Um dos mais experientes montanhistas brasileiros, André Ilha completa 50 anos de escaladas pelo país. Nestas cinco décadas, desbravou picos inexplorados e acumulou aventuras que incluem encontros com traficantes de drogas e até um assalto nas alturas. André recebeu ((o))eco enquanto finalizava seu segundo livro, intitulado “Rumo ao desconhecido”, onde descreve a experiência de ser o primeiro montanhista a chegar a 66 cumes nunca antes acessados no interior do Brasil.
“Minha vida toda girou em torno do montanhismo. Tinha um trabalho – fiscal de contribuições previdenciárias – que possibilitava a entrega profissional e o prazer de desbravar montanhas. Passei a ser ambientalista por causa das escaladas, com a indignação de ver áreas tão maravilhosas sendo destruídas em ocupações e desmatamentos”, diz.
Casado com Maristela Fonseca desde 2018, André conta que a história dos dois é de reencontro. Namoraram entre 1993 e 1996, cada um se casou outras duas vezes e, 21 anos depois, reencontraram-se. Hoje são parceiros de escaladas: “Ela hoje escala melhor e com mais entusiasmo!”.
André celebra a data contabilizando vitórias para o meio ambiente e lutas ainda em curso, como a mobilização contra a instalação da tirolesa no Pão de Açúcar, no Rio de Janeiro. “A luta é séria, desigual, com um oponente poderoso e com faturamento multimilionário, com grandes escritórios de advocacia e publicidade. E do outro lado, nós, voluntários que trabalhamos por amor à natureza e à cidade. O Ministério Público tem sido bastante atuante, a ação civil proposta foi excelente. A empresa e o IPHAN, que é cúmplice da companhia, não têm para onde fugir. Nossa percepção é de que aquilo tem que ser desfeito, os bens tombados – os morros – têm que ser recuperados na medida do possível. Claro que a rocha removida é um dano irreversível, mas os reparos precisam ser feitos para o bem da paisagem que foi reconhecida mundialmente como Patrimônio da Humanidade”.
A rebeldia que virou uma paixão
O adolescente André, então morador de Copacabana, viu sua rotina virar do avesso com a decisão da família de mudar para a Região Serrana do estado. Longe dos amigos, decidiu tentar algo novo. Foi quando começou a fazer as primeiras escaladas, para desespero da mãe, que considerava a atividade perigosa. Descobriu na prática esportiva o alívio para a ansiedade da juventude. Encantou-se pelo montanhismo e logo se filiou à única entidade ambientalista que existia nos anos 80: a Fundação Brasileira para Conservação da Natureza (FBCN).
“O montanhismo transformou minha vida para melhor, me abriu uma série de perspectivas, proporcionou alegria, prazer e despertou em mim a consciência ambiental. Recebendo os boletins da FBCN, percebi o que poderia ser feito para deter o processo e perda da biodiversidade brasileira. Com esta percepção ampliada, veio a campanha de lançamento da Fundação SOS Mata Atlântica e me associei também”, lembra.
No final de 1988, André Ilha e parceiros de escalada receberam a notícia de que uma importante área para o esporte, o Morro da Pedreira, na Serra do Cipó – localizado a 100 km de Belo Horizonte –, corria risco com a presença de uma mineradora, que já tinha atuado no maciço de calcário e se preparava para voltar a atividade. “Nós ficamos alarmados. Escaladores de Minas e do Rio resolveram se unir em defesa do morro, no que chamamos de Movimento Pró Morro da Pedreira. Este movimento que durou um ano e meio foi extremamente bem-sucedido. Aprendemos tudo: como lidar com a imprensa, legislação ambiental, articulação política e contato com o Ministério Público. A gente aprendeu no “tranco” a fazer luta ambiental”, conta o montanhista.
Os ambientalistas chamaram atenção das autoridades com um abraço ao morro e o então presidente José Sarney assinou o decreto de criação da Área de Proteção Ambiental do Morro da Pedreira. O texto foi publicado com um artigo considerado estratégico para os defensores da área, que proibiu todas as atividades que pudessem degradar o local, especialmente as minerárias. “A não reativação da pedreira permitiu que fossem criados mais empregos de melhor qualidade na região, em função das escaladas e do turismo, e a vegetação do morro se recuperou de forma espetacular”, comemora André Ilha.
Com a experiência bem-sucedida e a desmobilização dos parceiros de Minas Gerais, André e um grupo de sete amigos decidiram aplicar a experiência da luta ambiental em outras frentes. Em abril de 1990, criaram o Grupo Ação Ecológica (GAE), que atua até hoje. “A gente brinca que o GAE é o rato que ruge com tantas vitórias desproporcionais ao tamanho do grupo. Logo no início tomamos a decisão de não captar recursos para não ficarmos atrelados a nenhum financiador. Não queríamos nenhum constrangimento no momento de fazer uma denúncia. O GAE funciona como uma rede e as pequenas despesas anuais, que são mínimas, dividimos entre nós. Nossas lutas diretas são atualmente no Rio de Janeiro”, explica.
As conquistas no espaço público
André Ilha foi três vezes presidente do Instituto Estadual de Florestas do Rio de Janeiro (órgão que antecedeu o INEA) – de janeiro de 1999 a abril de 2000; de abril a dezembro de 2002; e de setembro de 2007 a dezembro de 2008 – e por um curto período, nessa mesma época, esteve à frente da Superintendência de Biodiversidade da Secretaria Estadual do Ambiente no Rio de Janeiro. Em 2007, virou Diretor de Biodiversidade e Áreas Protegidas do Instituto Estadual do Ambiente (INEA), onde permaneceu até abril de 2014.
“A experiência no espaço público foi a mais fantástica da minha vida. Muito se deve ao deputado Carlos Minc, que foi Secretário do Ambiente no governo Sérgio Cabral (2007-2014). O Minc comandou uma revolução nas agendas ambientais do estado e eu pilotei uma delas, que foi a Agenda Verde, e os resultados foram maravilhosos”, comenta André.
O ambientalista lembra as principais criações na gestão com orgulho. Entre elas estão os parques estaduais dos Três Picos e Cunhambebe, até hoje os maiores do estado fluminense. A lista continua com a criação do Parque Estadual do Mendanha, o Parque Estadual da Lagoa do Açu, o Parque da Pedra Selada, Parque Estadual da Serra da Concórdia, a Estação Ecológica de Guaxindiba, a ampliação do Parque Estadual da Ilha Grande, do Parque da Serra da Tiririca, da Reserva Biológica de Guaratiba e da Reserva Biológica de Araras. “Criamos e ampliamos um grande número de unidades de conservação, principalmente aquelas de proteção integral”, conta orgulhoso.
André Ilha recorda ainda a revolução ambiental produzida com a criação do Fundo da Mata Atlântica, mecanismo operacional e financeiro para aplicação de recursos da compensação ambiental. “Ninguém sabia como fazer e o Rio de Janeiro teve a grande coragem de enfrentar todos os críticos e criar um procedimento que aplica, de forma super eficiente e transparente, não apenas os recursos destinados à Agenda Verde, como doações e convênios. O fundo foi tão bem-sucedido que recebi delegações de dez estados querendo conhecer sua aplicação”, conta. O Fundo utiliza os recursos de compensação ambiental, como prevê a Lei nº 9.985 de 2000, devidos pelos empreendimentos de grande impacto ambiental “Cada estado regulamentou de sua forma, mas o Rio de Janeiro foi pioneiro no sentido de criar um mecanismo em que aplicou recursos de natureza privada, com destinação pública de forma muito eficiente”, completa o ambientalista.
Em sua terceira passagem pelo INEA, Ilha destaca a criação do serviço de guardas-parque para a fiscalização das unidades de conservação. “Infelizmente o então governador Sérgio Cabral só permitiu a criação do serviço temporário por alguns anos. De lá pra cá, temos guardas-parques terceirizados que não podem fazer o trabalho completo, porque não são servidores públicos concursados. Ainda hoje lutamos para que o projeto de lei do deputado Carlos Minc (PSB/RJ), que prevê a criação do serviço na estrutura do INEA, seja aprovado pela Assembleia Legislativa”, reforça o ambientalista.
Surpresas com traficantes e assalto nas alturas
“Encontrar com traficantes é comum para quem escala no Rio de Janeiro. Teve um particularmente tenso porque os caras estavam muito doidos e ficaram muito desconfiados de estarmos com mochila nas costas. Desenrolar nossa saída sem levar um tiro, cercados por oito pistolas, foi uma situação tensa. Estávamos em Botafogo, na zona sul do Rio, onde o acesso ao ponto da escalada era em um buraco em um muro próximo a um conjunto habitacional. Em 1990 a atividade não era muito praticada ali e nossa presença despertou um mal-estar naqueles traficantes. Ficamos de mãos para o alto desenrolando nossa liberação. Nos deixaram passar, mas de repente quando estávamos próximos ao ponto da escalada, eles voltaram, nos cercaram dizendo que não estavam convencidos. Pensei: agora já era, tinha esgotado todos os argumentos na conversa anterior. Mostrei a mochila que não tinha nem material fotográfico e acabaram nos liberando”, narra André.
O montanhista lembra que anos antes, em 1984, sofreu um assalto assustador, pendurado numa corda no ar, a oito metros de altura. “Foi na agulhinha do Inhangá, em Copacabana. Eu estava escalando ali na antevéspera do Natal e na hora que estava pendurado no ar, eu e um amigo fomos abordados por três caras que disseram serem foragidos do presídio da Ilha Grande. Um deles percebeu que éramos jovens praticando esporte, mas um outro disse: sou assaltante e tudo isso aí me serve e engatilhou a arma, encostou no peito de um amigo meu, pedindo cordão, relógio e eu pendurado lá em cima da cena. O “malzão” ainda bebeu nossa água e jogou o cantil no meio do mato de uma forma bem agressiva e foi embora. O curioso é que o outro assaltante ficou para trás e fez questão de apertar a mão dos meus amigos lá embaixo, pedindo desculpas pelo assalto”.
Visitantes como aliados na conservação
Ao longo de sua vida, André sempre defendeu o uso público das áreas naturais como aliado da conservação. “O Rio é absolutamente privilegiado para quem gosta da natureza e para despertar o interesse pelo meio ambiente. Por isso que no nosso período no INEA mudamos a percepção para enxergar as visitações nas unidades de conservação, nos parques, como algo muito importante. Se a gente não tivesse a população do lado, na defesa das áreas protegidas, com esses sucessivos congressos que tivemos, estávamos perdidos. Havia uma concepção antiga e errônea de que os parques deveriam ser geridos como reserva biológica, que ninguém deveria colocar o pé. Todo visitante era visto com suspeição, qualquer visitação causaria impacto enquanto os verdadeiros impactos não paravam de acontecer por conta da ausência de fiscalização”, provoca.
O ambientalista cita o caso do Parque Nacional da Serra dos Órgãos, que ficou fechado por mais de uma década à visitação pública e no período se transformou num “paraíso de caçadores” que circulavam livremente no local. Para mudar este cenário, foi necessária uma mudança de estratégia. Antes, toda a visitação era proibida, salvo onde expressamente permitida. Num jogo de palavras, o paradigma mudou para “toda visitação é permitida, salvo onde é expressa e justificadamente proibida”, conta o ambientalista.
Essa mudança de paradigma deu origem ao decreto de uso público dos parques estaduais no Rio de Janeiro, em 2010. A posição fluminense, então pioneira, inspirou outros estados, como Minas Gerais, que emitiu uma portaria similar seguindo o modelo do Rio.
André Ilha acha a mudança fundamental para atrair a parceria da sociedade. “Se você mantém a população longe dos parques, considerando qualquer visitante como inimigo, na hora que tiver uma ameaça legislativa a quem você vai recorrer? As pessoas não vão se mobilizar em torno do que não conhecem. Você tem que trazer a população como aliada”, defende.
Ele avalia que hoje, após sucessivos governos no estado do Rio, os resultados ainda são favoráveis ao meio ambiente. “As circunstâncias políticas são outras, o estado passou por graves problemas financeiros e com isso a área ambiental é uma das primeiras a perder recursos. Sem contar com a baixa consciência ambiental do brasileiro que tem um olhar simpático para as causas ambientais, mas não compreende a necessidade de mais recursos, estrutura para o benefício que não será de uma pessoa, mas que será desfrutado pela coletividade. A cultura brasileira que começou com o saque aos bens naturais em benefício particular permanece. Muita gente tem simpatia pelas questões ambientais, mas se ela precisar fazer uma obra em sua propriedade ela acha natural derrubar árvores e fica revoltada se for impedida. Na hora que seus interesses são ameaçados, a preocupação com o meio ambiente desaparece. Isso por conta, sobretudo, da cultura extrativista trazida para cá pelos portugueses. Falta ainda educação ambiental”, completa André Ilha.
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André é referência para todos nós que somos duble de montanhista e ambientalista. Craque!!!!
Muito boa matéria, contando um pouquinho da história deste montanhista que além de ser referência no esporte, também o é da causa ambientalista, por sua intensa atuação marcada pela ética, inteligência e ardorosa defesa do meio ambiente. Parabéns ao ((o))eco e ao André.