Com o início do mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e mais recentemente, a eleição de Rodrigo Pacheco (PSD) para a presidência do Senado, uma pergunta não quer calar: “qual o destino do PL do Veneno neste governo?”.
Em dezembro, por pouco o PL 1459/2022 (Substitutivo da Câmara dos Deputados ao Projeto de Lei do Senado nº 526, de 1999) não foi posto em votação no Senado. A proposta que tramita na casa poderia ter sido sancionada ainda no governo de Jair Bolsonaro. Por pressão da Sociedade Civil, a votação do PL no plenário do Senado foi deixada para 2023.
Com o início do ano legislativo, em 1 de fevereiro, o PL pode ser votado a qualquer momento. Isso porque a proposta não se enquadra na regra de arquivamento por estar tramitando há mais de três legislaturas.
Segundo o assessor de Advocacy da FIAN (Organização pelo Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas), Pedro Vasconcelos, as novas regras de arquivamento de projetos do Senado preveem exceções nas quais o PL do Veneno se enquadra. “A proposta cai em duas exceções: é um projeto do Senado alterado pela Câmara e tem parecer favorável de uma comissão do Senado”, esclarece.
O conhecido Pacote do Veneno foi proposto, inicialmente, em 2002, pelo Senador Blairo Maggi, à época, do Partido Popular Socialista (PPS). Até chegar ao Senado, onde foi analisado e aprovado pela Comissão de Agricultura e Reforma Agrária, em dezembro, passou por diversas alterações na Câmara. Ambas as condições o colocam apto à entrar na ordem do dia a qualquer momento.
Na avaliação da porta-voz de Agricultura e Alimentação do Greenpeace Brasil, Marina Lacôrte, o PL pode entrar na ordem do dia a qualquer momento. “A gente sabe que tem uma pressão muito grande dos ruralistas no Senado. Existe uma chance relativamente grande deste projeto entrar em votação a qualquer momento. Mas a sociedade civil vai continuar pedindo uma coisa que ainda pode acontecer, que é passar esse projeto pelas outras comissões para que elas avaliem e deem o seu parecer, porque a gente acredita que esse projeto não tem salvação”, avalia.
A integrante da Campanha Nacional de Combate aos Agrotóxicos, Suzana Prizendt considera a conjuntura do Senado, após renovação parcial da Eleições 2022, desfavorável. “Tem alguns senadores novos, mesmo assim, nessa renovação, ainda teve uma forte presença da ultradireita. O caminho é o enfrentamento político, mobilizar a sociedade, os parlamentares, que a gente tem contato, acionar as organizações não-governamentais, fazer denúncia, inclusive internacional, pois a gente sabe que tem um olho internacional forte para o Brasil”, considera.
A aprovação do PL do Veneno pode fazer com que o Brasil supere um triste recorde alcançado nos últimos quatro anos. A liberação do maior número de agrotóxicos da história do país. Entre 01 de janeiro de 2019 e 31 de dezembro de 2022, o Governo Bolsonaro liberou 2.182 agrotóxicos, quase dois novos produtos por dia. Os dados são do Greenpeace. A integrante da Campanha Nacional Contra os Agrotóxicos, Suzana Prizendt, avalia que com um volume destes, não há tempo hábil para uma análise de qualidade. “Dois mil e poucos aprovados em quatro anos! É uma bomba química! A gente tinha uma média de 50 a 100 agrotóxicos liberados por ano, que já é errado, pois muitos deles já eram proibidos na Europa, mas é o mínimo que você pensa que a Anvisa, o Ibama vão ter [condições] para analisar [com mais qualidade] esses agrotóxicos. Agora, você fica imaginando assim… mais de um agrotóxico por dia? Que análise uma comissão técnica pode fazer? Nenhuma!”, considera.
“No governo Bolsonaro, nós não tivemos nenhum problema novo na nossa agricultura, mas nós temos 2 mil e poucos novos agrotóxicos, que são apresentados como modernos, mas, na verdade, são Franksteins, que estão sendo reeditados e vendidos como novos”, observa o ex-representante do Ministério do Desenvolvimento Agrário na Comissão Técnica de Biossegurança, Leonardo Melgarejo.
Prevendo, dentre outras mudanças, um papel meramente consultivo à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), o PL do Veneno pode manter o Brasil neste ritmo recorde de aprovação de novos agrotóxicos. “Eles [a Anvisa e o Ibama] não têm o poder na prática, [numa eventual aprovação do projeto] eles poderiam emitir um parecer, agora, esse parecer não teria que ser acatado. Isso e nada, quando você tem um Ministério da Agricultura nas mãos do agronegócio, é a mesma coisa. O critério do Mapa é assim: ‘esse agrotóxico matou a praga? Ah, matou, então, aprova!’. Não tem o critério da saúde, não tem o critério da contaminação ambiental”, avalia
A quem interessa tanto agrotóxico
O número recorde de agrotóxicos aprovados nos últimos quatro anos se soma a outros, que já haviam acendido um alerta para os riscos de saúde e ambientais que estes produtos oferecem. Entre os anos de 2018 e 2020, a quantidade de toneladas de agrotóxicos comercializadas pulou de 549 mil para 685 mil, ou seja, um incremento de quase 150 mil toneladas. Isso equivale a 3,24 quilos de veneno por pessoa.
Este número pode ser ainda maior, se considerarmos que há muitos agrotóxicos contrabandeados e que não passam pelos registros oficiais. Os dados foram apresentados pela pesquisadora e professora aposentada da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Sônia Corina Hess, durante o 3º Seminário Internacional sobre consequências dos Agrotóxicos de Curitiba, realizado em dezembro de 2022.
O que chama atenção é que, ainda segundo a pesquisadora, entre os anos de 2013 e 2020, a quantidade de área cultivada no Brasil aumentou 15,2%, enquanto a quantidade de agrotóxicos chegou a 38,3%, ou seja, mais de duas vezes mais.
A adoção de espécies transgênicas nos cultivos de commodities pode ser o pano de fundo para manter as portas abertas para tantos agrotóxicos no Brasil, segundo Leonardo Melgarejo. Dados da Embrapa apontam que 92% da soja cultivada no Brasil é transgênica. Já o milho é 90% e o algodão, 47%.
Isso significa que essas espécies receberam genes de outras espécies para se tornarem imunes a uma, duas e até três tipos de agrotóxicos diferentes. Portanto, o agroquímico destinado a matar pragas e espécies pode ser amplamente aplicado sem afetar o desenvolvimento da espécie transgênica. “A operação [aplicação de veneno] é feita para a planta receber aquele agrotóxico sem morrer. Para que morram as outras plantas, que numa lavoura, a natureza pela luz, pela umidade, força o brotamento de sementes que estão no solo”, explica Melgarejo.
O professor da Universidade Estadual de Goiás (UEG), Murilo Mendonça, frisa que é importante entender que a mudança genética nas espécies cultivadas não tem o objetivo de torná-las mais produtivas. “O grande objetivo é fazer com que essas novas variedades consigam suportar mais o uso massivo de agrotóxico”, esclarece.
No pano de fundo dos transgênicos também está o lobby econômico. De acordo com o professor Murillo, grandes empresas como Bayer, Basf, ChemChina e Dow Dupont, sozinhas, controlam mais de 70% de todo o mercado mundial de agrotóxicos e sementes. Essas multinacionais encontraram no Brasil e em outros países da América Latina um campo fértil para lucrar com produtos banidos da Europa e até da própria China, que, em muitos casos, é a própria fabricante.
Só para se ter uma ideia, na leva dos mais de 2 mil agrotóxicos aprovados no Brasil, nos últimos quatro anos, três das cinco substâncias, associadas a casos de câncer, malformação e comprometimentos ao desenvolvimento infantil, há muito tempo, estão banidas da Europa. São elas: Glufosinato, presente em 64 produtos aprovados, Atrazina, 52, e Fipronil, 49.
“Se o agrotóxico é banido da Europa, passa a ser mais interessante para os países onde não há tanta preocupação com a saúde pública. No Brasil, nós tivemos no governo Bolsonaro uma avalanche de agrotóxicos aprovados”, complementa Melgarejo.
“O que me deixa muito nervosa e chateada é que a gente está usando lixo dos outros. Se o troço tá banido na União Europeia, porque que a gente tem que usar aqui? A Atrazina, proibida na União Europeia em 2004, em 2005, foram comercializadas 33 mil toneladas em um ano no Brasil. Ai fala em modernizar, modernizar o quê, com coisa velha! É porque nós somos sub, né!”, avalia Sônia Hess.
Outro bom exemplo do lobby das empresas é a forma como os departamentos jurídicos atuam apresentando recursos jurídicos até que um determinado tipo de produto que estava prestes a ser proibido, seja finalmente aprovado, como pontua Suzana. Já Sônia Hess, cita o exemplo do Carbendazim, um tipo de agrotóxicos que causa câncer, como comprovaram estudos, e que foi proibido no Brasil em agosto de 2022. No entanto, como havia um bom volume do produto disponível no Brasil, foi autorizado o seu uso em lavouras por um ano até que acabassem os estoques.
Cerrado, a principal vítima dos agrotóxicos
Segundo dados do artigo “Ecocídio nos Cerrados: agronegócio, espoliação das águas e contaminação por agrotóxicos”, 110 milhões de hectares do Cerrado estão ocupados por cultivos de commodities do agronegócio. Anualmente, ainda segundo o mesmo estudo, os cultivos de soja, milho, cana-de- açúcar e algodão recebem, anualmente, cerca de 600 milhões de litros de agrotóxicos.
Um bom exemplo do que ocorre no Cerrado é o que vivenciam as famílias indígenas Akroá Gamela, no Vale do Vão do Vico, no município de Santa Filomena, no cerrado Piauiense.
No local, nove famílias vivem cercadas por grandes plantações de soja das empresas Damha Agronegócio e Insolo. As famílias da aldeia Akroá denunciam que no período do inverno, quando o agrotóxico é aplicado na soja, por via aérea ou terrestre, a chuva faz com que o produto escorra e atinja o brejo e a lagoa que serve ao sustento da comunidade. As lavouras da região estariam localizadas em área de serra e a aldeia Akroá fica no baixo.
“A água leva todo o produto químico jogado em cima da serra diretamente para o nosso brejo. Consequentemente vai pra lagoa também. O brejo é da onde a gente gira a água pra tomar e a lagoa é onde a gente pesca né? Da onde a gente tira nosso alimento”, denuncia a jovem indígena Jaira de Lima, de 23 anos, filha de uma das lideranças da comunidade .
Jaira conta que quando a aplicação é feita por via aérea, com aviões, quem passa na estrada sente o cheiro forte do produto. “É aquele cheiro forte, causa tontura mesmo. Não é só nós que moramos na aldeia, mas várias outras pessoas quando passam pela estrada sentem o cheiro forte do veneno e falam que ficou tonto e teve que parar a moto. Às vezes, a gente [também] se assusta com o barulho do avião”, relata.
As famílias explicam que por falta de alternativa continuam consumindo a água do brejo, mesmo com a presença dos agrotóxicos. Nos relatos dos mais velhos, Jaira afirma que há sempre a lembrança de que, antes da contaminação, os peixes da Lagoa Feia eram maiores. “Eles falam que, antes pescava cada traíra enorme e, hoje, pegam umas traíras pequenininhas”, relembra Jaira.
Antes da chegada da empresa, os Akroá cultivavam os alimentos em roçados coletivos. Segundo Jaira, quando a comunidade ficou sabendo que parte do seu território havia sido vendida à Dama, no início de 2014, as famílias passaram a produzir individualmente nos baixões. Segundo Zulmira Lima, mãe de Jaira, por muito tempo o seu povo teve que conviver com uma “escolta armada, sob ameaças”.
“Queriam que o meu pai saísse, mas o meu pai não saiu. Então, eles derrubaram a casa do meu pai e do meu irmão, à noite. Com a ajuda da CPT [Comissão Pastoral da Terra], nós lutamos pelo reconhecimento da nossa terra indígena, aí foi que as coisas melhoraram um pouco”, relembra. Após a saída da escolta armada e com a reconstrução das casas, segundo Zulmira, os cultivos de alimentos foram retomados, mas de forma individual. Mesmo assim, além da quantidade de alimento diminuir, os agrotóxicos tornam o trabalho incerto, ou seja, não se sabe se será possível colher.
“Para plantar o milho, a gente tem que plantar cedo, antes deles aplicarem o agrotóxico lá. Porque quando eles aplicam o veneno na serra com o avião, as pragas descem todas pra cá, para nossa plantação”, explica Zumira. Com isso, a fava, um alimento tradicionalmente cultivado no território, foi extinta. Hoje, cultivam apenas arroz, feijão, milho, mandioca, abóbora e melancia, que servem apenas para o consumo. Na época do cultivo coletivo, a produção era maior e gerava até excedente para comercialização.
A integrante da Articulação da Comissão Pastoral da Terra no Cerrado, Valéria Santos, afirma que, como consta na peça de acusação da sessão Cerrado do Tribunal Permanente dos Povos, a biodiversidade também tem sido afetada.
“Espécies de Buritis, Oiti, Peci já estão sendo perdidos pelo uso massivo de agrotóxicos. Há registros do desaparecimento de animais nativos do Cerrado e até de mortandade de peixes”, destaca. Além dos efeitos na fauna e flora, moradores da comunidade, especialmente crianças, alegam sentir “coceira intensa e irritação, especialmente após tomar banho, além de sintomas como diarreia, vômito e dor de cabeça,” completa Valéria.
Grande parte dos agrotóxicos se disseminam facilmente na água e são difíceis de serem eliminados. Um bom exemplo é a Atrazina, um tipo de agrotóxico que se dilui facilmente nas águas fluviais e subterrâneas e que, mesmo tendo sido banido da Europa em 2004, ainda é encontrado nas águas subterrâneas ainda hoje. Isso serve para medir o quanto as águas do Cerrado podem estar comprometidas pela enxurrada de veneno que recebe. Este bioma é considerado Berço das Águas porque concentra oito das 12 principais bacias hidrográficas que abastecem o país.
((o))eco fez contato com as empresas Damha Agronegócios e Insolo sobre a acusação de que as lavouras e os cursos hídricos localizados na aldeia estão sendo contaminados pelos agrotóxicos aplicados pela empresa. Também perguntamos sobre a frequência e a quantidade de produto aplicado em cada cultura. Por fim, buscamos saber se a empresa tem informações sobre as eventuais invasões de pessoas estranhas armadas na lagoa da aldeia, à noite, para pescar. Até o fechamento desta matéria, as empresas não responderam ao nosso contato. O espaço segue aberto.
Sociedade civil luta por lei que reduza uso de agrotóxicos
A porta-voz de Agricultura e Alimentação do Greenpeace Brasil, Marina Lacôrte ressalva que “se o Pacote do Veneno for aprovado da forma como está proposto, o novo presidente Lula não vai conseguir cumprir com boa parte dos compromissos que ele assumiu no que se refere tanto à segurança alimentar, quanto à mitigação das mudanças climáticas. Enquanto a gente deveria estar fazendo uma análise mais criteriosa e reduzindo os produtos, esse projeto vai na contramão total.”, diz.
Ela defende que a análise de um agrotóxico deve ser criteriosa, levando em conta o que a sociedade espera. Para Marina, isso é uma questão de gestão, que pode sofrer algumas mudanças com “órgãos menos aparelhados pelos Estado”. Em relação ao Pacote do Veneno, as organizações não veem salvação para a proposta da forma como ela está.
“Ainda assim, é importante que ele passe pelo menos pela Comissão de Meio Ambiente, Direitos Humanos e de Assuntos Sociais. Porque o projeto que saiu do Senado, em 2002, é absolutamente diferente do que volta. O projeto de lá tinha dois artigos, agora, ele volta revogando uma lei. Com a eleição do Rodrigo Pacheco, há grandes chances dele entrar nas comissões. Essa é a primeira demanda da sociedade civil”, avalia.
Já a representante da Campanha Nacional Contra os Agrotóxicos, Suzana Prizendt, avalia que com o cenário político atual a tramitação da Política de Redução de Agrotóxicos (Pnara) pode ser retomada.
Proposta pelo PL 6670 de 2016, essa política prevê iniciativas de redução dos agrotóxicos, adequando o modelo agrícola a uma forma mais amistosa ao meio ambiente e à saúde humana. A sua tramitação, durante algum tempo, estava equivalente a do Pacote do Veneno, mas nos últimos quatro anos, ficou na Câmara do Deputados, enquanto a segunda proposta avançou para o Senado.
“Ela [a Pnara] está pronta para ser votada na Câmara, passou por todas as comissões. Agora, a gente acha que tem mais chances de trazer a Pnara de volta, porque no governo Bolsonaro não tinha a menor chance, se aprovasse ele ia vetar. Agora, a gente tem um governo que vai favorecer a agroecologia em muitos aspectos. A gente tem o MDS, trabalhando junto com o MDA. Tem um Ministério da Saúde com uma pessoa que é da Fiocruz e a Fiocruz se manifestou claramente contra o Pacote do Veneno. Os instrumentos da Pnara são muito palpáveis para conseguir ir fazendo essa redução”, conclui Suzana.
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