Reportagens

A batalha das pedras brancas

Em Itatiaia, instalação militar ajuda a isolar cidade em processo de favelização de um Parque Nacional. Os civis ainda têm muito a aprender com os militares.

Marcos Sá Corrêa ·
4 de janeiro de 2005 · 20 anos atrás

Se pintar pedra de branco for estratégia de combate, o Centro de Recuperação Intensiva Sargento Max Wolff deve estar pronto para o que der e vier. Quase todo quartel, no interior do Brasil, costuma anunciar aos transeuntes que ali se cultiva a disciplina mandando os recrutas lambuzarem de cal os meios-fios, os postes, os troncos de árvore e tudo que for incapaz de correr quando cai na mira de seus pincéis. Mas aquele centro do Exército fica em Itatiaia, que é uma paisagem feita de pedras soltas. E na sua frente os soldados tiveram coisa demais para caiar.

Ele está em local estratégico. Separa, no Vale do Paraíba, a cidade de Itatiaia e o parque nacional que tem o mesmo nome, mas vocação oposta à do município. A cidade parece que está ali para roer, até que as voçorocas comecem a empurrá-la de volta para baixo, todos os morros onde puder cavar um barranco para pendurar uma casa. O parque protege suas encostas com uma camada cada vez mais densa de mata atlântica.

O centro os divide, evitando que se esbarrem na estrada esburacada que sai da Via Dutra, entre São Paulo e o Rio de Janeiro, e sobe a Serra da Mantiqueira. No portão do Ibama, onde começa a unidade de conservação, o caminho encontra a floresta, que cresce lá dentro há quase 70 anos e em certos trechos da subida agora cobre o asfalto com um túnel de árvores.

Fora do parque, estende-se o mar de pastos escalavrados e terrenos baldios, desde que os cafezais passaram pelo Vale do Paraíba no século XIX, queimando tudo para dar títulos de barões a duas gerações de fazendeiros. Nem o centro de recuperação do Exército escapa. Seus morros ele nunca recuperou, mesmo depois de passar tantas décadas vendo de perto o que acontece a seu lado nas terras do parque do Itatiaia que, como ele, também é uma unidade do governo federal.

Ali já funcionou um sanatório militar, no tempo em que tuberculose se tratava com ar puro. Virou casa de repouso e hotel de trânsito, no meio de um capinzal onde corre, ainda limpo, o rio Campo Belo. Mas tem cara de quartel, não só pelas pedras brancas, como pela vegetação rala e rasteira que mantém a seu redor. Talvez ela sirva para avistar de longe o inimigo chegando. Mas os últimos combates a bala na região ocorreram há 72 anos, na revolução constitucionalista de 1932. E o capim continua lá, de prontidão.

Diga-se de passagem que, mesmo tomando conta de um terreno desertificado, manter a administração civil fora de suas cercas não deixa de ser um serviço inestimável que o Exército presta a Itatiaia. Com ela seria pior. A cidade é um exemplo de tudo o que não se deveria fazer diante de um parque aos pés das Agulhas Negras. E, em geral, a democracia mostrou nesses 20 anos que não sabe o que fazer com as cidades brasileiras. Ou que só sabe fazer favelas.

Basta uma viagem de uma viagem de trem pelos subúrbios do Rio de Janeiro para avaliar o que seria de Itatiaia sem o Sargento Max Wolff. Só no quartéis e nas vilas dos militares as casas têm varandas e quintais com mangueiras, as ruas obedecem a um projeto de urbanização ainda reconhecível e as praças de uso restrito são mais públicas do que as outras.

Os condomínios caros da Barra da Tijuca conseguem resultados parecidos com muros altos e segurança na entrada. Os militares marcam seu território pintando o meio-fio de branco. E, pronto, o populismo não entra. Parece tão fácil, incruento e eficaz, que não dá para entender por que até hoje nenhum governo se lembrou de pedir ao centro de Itatiaia para reflorestar os seus morros com a mesma disposição incansável que demonstra na hora de desembainhar a brocha de cal.

  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

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