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Fruto da terra

Morto há 8 anos, o escritor Carmo Bernardes ainda é pouco conhecido fora de Goiás. Sua obra fala de um Brasil que está sendo varrido do mapa: o do Cerrado

Redação ((o))eco ·
9 de dezembro de 2004 · 19 anos atrás
O escritor Carmo Bernardes trabalhando. Foto: Arquivo Pessoal.

Assim como o Cerrado, Carmo Bernardes ainda é um tesouro escondido, que só reconhece quem vê de perto. A importância de sua obra para o conhecimento ambiental do Cerrado é incontestável em Goiás, onde ele se tornou uma figura popular. Seus escritos ganharam admiradores entre grandes nomes da literatura, como Drummond e Pedro Nava, mas permanecem praticamente desconhecidos no Brasil, oito anos após sua morte.

A habilidade de contar histórias sobre a vida na zona rural, em uma linguagem bem peculiar, unindo arcaísmos do português lusitano e expressões regionais, lhe rendeu o cobiçado Prêmio Cubano Casa de las Américas, em 1991, pelo livro de contos A Ressurreição de um Caçador de Gatos. Mas se a originalidade da linguagem lhe valeu um prêmio internacional e a distribuição de sua obra para os países de língua espanhola, foi a profundidade de seus conhecimentos sobre o Cerrado que fez de Carmo Bernardes um dos grandes ambientalistas que o país já teve. Um ambientalista que domina não só teoricamente os temas que aborda, mas que os vivenciou intensamente. “Minha literatura é toda baseada naquelas coisas que eu vivi, que vi, que eu enxerguei, que comi, antes dos 30 anos”, disse, em entrevista publicada em 2000 e reproduzida no livro Auto-retratos de escritores goianos, da Agência Goiana de Cultura Pedro Ludovico Teixeira.

Na verdade, o goiano Carmo Bernardes nasceu mineiro de Patos de Minas, em 1915. Sua família chegou a Formosa, Goiás, cinco anos depois. Em 1925, mudou-se para Anápolis. Naquele tempo, quando 90% da população do estado vivia no meio rural, a maioria das crianças deixava de estudar para aprender a profissão paterna. Foi o que ele fez, ajudando o pai a fabricar carros de boi, teares, engenhos de cana-de-açúcar e até caixões. Descrições detalhadas das peças e dos tipos de madeira usados para fazer um carro de boi ou um tear são encontradas no livro autobiográfico Quarto Crescente, publicado em 1972, fonte de pesquisa para os que estudam as tradições locais.

Foto: Arquivo Pessoal.

Grande parte dos conhecimentos sobre a natureza que apresenta neste e em outros 14 livros, adquiriu durante o período em que viveu na roça. Quando não estava trabalhando com o pai na fazenda, saía a caçar e pescar. Eram, porém, “caçadinhas” de pombas-do-bando, realizadas com a “espingardinha de passarinhar” ou com armadilhas de pegar inhambu, jaó, juriti e saracura. Como também faz questão de afirmar em suas obras, não gostava “de matar ser vivente à-toa”, caçava porque apreciava muito comer um “arroz com passarinho”, hábito natural na cozinha sertaneja.

O escritor demonstrava preocupação com a preservação das espécies que conhecia desde a infância e a certeza de que era possível um convívio harmonioso do homem com a natureza. Percebia-se testemunha de um mundo que já estava sendo destruído e chamava de “fazedores de deserto” os mineiros que vinham das cidades de Patos de Minas e Patrocínio na década de 20 para se instalar na região de Anápolis. “Em menos de vinte anos, os mineiros jogaram no chão com seus machados e suas foices afiadas, deixando apenas aqui e acolá uma pequena reserva para tirar uma madeira ou outra, não só os cinco mil hectares da fazenda de Antônio Dâmaso, como a mancha inteira do chamado Mato Grosso Goiano”, escreveu, também em Quarto Crescente, referindo-se ao desmatamento que presenciou na infância. Trechos como esse retratam o início de um processo de devastação, com a transformação do Cerrado em pastagens ou em grandes lavouras, que iria se acelerar nas décadas seguintes, resultando nos índices hoje apresentados pelos órgãos ambientais: dos mais de 2 milhões de hectares de Cerrado original, restam apenas 20%.

Mas o desejo de registrar as observações que fez na infância acerca da destruição do Cerrado não foi a única coisa a motivá-lo a escrever. Embora tenha freqüentado pouco a escola, desenvolveu o gosto pela leitura com a mãe, dona Sinhana, e planejou desfazer a imagem distorcida como os caipiras eram retratados na literatura. “Eu já saí da adolescência com uma revolta contra a maneira de o homem urbano ver o homem do campo. E pensei, com a minha ingenuidade, que se eu me tornasse um escritor, eu corrigiria isso tudo. Eu queria mostrar que nós, os homens lá do mato, temos uma cultura própria, nós vivemos realmente um outro Brasil”, disse em entrevista.

Quando o jornalista e ambientalista Washington Novaes o conheceu, em 1982, encantou-se com “aquele texto de um clássico da língua, matreiramente disfarçado na fala simples, deliberadamente simplória, quase de um homem do povo”, como conta no prefácio do último livro de Carmo, Selva: bichos e gente, publicado em 2002, seis anos após sua morte. O livro é um dicionário diferente e bem-humorado, com verbetes sobre muitos dos animais que compõem a selva brasileira, seus nomes populares, hábitat e as interessantes histórias vividas pelo próprio autor ou pelos homens que os destruíam. Verbetes como o do quati-mundéu, um animal que não gosta de viver solitário, mas tem uma sorte infeliz: “Todos os viventes que vivem às malocas são governados por um chefão, que não deixa a rapaziada nova ter sua vez com as fêmeas no cio. Quando ele começa a não dar no couro mais é a vez de um rapagão com toda força do viço tomar dele o harém. O vovô leva uma surra de quebrar osso, é escaramuçado do bando e obrigado a viver sozinho, sem licença nem mesmo de se aproximar da manada”.

Foto: Arquivo Pessoal.

Este foi, aliás, um papel que o escritor desempenhou bastante desde que seus escritos passaram a ser conhecidos. De acordo com a filha, Ana Maria do Carmo, o pai era freqüentemente procurado por ambientalistas e consultado quando os assuntos eram o meio ambiente e as tradições culturais dos goianos. Na década de 80, chegou a apresentar, no programa Frutos da Terra, da transmissora local da Rede Globo, um quadro sobre plantas, especialmente medicinais, bichos e costumes populares. A filha lembra, no entanto, que ele nunca pertenceu a qualquer entidade ambientalista, embora participasse bastante de encontros e congressos em que o tema era discutido. De acordo com o também escritor goiano Bariani Ortêncio, que dividia com Carmo o interesse pela cultura popular e que o chamava de “cientista do sertão”, ele não se engajava diretamente no movimento ambientalista, mas conseguia sensibilizar as pessoas com seus “causos” e a intimidade que demonstrava com o Cerrado. Ao lado outro ambientalista bastante conhecido em Goiás, Binômino da Costa Lima, o “Seu Meco” — que fundou em 1985 a ONG Sociedade Ecológica de Jataí (Seja), no sudoeste goiano – Carmo deu várias palestras para estudantes nesta região do Estado, contando “causos sobre a vida na roça”.

“Ele era um educador ambiental, embora não na acepção que se emprega hoje, mas alguém que se propõe a difundir novas práticas ambientais”, diz o diretor do Museu do Cerrado e professor do Instituto do Trópico Subúmido (ITS) da Universidade Católica de Goiás (UCG). “A sua grande contribuição reside na forma como ele abordou o Cerrado. Até então o Cerrado nunca tinha sido compreendido integralmente. O botânico, o geólogo, cada um se ocupa de um aspecto. Mas nenhum deles consegue vê-lo de uma maneira integral, na sua diversidade, com o mato fechado, as veredas, o cerradão e os homens ali interagindo. A literatura de Carmo reflete a sua globalidade”, afirma o professor, que se baseou nas obras do escritor para desenvolver sua “Teoria do Sistema Biogeográfico”, segundo a qual deve-se entender o Cerrado como um Sistema, com elementos interligados, de modo que qualquer modificação em um dos seus elementos afeta o sistema como um todo.

Carmo Bernardes. Foto: Arquivo Pessoal.

As obras, contos, romances e crônicas de Carmo Bernardes estão carregados de consciência preservacionista. No livro Jângala – Complexo Araguaia (1993), um de seus preferidos segundo sua filha, ele descreve de modo apaixonado, mas com grande precisão científica, o Vale do Araguaia, formado pelas terras que margeiam um dos mais importantes rios que cortam o estado de Goiás, denunciando as práticas agrícolas que degradavam o meio ambiente. Nesta obra, analisando a formação dos solos, mostra-se particularmente preocupado com a utilização das áreas de várzea para a implantação de lavouras de irrigação. “Para as várzeas do Araguaia a agricultura chamada de sequeiro, para as colheitas sazonais, se adotada com tecnologia própria, se nos parece ideal. Cabe à engenharia genética promover a criação de uma linhagem de plantas – cereais e leguminosas – aclimatadas às condições do meio, e aos agrônomos estabelecerem as variedades de cultivos que melhor se adaptem àquelas terras de deposições recentes”.

Mesmo diferenciando-se das outras obras, por se tratar de uma mistura de ensaio e reportagem, Jângala mantém o tom de nostalgia e curiosidade que caracteriza seus escritos. “Dado a especulagem e bisbilhoteiro”, como ele próprio se qualifica em seu relato autobiográfico, Carmo não perde oportunidade de desfazer equívocos e imprecisões nos estudos científicos e históricos. Com bom humor, esclarece, por exemplo, a razão por que a Ilha do Bananal, no rio Araguaia, onde vivem os índios Karajá, é assim conhecida, já que não há por lá um único bananal. A denominação equivocada deve-se, segundo ele, a um cronista descompromissado que, no início do século XIX, “passou pela ilha numa excursão apressada, e registrou a existência das bananeiras, dando-as como nativas”.

De acordo com o jornalista Washington Novaes, o escritor gostava de zombar dos cientistas e dos puristas da língua, como faz em seu livro Selva: bichos e gente, no verbete que trata da abelha “lambe-zóio”. “É, sem dúvida, divertido o escrúpulo que têm os puristas da língua quando a circunstância os obriga a utilizar vocábulos da fala espontânea do povo. Nos dicionários, aparece o nome dessa miudíssima e incômoda abelha, a lambe-zóio, na forma correta: ‘lambe-olhos’, expressão tão ridícula que chega a ser comovente”, escreveu.

As críticas ao excesso de rigor com o uso da língua não significavam, porém, que Carmo fosse descuidado com a correção gramatical de seus textos. Indignado com os erros apresentados na primeira edição do livro Jângala, ele mesmo ateou fogo aos mais de 500 exemplares.

No momento em que o governo federal anuncia a abertura dos arquivos referentes à Guerrilha do Araguaia, o livro inédito de Carmo Bernardes ganha súbita atualidade e importância política. Quem sabe assim, por linhas tortas, o estilo desse regionalista quase esquecido finalmente alcance o país e desperte uma nova atenção ao Cerrado?

*Lucivânia Fernandes é jornalista e escritora. Escreve crônicas para o jornal O Popular e é assessora de comunicação da Secretaria do Meio Ambiente e dos Recursos Hídricos de Goiás.

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