Segundo Paulo Sérgio Teixeira, coordenador do Centro de Estudos e Monitoramento de Cavernas (Cecav), da cidade de Lavras, muitas empresas que atuam no centro-oeste de Minas Gerais têm atividades em outros Estados e estão começando a desenvolver ações combinadas com o setor público, atentando para a preservação ambiental. “É um ganho muito grande para esse setor e para o Brasil”, diz ele.
A Associação de Defesa do Meio Ambiente (Amda) mantém em seu site uma campanha em favor da preservação do carste de Pains. A campanha, intitulada “Se você não entrar na briga…”, incentiva o envio de e-mails para órgãos públicos, pedindo o apoio para as medidas sugeridas pela entidade.
* Roselena Nicolau é mineira de Belo Horizonte e jornalista. Foi repórter do Jornal do Brasil por 12 anos e atualmente é correspondente da Agência Sebrae de Notícias.
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