“A maior ilha fluvial do mundo”: um título monumental, não é mesmo? Esta é a Ilha do Bananal, uma obra-prima da biodiversidade brasileira, localizada no sudoeste do Tocantins, um dos estados da Amazônia Legal, na divisa com Mato Grosso e Goiás.
Com área de cerca de 20 mil quilômetros quadrados, ela equivale – para termos uma noção visual de sua imponência – ao tamanho do menor estado do Brasil, o Sergipe.
No Ensino Fundamental, aprendemos, ainda que de forma rudimentar, que ilha “é uma porção de terra cercada de água por todos os lados”. Pois bem: o Bananal é uma porção de terra formada pelo rio Araguaia e uma bifurcação dele, ocorrida num ponto limítrofe entre Goiás e Tocantins, o município goiano de São Miguel do Araguaia. Ali, nasce o afluente conhecido como o braço menor ou direito do Araguaia: o rio Javaés.
A partir daquele ponto, eles se “despedem”: o Araguaia corre pela porção ocidental da Ilha, na divisa com o Mato Grosso, e o Javaés, pela oriental, voltando a se encontrarem já próximo ao Pará – e fechando, assim, o “formato” de ilha.
Só que a classificação geomorfológica do Bananal como “ilha” pode estar ameaçada, junto com sua riqueza ambiental e sociocultural. Isso porque o Javaés – assim como rios vizinhos – vem sofrendo redução de volume e de superfície de água.
As causas, segundo especialistas, são múltiplas e incluem queimadas, desmatamento, assoreamento, avanço da pecuária, perda da infiltração de água no solo, uso industrial e humano crescentes (pelo aumento da população) e retirada de água – superficial e subterrânea – para a agricultura. Na região, funciona, desde o início da década de 1980, o Projeto de Irrigação Rio Formoso, o maior em irrigação de áreas contínuas no mundo.
“É comum, em sistemas hídricos, termos variações no nível da água, ou seja, numa época chove mais, noutra menos; há anos em que as chuvas começam ou terminam mais cedo, em outros, mais tarde”, explica o professor e pesquisador Ludgero Vieira, da Universidade de Brasília (UnB). “Mas, o que temos observado é que o Javaés e o Araguaia, além de outros na localidade, têm perdido, ao longo dos anos, vazão e lâmina d’água”, destaca Vieira, que é doutor em Ciências Ambientais e desenvolve trabalhos na região do Médio Araguaia, onde se localiza a Ilha do Bananal.
Estudos do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) em parceria com o MapBiomas apontam que, nas últimas quatro décadas, os dois rios que formam a Ilha do Bananal vêm secando, e que o Bananal – território cortado por vários outros rios e naturalmente alagado no período chuvoso – já perdeu cerca de um terço da água em seu interior.
Em determinadas épocas e trechos, o Javaés tem ficado tão seco a ponto de se assemelhar a uma estrada de chão. A depender do nível da estiagem, é possível mesmo caminhar no meio do rio – percurso acessível inclusive para as crianças indígenas locais.
Diante deste cenário, a Ilha do Bananal está desaparecendo? Ou isso seria apenas impressão, exagero, alarde?
“Não é impressão: é a realidade”, afirma Célio Kanela, liderança indígena e atual diretor de Fomento e Proteção à Cultura dos Povos Originários e Tradicionais do Estado do Tocantins. “Se o Rio Javaés está cortando, secando lá em cima e não está correndo água, isso quer dizer que ele não forma ilha mais, porque deveria ser trafegável a todo tempo”, explica.
Há décadas estudando as questões do Cerrado e profundo conhecedor da região, o doutor em Antropologia e Arqueologia, Altair Sales Barbosa, é pontual: “a Ilha do Bananal não existe mais”. Para Barbosa, a implementação do Projeto Rio Formoso, com seus inúmeros barramentos de captação de águas para a agricultura, bem como a introdução de pastagens exóticas no interior da Ilha, teriam provocado esse panorama.
“Minaram as águas do Javaés até chegar à situação atual, que causou o desaparecimento do braço direito do Araguaia e, como consequência, a extinção da maior ilha fluvial do mundo”, afirma o pesquisador, em artigo disponível na Internet.
Uma porção de terra cercada de agro por todos os lados
A tocantinense Ilha do Bananal faz divisa geográfica com dois gigantes do agronegócio: Mato Grosso, o maior produtor de soja e criador de gado do país, e Goiás, segundo lugar no ranking brasileiro de criação bovina. Não muito distante da porção extremo norte da Ilha chega-se à fronteira do Tocantins com o Pará, o estado amazônico que mais desmata.
No Tocantins – maior produtor de grãos do Norte do Brasil –, o Bananal está subdividido entre os municípios de Pium, Sandolândia, Lagoa da Confusão e Formoso do Araguaia, todos eles localizados às margens ou nas proximidades da Bacia Hidrográfica do Rio Formoso que, por sua vez, é um afluente do Javaés. A região é marcada por médias e grandes propriedades rurais, em que se destaca, principalmente, a agricultura por irrigação do Projeto Formoso.
No período de chuvas, que vai de de outubro a abril, se planta arroz, por meio de irrigação por inundação, já que a região é alagada. No tempo seco, que compreende maio a setembro, tem-se o cultivo principalmente de soja (com permissão de plantio mesmo em calendário nacional de vazio sanitário), além de milho, feijão e melancia, todos por subirrigação.
Presidente de uma das entidades rurais integrantes do Projeto, a Associação dos Produtores Rurais do Sudoeste do Tocantins (Aproest), Wagno Milhomem conta que o município de Lagoa da Confusão, por exemplo, já ocupa posição de destaque (59ª) no Produto Interno Bruto (PIB) do agronegócio brasileiro. “E ainda há um potencial enorme para a ampliação das áreas de projetos de irrigação na região. Para isso, nós temos que investir, cada vez, mais em reservatórios de água”, explica.
De fato, a localidade reúne uma série de características – geográficas, ambientais, políticas, sociais, econômicas – que atraem investimentos massivos do agronegócio. “É praticamente o único lugar do Brasil que, em determinada época do ano, se permite produzir soja. E não qualquer soja: é soja para semente”, ressalta o professor e pesquisador Fernán Vergara, da Universidade Federal do Tocantins (UFT).
Vergara conta que a região, uma ampla várzea, favorável a cultivos diversificados, fez explodir a expansão agrícola, principalmente a partir dos anos 2000. “Praticamente todo mundo que, no início do Projeto, plantava arroz, hoje planta soja, também. Mas, à medida que essa área de plantio foi aumentando, começaram e se agravaram os conflitos pelo uso da água”, pontua.
O pesquisador, que é doutor em Tecnologia Ambiental e Recursos Hídricos, diz que a falta de água não é, a princípio, um problema na região. “Dependendo da época do ano”, explica ele, “é até questão de excesso, sendo necessário drenar a área do arroz”. No entanto, o cenário é bastante diverso no período de plantio da soja, estação naturalmente seca no Tocantins.
“A expansão foi ocorrendo e não havia mais água suficiente para irrigar a soja. Foi aí que os produtores passaram a construir barragens, que eles chamam de elevatórios, montadas e desmontadas conforme a época do ano, para conter e bombear a água para a subirrigação da lavoura”, relata Vergara.
Abaixo das barragens, conta o pesquisador, o rio secava. “E, então, em 2016, tivemos um período de estiagem muito crítico na região. Foi aí que juntou, talvez, o pior dos mundos: a soja cresceu muito, demandando muita água, e um período intenso de estiagem. O Javaés secou, e secou pra valer! Imagine: um trecho do rio que deve ter uns 20, 30 metros de largura, e você atravessando ele a pé?!”, relata e provoca a reflexão.
A judicialização da água
Naquele momento, a situação havia atingido um nível insustentável de ameaça ambiental à Bacia do Formoso, do Javaés e demais águas que vão se encontrando e formando a complexa tessitura hídrica do local.
Em agosto de 2016, o Ministério Público do Tocantins (MPTO) entrou com uma ação civil pública solicitando, à Justiça Estadual, a determinação de que o Estado do Tocantins suspendesse “todas as licenças, permissões e autorizações de uso de recursos hídricos para fins de agronegócio” na região.
O Estado contestou a ação e, então, o MPTO protocolou novo pedido, em outubro do mesmo ano. Desta vez, demandou ao Judiciário a intimação do Estado e de seu órgão de defesa ambiental – o Instituto Natureza do Tocantins (Naturatins) – e incluiu, na ação, a solicitação para “a demolição, a retirada e a destruição de todas as estruturas das bombas, dos apetrechos e dos implementos mecânicos de captação de recursos hídricos para fins não humanos” na região.
O processo, a partir dali, se prolongou por cerca de seis anos, em mais de uma dezena de audiências públicas, com embates e ajustes entre os poderes públicos, produtores rurais, junto de suas associações, e a participação de um ator externo, convidado a assumir a posição de amigo da corte (amicus curiae): o Instituto de Atenção às Cidades (IAC), composto por pesquisadores da Universidade Federal do Tocantins (UFT).
“No início do processo, fomos chamados para emitir um parecer técnico sobre a situação, o juiz queria conhecer melhor o problema”, conta Vergara, um dos pesquisadores do IAC. “Basicamente, nos pediu que confirmássemos se o rio secou por causa dos produtores ou se havia sido um fenômeno natural. Mas, não tínhamos como afirmar um ou outro, teríamos de fazer algo mais profundo, elaborado, um estudo mesmo, envolvendo dados de demanda e disponibilidade hídrica”, diz.
Ainda que os produtores tivessem as outorgas para o uso das águas da Bacia, não ficava claro, explica o pesquisador, se eles estavam tirando maior ou menor volume do que o permitido, e em quais dias, meses, horários, conforme a disponibilidade. Não havia mecanismos eficientes de controle e fiscalização por parte do órgão ambiental, o Naturatins.
“Elaboramos, então, este parecer, concluindo que seriam necessários estudos sobre demanda e disponibilidade, e foi aí que o documento não agradou ninguém”, lembra, “nem juiz, nem Ministério Público, Estado, produtores…”. Os pesquisadores precisariam avançar em busca de uma solução, de fato, satisfatória para o problema.
O caso era complexo de se resolver e havia um clima de bastante tensão entre os envolvidos. “É uma bacia de 22 mil quilômetros quadrados, com mais de 100 bombas instaladas pelos produtores. Uma única bomba dessas puxa entre 1,2 mil e 2 mil litros por segundo, uma captação que abasteceria uma cidade do tamanho de Palmas, e eu estou falando de apenas uma bomba. São mais de uma centena delas, é muita água! Então, realmente, tinha de existir uma forma de monitorar este uso, e começamos a pensar numa solução, que incluísse um sistema de telemetria”, explica o pesquisador do IAC.
O grupo de cientistas acabou desenvolvendo uma ferramenta inédita, premiada, em 2020, pela Agência Nacional das Águas (ANA): o Sistema de Gestão de Alto Nível dos Recursos Hídricos (GAN). A inovação tecnológica consegue monitorar, de modo remoto e em tempo real, a disponibilidade hídrica da Bacia do Rio Formoso e o volume de águas captado pelos produtores para a irrigação agrícola.
Por fim, em decisão bastante simbólica, no Dia Mundial da Água, 22 de março deste ano, estado e Naturatins foram condenados pela Justiça tocantinense. Na sentença, estão 27 medidas, que precisam ser executadas pelo estado do Tocantins, Naturatins, o Comitê da Bacia e produtores rurais.
Entre as determinações, está a implantação, uso e manutenção do sistema GAN na Bacia, a institucionalização da cobrança pelo uso da água da Bacia do Rio Formoso, revisão de outorgas e licenças ambientais dos produtores rurais e outros pontos a serem cumpridos, ao longo das quatro fases estipuladas pela decisão judicial (leia a sentença completa aqui).
Entre o encanto e o espanto, outras ameaças
Embora a sentença judicial tenha trazido certo alívio e esperança à região, especialmente às comunidades indígenas e ribeirinhas, a questão do uso indiscriminado das águas do Formoso é apenas uma das diversas ameaças à Ilha do Bananal. “Nossa preocupação, agora, é a execução de outras políticas que envolvem o Javaés, o Bananal e seu entorno”, afirma Célio Kanela.
“Temos enfrentado problemas com o alcoolismo nas aldeias e casos de suicídios, que vêm crescendo”, relata o vice-coordenador da Coordenação das Organizações Indígenas do Povo Javaé da Ilha do Bananal (Conjaba), Vantuíres Lukukui Javaés. “A degradação das florestas do Bananal também é crescente, principalmente em razão dos incêndios, além da situação da pesca e caça predatórias”, conta ele.
A Ilha do Bananal localiza-se na área de transição do ecótono Cerrado–Amazônia, os dois maiores biomas brasileiros. Este fabuloso encontro ecossistêmico abriga flora e fauna únicas no mundo. Desde 1993, a Ilha é classificada, pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), como uma Reserva da Biosfera – uma porção terrestre ou aquática relevante, que representa os ecossistemas característicos de uma região.
“No Bananal e entorno, há a ocorrência inclusive de espécies endêmicas, ou seja, que só são possíveis de serem encontradas naquela região”, afirma o biólogo Renato Torres Pinheiro, professor da Universidade Federal do Tocantins (UFT) e coordenador do Centro de Pesquisa Canguçu, observatório científico localizado às margens do rio Javaés, em frente à Ilha do Bananal.
Na lista das várias espécies animais ameaçadas, cujo lar ou refúgio é o Bananal, estão a onça-pintada (Panthera onca), o tamanduá-bandeira (Myrmecophaga tridactyla), o pato-corredor (Neochen jubata), o tatu-canastra (Priodontes maximus) e o cervo-do-pantanal (Blastocerus dichotomus). Além dessas, estão o pica-pau-do-parnaíba (Celeus obrieni) – que foi “redescoberto” no Tocantins, após 80 anos sem ser avistado – e o boto-do-araguaia (Inia araguaiaensis) – espécie somente descoberta em 2014, uma surpresa tida como ainda recente no meio científico.
“Estamos falando de um dos maiores santuários do Planeta”, destaca Sidney de Oliveira Silva, chefe de um esquadrão Prevfogo/Ibama no Bananal. “A luta para preservar este patrimônio natural é diária e bastante difícil para o pouco efetivo disponível”, diz.
O Bananal é, simultaneamente, Terra Indígena (TI) e Unidade de Conservação (UC). Em 1959, o governo de Juscelino Kubitschek (JK) instituiu, no local, o Parque Nacional do Araguaia que, hoje, se sobrepõe em 67% à Terra Indígena Inãwebohona e em 33% à Terra Indígena Utaria Wyhyna (Karajá)/Iròdu Iràna (Javaé).
A criação do Parque veio após o então presidente inserir o local como parte de suas investidas de ocupação territorial, com a Expedição Roncador-Xingú e a Fundação Brasil Central, em continuidade à Marcha para o Oeste de Getúlio Vargas. JK, que considerava o Bananal um “paraíso da caça e pesca”, pretendia fazer dele um balneário, levar a expansão agropecuária àquela região “deserta” e “incorporar” os povos indígenas locais à “civilização brasileira”, conforme seu discurso à época.
Dentro da chamada Operação Bananal, o balneário encomendado por JK chegou a contar com pista de pouso, hospital, projeto para área residencial, um hotel internacional e residência oficial do presidente (o “Alvoradinha”), com projetos de Oscar Niemeyer. Hoje, no local, restam as ruínas. Conheça mais sobre este capítulo da história do Brasil aqui.
Também desde 1993, a Ilha do Bananal integra a lista de zonas úmidas de relevância internacional, classificada, assim, como um Sítio Ramsar. A Convenção de Ramsar, tratado intergovernamental firmado em 1971, na cidade iraniana de mesmo nome, promove a cooperação, entre os países signatários, para a conservação das zonas úmidas no mundo.
“Inicialmente, o objetivo maior da Convenção era proteger os ambientes aquáticos para as aves migratórias”, explica o professor Pinheiro. “Mas, as áreas úmidas não são importantes somente para essas espécies, sua relevância ambiental é ainda mais ampla e, assim, posteriormente, as ações e signatários do tratado também foram ampliados”, explica. No entanto, segundo o pesquisador, poucas já foram as ações – que estão sob a responsabilidade do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA) – implementadas no Bananal enquanto Sítio Ramsar.
“A Ilha tem várias formações vegetais características daquele ambiente, tanto em áreas florestais, de floresta estacional aluvial, como em áreas de savana, principalmente a savana parque e a savana arborizada”, segue explicando o pesquisador. “Mas, infelizmente, a Ilha já possui ambientes modificados pelo ser humano, principalmente áreas de pastagem cultivadas”, destaca.
Com tamanha riqueza e relevância, por que a Ilha do Bananal segue tão desprotegida pelas autoridades e mesmo desconhecida das pessoas, enquanto um patrimônio?
“Acredito que muita gente ainda não tenha a real noção da importância ecológica deste lugar”, pontua Miguel Braga Bonilha, técnico ambiental do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), há anos atuando na fiscalização do Parque Nacional.
“A pesca ilegal está entre nossas principais autuações. Chegamos a apreender de 300 a 500 quilos de pescado por fiscalização”, conta Bonilha. “É difícil monitorar efetivamente todo o território do Parque. Somos poucos na equipe, e os infratores usam estratégias para se camuflar como, no caso da pesca, fazer isso no período da madrugada, por exemplo”, explica o agente do ICMBio.
A Ilha é mesmo como se fosse um complexo quebra-cabeças, de milhares de peças, difícil de se montar e compreender. Mas, à medida que as peças se encaixam e o cenário vai se formando e agigantando no nosso imaginário, a sensação é de maravilhamento e de extremo encanto, ao mesmo tempo que de espanto, preocupação e tristeza.
O fogo se alastra; o gado, também
As queimadas no Bananal também estão entre suas principais ameaças. Uma das estratégias adotadas para prevenir e controlá-las vem da ação nacional do PrevFogo/Ibama. “Realizamos a chamada queima prescrita, com o protocolo de Manejo Integrado do Fogo (MIF), aplicado nas bordas das matas, diminuindo as chances de combustão e alastramento de possíveis incêndios”, explica Sidney.
Principalmente entre agosto e setembro, meses críticos de estiagem, surgem vários focos de incêndio. “Nem sempre conseguimos identificar os autores e relatá-los no Registro de Ocorrência de Incêndio (ROI), por meio do qual o Ibama pode tomar as providências contra esses infratores”, lamenta o chefe do esquadrão.
Outra ameaça que se alastra pela Ilha é o gado. Desde 2009, a criação bovina foi legalmente permitida na Terra Indígena, em sistema de arrendamento entre pecuaristas e indígenas. E a criação já alcança marcas expressivas: cerca de 100 mil bovinos são anualmente vacinados contra a febre aftosa, na Ilha do Bananal.
Os impactos ao ambiente – que incluem compactação do solo e perda de vegetação nativa – são apontados por cientistas. Ainda, há relatos de que os rebanhos já avançam para o Parque Nacional, área protegida onde está inserida a floresta mais preservada do ecossistema da Ilha: a Mata do Mamão, onde também vive, em isolamento voluntário, o povo indígena Cara-Preta.
“Certamente, há impactos ambientais”, afirma Vantuíres Lukukui Javaés. “Somos favoráveis ao projeto de bovinocultura, mas precisamos receber suporte para o planejamento sobre a capacidade de animais por área. O gado está mesmo mais próximo da Mata do Mamão, em razão da falta de fiscalização e punição aos infratores”, diz.
Uma ponte para qual futuro?
Uma discussão que “esquenta e esfria”, há mais de uma década, trata da construção da Rodovia Transbananal (BR-242). A implantação da estrada, por meio de uma ponte atravessando o Araguaia e pavimentação de trecho no território do Bananal, visa o escoamento da produção agrícola de Mato Grosso e Tocantins, integrando-as à Ferrovia Norte-Sul e, dali, destinando a produção até os postos do Maranhão e da Bahia, pela Ferrovia Leste-Oeste.
Para o discurso político e ruralista, a obra também beneficiará economicamente os povos indígenas da Ilha do Bananal. “Mas, no modelo em que nos foi, até agora, apresentado, somos contra, pois acreditamos que os prejuízos serão enormes, tanto no aspecto social quanto ambiental”, ressalta Vantuíres, que vem participando de reuniões, entre as lideranças indígenas, sobre o projeto.
“Queremos um modelo que respeite nossos direitos constitucionais, prevalecendo a Convenção n° 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais”, diz a liderança.
Está desaparecendo? Tem solução?
Há anos, a discussão se a Ilha do Bananal está, ou não, desaparecendo ecoa entre os povos da região, cientistas, produtores rurais, entidades, instituições e poderes públicos. Afinal, o Bananal já desapareceu? Está desaparecendo?
“Eu costumo dizer que, hoje, a Ilha do Bananal está mais para uma ‘Península do Bananal’. Se ela corre o risco de desaparecer enquanto Ilha? Sem dúvidas. Se ela já desapareceu? Ainda não. Mas, agora, dependendo da época, às vezes ela é ilha; outras, não mais”, pontua o pesquisador Fernán Vergara.
Para o brigadista Sidney Silva, do Ibama, perder o título de “maior ilha fluvial do mundo” segue sendo um risco iminente ao Bananal, provocado sobretudo pelos projetos de irrigação instalados no entorno. “Na ‘boca’ do Javaés, mesmo se constata fácil a intensidade do assoreamento, os bancos de areia crescendo, ano após ano”, conta.
A liderança Javaé tem conclusão semelhante: “está deixando de ser ilha, sim, em razão do início do processo de extinção do Rio Javaés, em função dos assoreamentos, causados pela degradação das matas ciliares”, detalha Vantuíres.
O pesquisador Renato Pinheiro também reforça a fala. Ele confirma, como agravantes, principalmente a retirada massiva de água do Javaés, Formoso e seus afluentes, além da formação de barramentos nesses rios. “São rios de planície, que não suportam esses barramentos, porque temos pulsos de inundação e sabemos que, em determinada época do ano, naturalmente a vazão desses rios diminui”, explica. “Sobre o Bananal, eu não digo que já desapareceu totalmente como ilha, mas, parcialmente, a gente já tem percebido que isso é uma realidade, o risco existe”, afirma.
Wagno Milhomem ressalta a atuação dos produtores do Projeto Rio Formoso para o Tocantins, no aspecto econômico. Somente a Aproest, conta ele, já é responsável por, aproximadamente, 20% do PIB do agronegócio tocantinense. “Veja bem, a agricultura irrigada é bastante representativa na economia, e proporciona alta empregabilidade na região”, destaca. A Associação, no entanto, reúne um grupo de produtores que vêm se mostrando dispostos ao debate público sobre a questão. “Temos interesse em investir no manejo sustentável do uso da água, porque isso faz com que a gente tenha condição de trabalhar o meio ambiente melhor do que em qualquer outra área”, afirma Milhomem.
O juiz Wellington Magalhães, que condenou o Estado e o Naturatins na ação movida pelo MPTO, lembra que o conflito da Bacia do Rio Formoso tem origem num problema complexo, cuja resolução, também complexa, demanda tempo. “Teria sido mais fácil proibir o uso de água nos projetos de irrigação”, diz, sobre o caso. “Porém, quando analisamos o impacto social e econômico disso, conseguimos enxergar a essência do conceito de sustentabilidade, ou seja, buscar garantir desenvolvimento com o mínimo de impacto ambiental possível”, detalha Magalhães.
Mas, esta relação harmoniosa, entre agronegócio e meio ambiente, é realmente possível de se alcançar ou é utopia? “Olha, tem que ser possível! Nós precisamos, de alguma forma, conciliar a produção de comida com a preservação dos ambientes”, frisa o pesquisador Ludgero Vieira. “Se não encontrarmos mecanismos para isso, mais cedo ou mais tarde, vai faltar água inclusive para a produção de comida. A solução passa, entre outros, por investimento massivo em ciência de ponta, em conhecimento científico, em melhorias nas técnicas agrícolas, em fiscalização ostensiva e em educação ambiental”, destaca o pesquisador.
Operação Canguçu
Durante os meses de construção desta reportagem, a etapa programada para a realização de trabalho de campo foi cancelada, em decorrência da Operação Canguçu. A operação policial concentrou mais de 300 policiais dos estados do Tocantins, Goiás, Minas Gerais, Pará e Mato Grosso, reunidos para capturar uma quadrilha que atacou o município de Confresa (MT) e fugiu pelo Rio Araguaia, atravessando para o lado do Tocantins e desembarcando nas imediações do Centro de Pesquisa Canguçu/UFT.
O Canguçu, por sua localização estratégica, às margens do Javaés e em frente à Ilha do Bananal, havia sido o local agendado para a captura de algumas das imagens e entrevistas para esta reportagem. No entanto, dada a operação, toda a região teve o acesso bloqueado pela força-tarefa policial – e o Canguçu, no período, foi base da operação.
A localidade, fronteiriça, de selva e geograficamente isolada, de difícil acesso e pouco policiamento e fiscalização, facilita, de alguma forma, a prática diversa de crimes (que não somente os ambientais) e fugas interestaduais.
Esse conteúdo é resultado da bolsa-reportagem concedida aos alunos do Minicurso de Jornalismo Ambiental, realizado por ((o))eco, Imazon e Fundação Amazônia Sustentável
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Excelente essa matéria a respeito da ilha do Bananal, elucidativa e de grande relevância deveria ser explanado e discutido nas salas de aula. Parabéns. Abraços, Saúde e Paz. Isaias de Taquarussu.