Quando Andrew Marshall, o veterano funcionário do Pentágono, diretor do ONA (Office of Net Assessment) perguntou a Peter Schwartz: “Supondo que os caras do abrupto estejam certos, o que poderia acontecer?”, os dois provavelmente nem suspeitaram o bafafá que criariam na Europa e nos Estados Unidos.
Era previsível que a notícia de que o Pentágono tinha cenários catastróficos sobre o clima global virasse escândalo. Não é todo dia que esse bastião do reacionarismo prevê situações, para o futuro próximo, parecidas àquelas retratadas nos filmes-catástrofe de Hollywood. Pior, ainda, o tal relatório dizia que o EUA se sairia melhor, embora não incólume, que a Europa da tragédia climática global.
O Observer, de Londres, por exemplo, reagiu, tão logo o relatório vazou, dizendo em manchete que “agora o Pentágono avisa Bush: o clima vai nos destruir”. E, no subtítulo disparava: “relatório secreto alerta sobre tumultos e guerra nuclear” e “Grã-Bretanha será uma “Sibéria”, em menos de vinte anos”. Não era exatamente um relatório, nem era secreto, nem era a opinião do Pentágono. Mas o porta-voz do Departamento de Defesa e Peter Schwartz tiveram que passar semanas explicando que pesquisa não é documento de política e cenário não é previsão.
Para o futurólogo Peter Schwartz, a inquietação do Pentágono era natural e correta. Ele acha que quem tem grandes responsabilidades, que se projetam no tempo, deve examinar todas as hipóteses sobre o futuro, principalmente as mais extremas. A tese central no desenho de cenários – e das análises de risco de longo prazo – é que de onde menos se espera é que saem os eventos que mudam o curso de nossas vidas e a história. Tenho trabalhado há mais de quinze anos fazendo análises de risco e cenários e, na maioria esmagadora das vezes, as situações de crise, os grandes prejuízos, as grandes mudanças, saem de uma configuração de eventos que costumamos chamar, tecnicamente, situações de baixa probabilidade e alto impacto. Peter Schwartz costuma dizer em suas palestras que vivemos em um mundo de descontinuidade perpétua. Por isso intitulou seu novo livro de “Surpresas Inevitáveis”. São inevitáveis, mas podem ser antecipadas, porque deixam pistas e têm antecedentes. O problema, reflete, é que as pessoas, as organizações e os governos não estão “levando a noção de grandes descontinuidades e grandes surpresas a sério”.
Schwartz e sua turma não estão muito interessados no que é mais provável, dispensam as lupas do curto prazo e usam uma super-teleobjetiva para ver o mais longe possível. Por isso acharam natural o interesse do Pentágono nas conseqüências da ocorrência de eventos que os “caras do abrupto” consideram possíveis. Marshall, o diretor o Office of Network Assessment (ONA), é o “gênio residente” do Pentágono, para quem a organização se volta, quando precisa pensar sobre o longo prazo e as macrotendências, como explicou o porta-voz do Departamento de Defesa, subcomandante Dan Hetladge. O que Marshall tinha a dizer sobre sua encomenda é que “o Departamento de Defesa olha à frente, para se assegurar de que estejamos preparados no futuro para qualquer contingência”. Segundo Doug Randall, co-autor do estudo, o cenário não reflete uma mudança na visão da administração Bush sobre mudança climática. Apenas é obrigação do Pentágono “pensar o impensável”. Afinal, mudança climática global é ou não um assunto que tem a ver com estratégias de longo prazo, preparação e prevenção (“preparedness”, no jargão do Pentágono)?
Walter Cronkite, que cobre Washington há décadas, entendeu o ponto e defendeu os “caras do abrupto” e o estudo encomendado pelo Pentágono, no Philadelphia Enquirer: “não são previsões, mas possibilidades reais, muito mais plausíveis hoje do que os cientistas imaginavam no passado recente. E enquanto os politicos (sic) da Casa Branca continuam a enfiar suas cabeças na areia, alguns poucos no Pentágono se dedicam à tarefa de estudar as implicações da mudança climática abrupta para a segurança nacional”, escreveu.
A teoria da mudança repentina propõe que as conseqüências do aquecimento global podem ocorrer repentinamente e em poucos anos gradualmente, e não como a tese dominante prevê. Tudo começaria como dizem os gradualistas, com o derretimento dos glaciares, mas incluiria a diluição da salinidade dos mares. A salinidade é um elemento determinante da corrente marítima que leva águas quentes dos trópicos para o norte e águas frias para o sul, processo que modera as temperaturas no leste do EUA e na maior parte da Europa. O colapso desse mecanismo poderia, na pior hipótese, produzir uma nova era glacial e, na melhor, invernos severíssimos, tempestades de violência nunca vista, enchentes enormes, secas prolongadas e ventos fortíssimos, o que romperia as cadeias de produção alimentar, as fontes de fornecimento de energia e elevaria o nível dos mares, a ponto de inundar as cidades costeiras e torná-las inabitáveis.
Um dos “caras do abrupto”, o físico oceanográfico Stefan Rahmstorf, do Instituto de Pesquisas sobre o Impacto do Clima de Potsdam, reclama que a imprensa não consegue entender a noção de risco. Conta que saíram duas versões opostas de entrevista que deu à imprensa, para explicar como correntes oceânicas poderiam detonar mudanças repentinas. Uma, “altamente dramática”, diz ele, “confundia análise de risco com previsão”. A outra, dizia que nada havia com que se preocupar, porque ele declarara que “era improvável que acontecesse”, confundindo baixa probabilidade com baixo risco.
Rahmsford afirma que tem crescido a preocupação entre os cientistas especializados em oceanografia, de que rápidas mudanças nas correntes oceânicas possam ser detonadas pelo aquecimento global. “Não estamos, ainda, seguros sobre quanto mais quente seria preciso ficar para que isto aconteça, mas se e quando essa marca for ultrapassada, as conseqüências para o noroeste da Europa seriam provavelmente muito severas”, disse. Essa fronteira de aquecimento, segundo ele, pode perfeitamente, ser alcançada ainda nesse Século, mesmo na hipótese de aquecimento mais aceita hoje pelos cientistas e sem a presença de qualquer fator agravante ou acelerador. Ou seja, existe o risco de que o aquecimento já esperado nas condições presentes possa ativar processos nada rotineiros ou lineares.
Peter Schwartz foi tratado por parte da imprensa como um leigo falando de coisas de que não entende. É um engano, ele não é um cientista especializado, como Rahmsford, mas não é um amador. É um metodólogo e futurólogo profissional. Ajudou a criar e aperfeiçoar, métodos de desenho de cenários, baseados na identificação e análise de tendências, comportamentais, científicas, ambientais, organizacionais, tecnológicas, etc., que podem dar forma e dinâmica a eventos futuros. Ele passa todo o tempo buscando detectar descontinuidades e rupturas possíveis, que criariam ameaças e oportunidades futuras, para empresas, governos, países e o próprio planeta. Graduado em engenharia aeronáutica e astronáutica pelo Instituto Politécnico Rensselaer, trabalhou quase toda a vida na área de análise estratégica e de risco. Seus cenários ajudaram muitas empresas a antecipar grandes mudanças e se preparar para elas.
Trabalhou como consultor de roteiro para diretores como Steven Spielberg e ajudou a criar os ambientes de filmes tão diversos como “The Minority Report”, Impacto Profundo, “Sneakers” e Jogos de Guerra. Embora seus cenários não sejam obras de ficção, parte da técnica de cenários é o desenvolvimento de enredos. Daí ter se tornado consultor de roteiros. Recentemente publicou trabalho sobre a construção de cenários que trata, exatamente, da técnica ou arte do “enredo”: “Plotting Your Scenarios: An Introduction to the Art and Process of Scenario Planning”. Ele começa o ensaio ensinando que cenários são narrativas de ambientes alternativos, nos quais as decisões de hoje podem ser examinadas criticamente. Não são previsões, nem estratégias. São “hipóteses de diferentes futuros especificamente desenhados para acentuar os riscos e as oportunidades envolvidas em questões estratégicas específicas”.
Os cenários para o Pentágono foram construídos com base em entrevistas com cientistas especializados em mudança climática. Eles submeteram várias versões ao painel de especialistas, até chegar ao desenho final. Os cientistas apoiaram o resultado, mas alertaram para o fato de que o cenário descrito é extremado. “Eles sugerem que as ocorrências que esboçamos ocorreriam mais provavelmente em algumas poucas regiões do planeta e não globalmente e dizem que a sua magnitude pode ser consideravelmente menor”, os autores explicam no texto de introdução.
O que fizeram foi um cenário de mudança climática que, embora não seja o mais provável, é plausível e desafiaria a segurança nacional dos Estados Unidos “de maneiras que deveriam ser objeto de imediata consideração”. O objetivo é confrontá-lo com a hipótese gradualista dominante, que imagina mudanças incrementais, ainda que continuadas, no clima global. Essa comparação permite examinar praticamente todas as alternativas, no espaço entre um e outro. Com o menor número possível de narrativas, conseguiram cobrir todas as velocidades possíveis de alteração climática. Quanto mais preparado o mundo estiver para a hipótese mais extrema e quanto mais esforço fizer para evitá-la, maior a probabilidade de que ela não ocorra e sim alguma das alternativas intermediárias.
O cenário se baseou nas seguintes condições:
As temperaturas anuais médias caem em torno de 2,8º Celsius na Ásia e na América do Norte e 3,3º no norte da Europa. As temperaturas anuais médias aumentam até 2.2º Celsius em toda a Austrália, na América do Sul e no sul da África. Seca persistente por mais de uma década em áreas agrícolas críticas e nas regiões onde estão fontes de água para centros populacionais significativos na Europa e no leste da América do Norte. Tempestades invernais e ventos se intensificam, amplificando os impactos das mudanças. A Europa Ocidental e o Pacífico Norte enfrentam ventos intensificados.
Como essas mudanças ocorrem de forma abrupta, no espaço de uma década, seus impactos podem ocasionar rupturas nas economias e no ambiente geopolítico, desestabilizando gravemente a ordem mundial, levando a conflitos, tumultos, batalhas localizadas e até mesmo guerras por causa da queda na oferta de alimentos e energia e na disponibilidade e qualidade de água fresca.
Nações mais ricas tratarão de preservar os recursos para si mesmas, aumentando sua capacidade de ataque e defesa. As menos afortunadas, especialmente que tenham inimigos antigos, podem buscar acesso a alimento, água limpa ou energia por meios violentos. Alianças impensáveis podem se formar com a mudança nas prioridades de defesa e militares, passando o objetivo estratégico garantir recursos para sobreviver e não mais religião, ideologia ou orgulho nacional.
Do cenário retiram os desafios para o governo: melhorar os modelos de previsão climática para cobrir um leque mais abrangente de cenários e antecipar como e onde as mudanças ocorrerão; melhorar as projeções sobre como o clima poderia influenciar a disponibilidade de alimentos, água e energia; criar medidas de vulnerabilidade para identificar os países mais ameaçados pela mudança climática e cujas reações poderiam aumentar o risco de desordem e violência no mundo.
Nada que qualquer governo sério não devesse estar fazendo. Mas é o contrário do que o governo Bush faz. A posição oficial é que não existe consenso científico e os cientistas não são capazes de determinar quanto mais de aquecimento é necessário para que ocorram mudanças climáticas de vulto.
A teoria da mudança abrupta realmente não tem apoio consensual. Porém, há mais consenso sobre clima, do que Bush está disposto a reconhecer. O consenso científico sobre o clima tem sido objeto de muito interesse e discussão no próprio meio científico.
Recentemente, um grupo de cientistas do clima, preocupados com as confusões sobre o tema, criou um blog, Real Climate (Clima Real), para divulgar as opiniões científicas sérias sobre o assunto e corrigir os erros da cobertura leiga e dos livros e filmes supostamente embasados cientificamente, como a nova novela de Michael Crichton, State of Fear (Estado de Medo) sobre terroristas “ecoclimáticos” e o filme “O Dia Depois de Amanhã”.
Uma parte considerável da discussão recente nesse blog é sobre qual é hoje o consenso científico sobre o clima. Foi, em grande medida, provocada por artigo da geóloga Naomi Oreskes, do Departamento de História da Ciência da Universidade de Harvard, sobre “O Consenso Científico sobre Mudança Climática”, publicado na seção da revista Science que tem o sugestivo título “Além da Torre de Marfim”. Oreskes se baseou em uma amostra de 928 artigos científicos sobre clima publicados em revistas arbitradas, isto é, que requerem a aprovação de cientistas da área para publicação, e mostrou que 75% deles faziam parte do consenso e nenhum o contestava. Pelos cálculos de Eric Steig, um dos editores do blog, com base na amostra de Oreskes, nenhuma contestação significa, na verdade, que, “com alta confiança (95% de chance de estar certo), a taxa efetiva de artigos revistos por pares contra o consenso é quase certamente menor que 0,3%”.
Com base nos resultados de sua sondagem da literatura científica, Naomi Oreskes escreveu no Washington Post que “existe consenso científico de que o clima da terra está esquentando e as atividades humanas são parte da razão disso. Precisamos parar de repetir coisas sem sentido sobre a incerteza do aquecimento global” e começar a buscar seriamente formas de enfrentar o problema. Não fosse pela garimpagem de quase mil artigos de ciência climática, Oreskes merece crédito por seu trabalho científico. Seu livro mais recente, “Plate Tectonics: An Insider’s History of the Modern Theory of the Earth”, conta a história da evolução da teoria das placas tectônicas, que explica, entre outras coisas, a tsunami. Foi considerado um dos melhores livros de ciência de 2002, pelo conceituado Library Journal.
O consenso dos cientistas está registrado no relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC), publicado como Climate Change 2001: The Scientific Basis (Mudança Climática 2001: A Base Científica).
No seu artigo para a Science, Oreskes diz que usou o consenso do IPCC para avaliar os artigos científicos de sua amostra. Na sua avaliação mais recente, o IPCC mostra que o consenso da opinião científica é de que o clima da terra está sendo afetado pela ação humana, diz ela. Segundo esse relatório, as atividades humanas estão modificando a concentração de constituintes da atmosfera que absorvem ou espalham a energia radiante. A maior parte do esquentamento ao longo dos últimos 50 anos provavelmente se deve ao crescimento das concentrações de gases de efeito estufa, diz o relatório. A Academia Nacional da Ciência, do EUA, em documento recente, diz que o IPCC fez uma síntese correta do pensamento científico profissional. “A conclusão do IPCC de que a maior parte do aquecimento observado se deve muito provavelmente ao aumento da concentração de gases de efeito estufa reflete com exatidão o pensamento científico atual sobre o assunto”, afirma.
Não há concordância científica sobre o ponto a partir do qual esse aquecimento pode provocar mudanças de grande impacto. Por causa dessa incerteza, Peter Schwartz diz, em seu livro “Surpresas Inevitáveis”, que não nos devemos preocupar com o aquecimento global. O que interessa é que o longo ciclo de estabilidade relativa do clima – um período de 10 mil anos no qual a civilização humana se desenvolveu – pode estar no fim. O principal sinal disso é a redução já observada na salinidade das águas do Atlântico Norte. Talvez, em uma década ou pouco mais, a Europa pode estar muito parecida com o Canadá e o clima da Califórnia parecido ao do Norte da África.
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