Nesta quinta-feira (9) foi realizado o penúltimo dia dos “Seminários Bússola para a Construção de Cidades Resilientes”, evento organizado pelo Instituto Democracia e Sustentabilidade. Com o tema “Democracia, Diversidade e Dados”, os participantes falaram de assuntos como a participação popular na construção de políticas públicas e o combate às discriminações.
Aumentar a participação das comunidades na elaboração de planos de enfrentamento às mudanças climáticas, com parceria entre governos, academia e população é, na opinião dos palestrantes, fundamental. Como disse a cientista da computação Gisele Craveiro, que abriu o evento, “todos nós que nos debruçamos, dentro e fora da academia, investigando, analisando problemas complexos, necessitamos da colaboração de vários olhares, de várias áreas e de vários setores”. “Então a construção do conhecimento é sempre baseada em transparência e colaboração”, frisou.
Jorge Abrahão, diretor-presidente do Instituto Cidades Sustentáveis, alertou para a necessidade de se abrir espaços para a participação popular na política, citando um distanciamento entre a população e o poder público. “Não dá mais para a gente administrar cidades tão distantes da sociedade. E abrir espaços de participação para a sociedade, sejam temáticos ou gerais, é muito importante para que a gente possa melhorar e aprimorar a democracia, efetivamente”, afirmou.
Além de Craveiro e Abrahão, também participaram do debate Lia Esperança, líder comunitária na favela Vila Nova Esperança, em São Paulo, que citou iniciativas populares que promovem a sustentabilidade na comunidade, também criticando a ausência do poder público; e a prefeita de Francisco Morato (SP), Renata Sene (Republicanos), que destacou iniciativas para promoção da participação popular no município, norteadas pelos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU.
Os seminários vão resultar na elaboração da Bússola 2024 do IDS, um guia com o objetivo de apontar caminhos para o debate de enfrentamento à emergência climática nas eleições de outubro – assim como já feito pelo instituto em 2022. O tema do último dia, nesta sexta-feira (10), será “Economia Verde, Equidade e Empregos”. Todas as transmissões estão disponíveis no canal do IDS no YouTube.
Participação popular para o enfrentamento às mudanças climáticas
Gisele Craveiro, que pesquisa temas ligados ao acesso à informação, reforça que com o período eleitoral a população terá que escolher “quais planos de governo vamos apoiar para que desastres não mais se repitam”. Para a cientista da computação, é importante que os governos invistam na transparência e na participação popular para o enfrentamento das mudanças climáticas.
“Uma sociedade resiliente a essas mudanças climáticas, dentro de uma crise de representação democrática, precisa resgatar e se fundamentar. Como nós podemos trabalhar questões complexas nessa colaboração, baseado em dados e evidências? Então, dentro desse paradigma de governo aberto, eu também tenho a felicidade de trazer nesse seminário o lançamento da Rede Brasileira de Governo Aberto, com a sua carta de princípios”, que, segundo a palestrante, reforça os “pilares” da transparência, da confiança e da prestação de contas.
“Uma situação complexa, como as que estamos vivenciando, não vai ser resolvida por uma gestão, um governo. Ela é toda uma sociedade, com esses vários saberes integrados – acadêmicos, empíricos, comunitários – que nós temos à disposição. A gente não pode prescindir de lançar mão de nenhum saber, nenhum conhecimento”, frisou Craveiro.
“E essa construção de conhecimento coletivo começa com a base da transparência, que gera confiança nessas relações institucionais, e também o accountability, ou seja, a prestação de contas – como eu tomo as decisões, em que critérios eu me baseio para tomar certas decisões na implementação desse plano de governo, e como a gente pode caminhar juntos, elencando as prioridades?”, explicou. “Esses três pilares integrados constituem a base de um governo aberto que eu costumo falar. Governo aberto não só para ver, um governo aberto também para entrar. Se está aberto, pode entrar”, reforçou.
Para exemplificar, Craveiro citou um projeto elaborado por universidades paulistas, sediado na USP, feito em parceria com a prefeitura de São Vicente (SP) e com a participação de moradores da cidade. “São Vicente é uma cidade litorânea, e ela enfrenta muitos desafios em relação a passivos ambientais e à própria questão da mudança climática, que afeta as marés e as inundações”, lembrou. Segundo ela, “esse projeto busca construir essa política municipal visando ter um plano de gestão climática e estruturar as bases de um futuro observatório para a justiça climática”.
Impactos das desigualdades
Jorge Abrahão, diretor-presidente do Instituto Cidades Sustentáveis, iniciou destacando o fato do Brasil ser, ao mesmo tempo, um dos 10 países mais ricos e um dos 10 países mais desiguais do mundo. “A nossa democracia foi sequestrada pelo poder econômico, pelos interesses de grandes grupos. É o que a gente observa hoje, no Congresso Nacional, quando vê a maioria dos deputados – não todos, felizmente – defendendo interesses de setores econômicos em detrimento da população. Isso é gerador de desigualdades”, disparou.
“Nas nossas pesquisas de desigualdade, por exemplo, 31% das pessoas, quase 1/3 da população brasileira, diz que precisa fazer um ‘bico’, fazer algum serviço extra para complementar a sua renda”, afirmou. “Evidentemente isso vem acompanhado de uma perda de qualidade de vida, porque as relações de afeto, muitas vezes, ficam prejudicadas por isso. As possibilidades de acesso à cultura ficam prejudicadas por isso, porque o nosso tempo, efetivamente, se reduz. Mas as necessidades são muito grandes de sobrevivência, e isso é algo que nós deveríamos pensar em como encaminhar nas nossas cidades”, analisou.
“7 em cada 10 brasileiros dizem que existe, na questão racial, diferença de tratamento entre pessoas negras e pessoas brancas. Então a grande maioria da população tem a percepção de que há uma desigualdade de tratamento. Então aqui tem um desafio, também, que nós temos como sociedade: enfrentar o preconceito, que é algo que a gente sabe que faz parte da nossa sociedade de uma forma geral. Aqui também as cidades podem enfrentar isso, e podem contribuir muito”, recomendou, citando medidas como campanhas, debates em escolas e, nas empresas, contratações com critérios raciais e redução de desigualdades salariais.
“40% das mulheres dizem, de alguma maneira, que já sofreram assédio. E a maioria do assédio nas cidades se dá dentro do transporte coletivo. Então nós sabemos que o assédio existe, que o transporte coletivo é o local, portanto também é possível enfrentar questões como essa através de maiores espaços de denúncia, de campanhas que possam ser feitas que alertem para esse problema, do envolvimento das empresas de transporte nesse tipo de questão, para estarem atentas e denunciando quando ocorrem problemas”, enumerou, lembrando da desigualdade salarial também pelo critério de gênero.
Abrahão citou também uma pesquisa nacional feita pelo Instituto Cidades Sustentáveis, em parceria com o Ipec, que diz que 70% das pessoas não se lembram em quem votaram para deputado federal e senador em 2022. “Isso é um indicador da distância em que estamos da política”, avaliou o palestrante. “A sociedade como um todo, um governo, deve abrir espaços institucionais para que a sociedade possa participar efetivamente. E quando a gente pergunta se as pessoas querem participar, 78% dizem que não querem participar”, alertou.
“Portanto, nós estamos com uma distância muito grande das pessoas da política. Isso é um risco para a democracia. É um dever para todos nós, de alguma maneira, abrir espaço para que as pessoas, além de irem votar, participem e tragam a sua perspectiva para que os governos possam escutar o que a população está trazendo, porque ela é fundamental”, reforçou.
Ações sustentáveis melhoram condições de vida em favela paulistana
Lia Esperança, presidente do Instituto Lia Esperança, criticou o afastamento entre o poder público e as populações vulneráveis. “Moro dentro da Vila Nova Esperança [em São Paulo], uma favela que existe desde 1960. Uma favela que é esquecida pelo poder público”, narrou. “Vem aqui a defesa civil, vários engenheiros, e dizem para mim: ‘Lia, essa área é de risco’. Só que falar que é de risco é fácil. Mas não adianta o poder público vir até a mim, me mostrar que estou numa área de risco, e não fazer nada para consertar aquilo. Quem tem que fazer a contenção dos riscos somos nós, moradores”, criticou.
“A nossa ideia não é degradar, a nossa ideia é morar e cuidar. Para a gente viver em harmonia, é preciso que o poder público, com a sua sabedoria, traga para dentro das comunidades que estão dentro de áreas de preservação a educação ambiental. Ensine a viver em harmonia com a mata. A mata foi feita para o ser humano viver com ela, mas a gente precisa cuidar”, reforçou a líder comunitária.
Lia apontou a diferença de tratamento dispensado aos moradores da Vila Nova Esperança, vistos com entraves à preservação, e construtoras que desmatam grandes áreas para erguer empreendimentos. “‘Tem que tirar a Vila Nova Esperança porque está degradando’. Só que a Vila Nova Esperança está degradando porque não tem esgoto. Por que não temos esgoto?”, apontou, criticando a inação do poder público.
Lia citou a união de forças e conhecimentos dos moradores da comunidade para realizar melhorias no local, já que as autoridades têm ignorado seus apelos. “Hoje a Vila Nova Esperança é a primeira vila verde. Nós ganhamos prêmio de melhor projeto sustentável, em primeiro lugar. Nós ganhamos prêmio de melhor favela sustentável. Então mesmo sem ter o conhecimento, eu tentei fazer e consegui, junto com os moradores”, conta.
“Eu queria trazer a educação ambiental para dentro da comunidade, mas não sabia como”, lembrou. Ela citou a ação dos moradores para juntar o lixo e limpar a comunidade, que não contava com coleta da prefeitura. “Começamos pelo lixo, e depois do lixo, vamos trazer para a comunidade a educação ambiental. Como vamos fazer? Já sei, uma horta. Um espaço onde estavam jogando lixo, eu disse ‘vamos cuidar do espaço, vamos limpar, e vamos fazer uma horta’’’, narrou.
“No primeiro ano de horta, a gente começou e o promotor disse ‘tem que sair porque está degradando’. Daqui a pouco sai no jornal ‘favela exemplo de sustentabilidade’, e o promotor não teve mais argumento. Então depois que fizemos essa horta, descobrimos que ela não ia servir só para educação ambiental. A horta estava trazendo educação ambiental, empreendedorismo e até saúde, porque quando você traz alimentos saudáveis para o seu prato, você traz saúde”, completou a líder comunitária.
Prefeita de Francisco Morato
Fechando o dia de seminários, a prefeita de Francisco Morato (SP), Renata Sene (Republicanos), lembrou que a cidade é a “última” da região metropolitana de São Paulo, recebendo muitas pessoas que não puderam se estabelecer na capital. Segundo ela, a cidade passa por desafios orçamentários – com 80% vindo de recursos da União e de emendas parlamentares – e sociais – com 40 mil dos 165 mil moradores em programas de transferência de renda, metade deles em extrema pobreza.
“Meu governo começa em 2017, mas já em 2016 a gente chama a iniciativa para falar da Agenda 2030. Então no meu plano de governo eu já apresento a Agenda 2030 como um instrumento para que a gente pudesse falar da cidade. Naquele momento não os 17 [Objetivos do Desenvolvimento Sustentável], mas os que falavam necessariamente com a sociedade, entre eles a erradicação da pobreza, saúde e bem-estar, educação, saneamento básico”, lembrou a prefeita. “Porque pasmem: na cidade de Francisco Morato, região metropolitana, não há o tratamento de esgoto. E não está sob gerência do município”, afirmou.
“Então existem outros elementos que fortalecem a importância da participação para que a gente consiga dizer que cidade nós somos. E a gente começa, então, o primeiro PPA participativo de Francisco Morato, que é o Planejamento Plurianual, com anuência e com a voz da população. Nós organizamos a cidade à noite, sábados e domingos. Porque se de fato a gente quer garantir a participação das pessoas, a gente tem que garantir a condição de que elas participem. Eu não vou fazer uma audiência pública às 8h num lugar em que elas não podem participar. Claro que ela vai fazer a opção pelo trabalho dela”, disse.
“64% da nossa população não é nem do estado de São Paulo, essa é a nossa felicidade. Francisco Morato é uma multicultura, de muitas vozes, de muito Brasil, com as suas capacidades. E a gente queria focar na capacidade das pessoas de fazer governança com as suas experiências”, frisou.
“Vem o segundo governo, e a gente traz com mais força a Agenda 2030. Então a gente fala que é Morato consolidada, mas ainda em desenvolvimento, ainda precisando da voz das pessoas, ainda em discussão dos seus desafios. E a gente propõe o compromisso de reforçar essa agenda trazendo ‘desenvolvimento sustentável para você viver melhor’” como lema. O plano diretor da cidade, explica a prefeita, também é norteado pelos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, tendo como diretriz uma lei municipal que adota a Agenda 2030 como “orientador das políticas no âmbito municipal”.
No atual plano plurianual, Sene diz ter 16% do orçamento estimado para o período 2022-2025 destinado a programas de sustentabilidade e obras relacionadas aos ODS. “A nossa cidade consegue acompanhar, monitorar e consegue narrativa em relação às metas e proteção às pessoas acima de tudo”, reforçou. “Ter um governo aberto é aprender com a comunidade”, disse a prefeita, em referência direta ao tema do primeiro seminário do dia.
A cidade citou também a construção de um “mapa comunitário de risco”, com “rotas de fuga, por onde a água passa, quem é o idoso que vai precisar de ajuda, quem é a pessoa com deficiência que precisa de maior atenção. Nós construímos com a nossa comunidade”, lembrou a prefeita. “Isso fez com que a gente promovesse justiça climática”, defendeu. Outro projeto abordado foi o de uso de plantações de bambu para “segurar encostas”, com uso também para o artesanato. “Esse produto está sendo tão exitoso que agora o CNPq vai financiar um laboratório de experiências de Francisco Morato, com soluções baseadas na natureza”, afirmou.
“Você pode perguntar assim: ‘Renata, todos os problemas da sua cidade estão resolvidos?’. Não, mas nós aprendemos a narrativa. Nós acreditamos que nós conseguimos projetar, a partir de agora, a cidade para 2030. E eu tenho certeza que os próximos gestores, as próximas gestoras da nossa cidade, necessariamente vão ter que ouvir a população, fazer PPA participativo, porque isso já está amadurecido na nossa cidade”, concluiu.
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