Reportagens

38 anos de solidão

Depois de meia vida sozinho numa ilha catarinense, o pescador João D’Angerca foi expulso pela Marinha e se matou. Hoje é considerado um mártir ambiental.

Carla Lins ·
18 de fevereiro de 2005 · 20 anos atrás

O nome do pescador João D’Angerca está se tornando cada vez mais conhecido em Santa Catarina. Evocado como um mártir defensor do meio ambiente, ele ocupa uma categoria diferente daquela de Chico Mendes e da irmã Dorothy. Nunca se engajou em grandes campanhas ou lutas políticas. É reverenciado pela forma como escolheu viver: por 38 anos na deserta Ilha dos Corais, a 45 minutos da badalada praia da Pinheira.

Ele também escolheu a forma de morrer: matou-se em 2002 com um tiro de espingarda, depois que foi sacado da ilha pela Marinha de Guerra, proprietária do pedaço.

Seu gesto não foi nenhum sacrifício pensado, muito menos um gesto que pudesse ser usado como o marketing de protesto. Ele já tinha 80 anos, ainda lépido e faceiro, quando foi afastado da ilha, em 2000, por um simples ofício assinado pela Capitania dos Portos. Quase analfabeto, não contestou a decisão e mudou-se para o continente.

Agüentou ali dois anos. Tinha dias em que subia numa pedra e ficava olhando o mar na direção da ilha distante, ar triste, acabrunhado. Nos botecos, depois de alguns goles, resmungava um pouco. Queixava-se a velhos pescadores da falta de “sua” ilha. Fazia planos de voltar. Mas foi definhando, definhando, sem protestar, até o dia em que se deu um tiro no coração.

“Ele agia como se a ilha fosse dele, se sentia dono dela”, conta o filho Domingos – ele é caminhoneiro, quebrando a tradição de seus ancestrais açorianos de viver do mar. “Seu João não era dono de nada, a Ilha dos Corais é propriedade da Marinha”, diz o capitão dos Portos Antônio Carlos Frade Carneiro. E o homem João? “Nunca concordamos com a permanência dele lá, o lugar serve apenas para abrigar um farol auxiliar de navegação”, responde o militar, imperturbável.

Estão certos o capitão e também o ermitão. O povo sabe que a ilha dos Corais é da Marinha, mas muitos dos antigos ainda dizem “a ilha do João D’Angerca”, assim como o estádio Mário Filho é o Maracanã. João Manoel Borges era seu nome. O “D’Angerca” é a maneira errada como os manezinhos dizem Angélica, a mãe dele. Assim o “João da Angélica” adquiriu um sobrenome afrancesado, ar fino. Nada, ele era da estirpe mané, nobreza de beira de praia, descendente dos colonizadores.

A ilha que ele ocupou é um pedaço estéril de costão, sem praia, vegetação alimentada pelas chuvas. Uma caminhada de 40 minutos cruza toda ela. O costão de corais brancos é rico em peixes e atrai mergulhadores. A Marinha proíbe até barcos pequenos de se aproximarem, devido ao risco das pedras. O lugar é parte da Reserva da Serra do Tabuleiro. Duas vezes por ano um marinheiro vai lá botar combustível no farol, o único sinal do poder público.

João ocupou a ilha em 1964. “Ele foi pra lá quando a mamãe morreu”, conta a filha Roseli. O drama: com três filhos pequenos, a mulher morre no parto do quarto. Enlouquecido pela dor, o homem deixa o bebê com parentes e vai passar alguns dias sozinho. Gosta, leva os outros filhos e não volta mais.

A vila de pescadores da Pinheira, hoje um reduto de surfistas bronzeados e onde a maior celebridade é o modelo e pousadeiro Paulo Zulu, pensou que o homem tinha pirado. Baixinho, enrugado pelo sol, vestido quase sempre em farrapos, eternamente de chinelos, ele não deu bola pra ninguém e se manteve firme na decisão.

João ergueu um portão na entrada da ilha, na nesga de areia que permite a atracação de baleeiras. Construiu uma casinha, plantou uma horta de feijão e melancia, levou alguns cabritos para leite, pescou para alimentar os filhos. Sua rotina era simples: acordar com o sol, capinar, pescar, fazer redes e pequenos trabalhos em palha, dormir cedo – mulher, nunca mais.

Depois dos 75, quando a energia já não era mais a mesma, ele fazia visitas ocasionais ao continente para comprar mantimentos. Dizem que jamais ficava mais do que o necessário para ir à vendinha, mas deve ser um mito. Até ao médico ele foi, e considerando a demora do SUS para uma consulta…

A casa tinha o mínimo de conforto. Ele usava latas pra esquentar água, em fogão a lenha. Neca de banheiro. A turma fazia como o Fortunato, aquele que usa o mato. Anos depois os filhos reclamaram da vida que levavam. Roseli, quando fez 18, conseguiu fugir, nunca mais voltou. Os outros também se mandaram, queixando-se que não puderam estudar.

Hippies e turistas que passaram pela ilha por décadas o retratam como um brilhante contador de histórias ao pé das fogueiras. Era o anfitrião ideal. Ajudava os chegantes a ancorar seus barcos, indicava os melhores points pras barracas, trocava serviços por comida. Era afável e hospitaleiro, mas zelava pela limpeza como um cão de guarda – fazia os sugismundos levarem o lixo para o continente.

O ermitão também cobrava uma pequena taxa por visitante, dinheiro que usava para comprar pequenos confortos na terra firme. O comerciante Ênio Lemos, que rolou por lá nos anos 80, calcula que se fosse hoje seria 1 real por pessoa: “Não era ganancioso, a gente até dava mais do que ele pedia”.

O velho pescador era dado ao trago. Inventou uma beberagem de raízes e mel, acrescentando cachaça ou, de preferência, Campari, trazidos por turistas. A receita é desconhecida, mas quem bebeu diz que provocava vertigens.

Ninguém sabe quando foi que a popularidade do velhinho começou a incomodar a Marinha de Guerra, nem qual foi o almirante que decidiu “retomar” aquela rocha dele. É certo que nos anos 90 alguém pediu sua saída. Depois que ele se foi a polícia desmanchou o barraco. Alguns cabritos foram caçados e, dizem na Pinheira, acabaram no espeto das “otoridades” caçantes. O portão virou lenha. Sem o velhinho para auxiliar na atracação, escassearam os navegantes – tudo agora na paz de cemitério.

Uma das últimas pessoas na ilha conta que a única coisa que sobrou da passagem do homem foi uma pequena cruz de tijolos, também obra dele. Talvez João D’Angerca tenha vencido: a cruz deve ser para dizer que ele estará para sempre na sua ilha. Entre o mar e o céu.

* Carla Lins tem 21 anos e é recém-formada jornalista em Florianópolis.

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Comentários 8

  1. Luis Felippe diz:

    Realmente é uma história muito bacana. Sou nativo da Praia da Pinheira, e tenho muitos parentes que conviveram com seu João. Essa tal cruz de tijolos, dizem que na época existia uns sons e barulhos na ilha, como seu João conta no documentário feio em 1985. Dizem que depois que ele fez essa cruz, parou os tal barulhos estranhos. Os pescadores da Pinheira era quem fazia o translado para seu João e quem mais conviviam lá, pescando, bebendo cachaça que seu João mesmo fazia. Ele tinha uma casa na Pinheira, onde se matou. Segundo esses pescadores seu João caiu na pilha do Sr. Rodolfo, o tal do “espanhol” dono do Hotel do espanhol na orla da Praia da Pinheira. Seu João então passou a cobrar do pessoal para visitar a ilha. Foi onde a Marinha e Capitania dos Portos tiraram ele de lá. Depois de dois anos já em terra na Pinheira, dizem também que ele ia quase todos os dias no costão da Guarda do Embaú e ficava olhando a ilha. Seu João não gostava muito do pessoal de Garopaba, pois iam para ilha pescar e roubavam suas bananas e outros plantio. Seu João então já em terra na sua casa, insatisfeito com a vida e tudo que vinha acontecendo, fez uma amarração em sua espingarda, e tirou sua própria vida. Deitado em sua cama seu João foi achado dias depois. É uma história triste, mas muito bacana pra se lembrar, é histórico!


  2. Ademar dos Santos diz:

    Conhecia o seu João desde pequeno, até porquporque ele é de Paulo Lopes, e eu também. Estive muitas vezes na Ilha, conversava muito ele sobre histórias dele com o meu avô: Geraldino José dos Santos. A última vez que fui na Ilha foi em 2001, ele já era falecido, e a ilha não era mais igual. Ele deichou saudades.


  3. Carlos A Michel diz:

    Tenho um video feito lá pelos anos 80 com o Sr. João, na ilha dos corais


    1. carol diz:

      Oi Carlos, você tem esse vídeo? estou criando um livro em homenagem ao João!


  4. Lourival Lopes diz:

    Nome correto do sr. João Zeca é João Manoel Borges (12 de julho de 1918 — 29 de maio de 2000), popularmente conhecido como «Zé d'Angerca» ou «Zé das Cabras»,


  5. Ricardo verardi diz:

    João o homem da ilha dos corais, vendeu os direitos que tinha , de sua permanência quê era quase 40 anos, viveu e foi feliz em sua permanência , e com suas cabras , era sua fazenda, sua casa, se considerava o homem mais feliz , era seu espaço, a ilha era tudo para esse grande guerreiro e lutador solitário, pois dizem que ninguém e insusbtuivo mais paresse João era o cara, pois permaneceu sozinho nessa jornada por sua luta pela sua sobrevivência .
    Quanto a venda da ilha João jeca vendeu para um empresário , mais sua permanência na ilha foi uma das cláusulas que ele teria que continuar a zelar e ser a pessoa mais importante , pois a ilha era o João jeca, esse empresário conhecido por ser o espanhol do hotel , que faleceu em dezembro 2008, o fundador e latifundiário do loteamento , sendo o diretor e proprietário da empresa promotora catarinense de vendas Ltda proprietário do hotel.


  6. patricia diz:

    Na verdade ele vendeu a ilha para um comerciante na região e a marinha descobriu e começou a "incomodar" junto com o IBAMA. Então ele partiu da ilha. Ele se matou em 1998, e não em 2002, saiu em 2000. A ultima vez que esteve na ilha foi para matar os cabritos mencionados. Contam as pessoas que o conheceram que ele deu a volta na ilha de barco, para se despedir do seu lar.


  7. Darcilene Gonçalves diz:

    Li uma matéria na revista globo rural, há mais de 20 anos, sobre seu João, eu ainda era criança fiquei impressionada, ele me impulsionou a grandes aventuras. Parabéns pela matéria.