Em meio a especulações sobre quais serão os nomes escolhidos para compor o primeiro escalão do governo eleito, após o anúncio de cinco dos trinta e sete integrantes, um nome em particular é aguardado por ambientalistas: quem, afinal, ocupará o comando do Ministério do Meio Ambiente e liderará as necessárias mudanças na área a partir de 01 de janeiro de 2023.
Marina Silva, da Rede Sustentabilidade, é uma das cotadas para a vaga, mas já adianta que a resposta só o presidente eleito pode dar. “Por enquanto eu estou com o mandato, que eu tenho muita alegria de ter recebido por São Paulo, e de ter ajudado politicamente, eleitoralmente, programaticamente, já no primeiro turno na campanha do presidente Lula, bem como agora na transição (..) a apresentar uma proposta robusta para essa transição”, desconversa.
Em entrevista exclusiva ao ((o))eco, realizada na última quinta-feira (15), Marina falou sobre a urgência de retomar uma agenda ambiental liderada por um governo federal que dialogue com os governos estaduais, além de fortalecer novas cadeias de valores para o modelo de desenvolvimento econômico. Leia os principais trechos da entrevista:
((o))eco: Aproveitando a sua participação na COP 27, como você vê o papel do nosso país no mercado global de créditos de carbono? Há espaço para o Brasil retomar a diplomacia verde?
Marina Silva: Eu acho que o protagonismo do Brasil no espaço da diplomacia vai além da diplomacia verde. O Brasil entra nesse protagonismo focado nas grandes questões ambientais que, para serem alcançadas, existirão elementos da economia verde. Eles são muito importantes para que a gente consiga alcançar grandes resultados, como tornar o Brasil uma economia de baixo carbono. Para isso, o mercado de crédito de carbono, na perspectiva da redução da emissão e do sequestro de carbono, precisa ser regularizado de forma efetiva.
Até hoje nós não temos uma regulamentação que seja efetiva e isso precisa acontecer para que o Brasil, de fato, possa se tornar uma economia de baixo carbono, de modo a refletir nos mais diferentes setores da nossa dinâmica econômica, como energia, indústria, transporte e agricultura. A agricultura tem uma forte incidência de carbono, sobretudo quando também é usada para pecuária, responsável pela emissão de metano. Mas os maiores vetores são o desmatamento e a queimada, 75% das nossas emissões vem de desmatamento e de uso da terra. A regulamentação do carbono de forma efetiva pode ser uma ferramenta importante para atingir um grande objetivo que é o de nos tornarmos uma economia de baixo carbono.
Dentro dessa questão do crédito de carbono, o Manifesto dos Povos da Amazônia criticaram a COP 27, defendendo uma desmercantilização da floresta. Nesse sentido, você concorda que esse mercado está sendo levado como o “novo ciclo da borracha” para a Amazônia, com pessoas chegando de fora para extrair a riqueza que seria, no caso, essa nova commodity do crédito de carbono?
Por isso que eu fiz questão de dizer que isso é uma das ferramentas, não é a principal ferramenta, porque eu sei que as comunidades têm razão quando elas fazem a crítica. Pois se você põe todo o foco na questão de crédito de carbono, como faz o governo Bolsonaro, que não discute redução do desmatamento, não discute mudança no padrão da infraestrutura, não discute mudança da energia, aí você coloca a questão do carbono simplesmente no aspecto da dinâmica econômica, só como mais um ciclo econômico sobre o que a natureza tem de disponível.
Agora, os serviços ambientais, seja de sequestro de carbono ou outros, não devem crescer em prejuízo de um mesmo modelo de desenvolvimento. A principal ferramenta é a mudança do modelo de desenvolvimento e isso não se faz olhando só para dinâmica econômica, mas se faz pressupondo aspectos sociais, culturais, políticos e valores.
A sustentabilidade não tem só uma maneira de fazer, ela é uma nova visão de mundo para aquilo que chamo de cultura sustentabilista. Alguns serão sustentabilistas conservadores, preocupados em proteger a natureza porque ela faz parte do desenvolvimento sustentável e das dinâmicas de mercado. Outros serão sustentabilistas progressistas, preocupados em reduzir a desigualdade, em preservar as populações tradicionais e originárias, em respeitar a diversidade biológica, a sociobiodiversidade, em criar um novo ciclo de prosperidade.
Para mim, muito disso é trazer o olhar das comunidades originárias e tradicionais que fazem uso com sabedoria dos recursos naturais. Afinal, elas estão há milhares de anos em áreas naturais vivendo com baixíssimo impacto. Essas comunidades estão em mais de 80% das áreas que são protegidas no mundo, ou seja, elas possuem tecnologias que funcionam e que devem ser consideradas. Quem somos nós para chegar em uma fagulha disso e já dizer que uma ferramenta nossa já é a solução?
O agronegócio é um setor importante para a economia brasileira. Como o Brasil pode incentivar um agro mais sustentável, produzindo com baixo impacto e incorporando externalidades, como perda de água e solo?
Esse é o desafio que está posto para nós. O agronegócio e as commodities agrícolas são importantes, inclusive no contexto de crise econômica. Mas segundo os bons economistas, nenhum país saiu da renda média apenas com o foco nas commodities, o país deve buscar novas cadeias de valor que estejam associadas a uma ideia de bioeconomia, de alavancar a indústria de base sustentável, de buscar a mobilidade urbana a partir de outras práticas que não levem a essa relação insustentável com prejuízo do clima e do bem estar das pessoas.
Agora, no caso da agricultura, o que o Brasil está comprometido, inclusive a partir de um documento que apresentei ao presidente eleito Lula em setembro, é que a gente seja uma agricultura de baixo carbono. Isso pressupõe uma série de pré-requisitos que não têm a ver apenas com a fixação de carbono, que pode ser feita nos sistemas consorciados, como os agrossilvipastoris que são de agricultura, lavoura e pecuária. Mas tem a ver também com o uso sustentável dos recursos hídricos, com o uso regenerativo da terra, e outras práticas que precisam ser implementadas.
O que bons pesquisadores da Embrapa dizem é que adotar essas práticas não diminui a produção. Pelo contrário, isso aumenta a nossa produção por ganho de produtividade. Longe de diminuir a nossa capacidade competitiva, segundo esses pesquisadores, nós podemos dobrar a nossa produção sem precisar derrubar mais árvores. Agora, isso é uma transição, na proposta que apresentei ao presidente Lula, eu coloquei que uma base para essa transição serão os recursos do Plano Safra em que temos 360 bilhões para produtores rurais. Esses recursos não podem ser tomados sem contrapartida ambiental. É preciso que o acesso a esses recursos tenha o compromisso de contribuir com essa transição que não acontece da noite para o dia. É importante ter um cronograma de implementação de metas que sejam mensuráveis com resultados para vermos se esses estão na trajetória estabelecida.
Segundo Vera Lex Engel, pesquisadora da UNESP de Botucatu, o desmatamento em outros biomas, como Cerrado e Pantanal, estão ocorrendo em regiões das cabeceiras das nossas grandes bacias hidrográficas. Nesse sentido, ela coloca que um desafio para o próximo governo é envolver os governos estaduais em um processo de planejamento de uso de solo. Como fazer isso, se a maioria dos governos estaduais estão alinhados com o agronegócio convencional?
No documento que entreguei ao presidente Lula consta que nós devemos retomar o plano de prevenção e controle do desmatamento da Amazônia e do Cerrado, e estender esse plano para todos os biomas brasileiros, como Mata Atlântica, Caatinga, Campos sulinos e Pantanal. Estender o plano de controle e prevenção do desmatamento é uma necessidade e não pode ser apenas federal.
Também existem planos de desenvolvimento sustentável que nós fizemos para a Amazônia e estávamos concluindo para o Cerrado, e isso precisa acontecer também em relação aos demais biomas. É claro que nós vamos ter governos que serão mais alinhados e outros que serão mais resistentes. Mas há uma lógica que está sendo imposta pela realidade da qual não terá como fugir.
Além das crises hídricas que estamos vivendo, estamos vivendo eventos extremos que vêm das crises climáticas, como tempestades de areia, chuvas torrenciais e deslizamentos de terra. Estes tivemos em Petrópolis, Pernambuco, no Sul da Bahia, e em cidades de Minas Gerais. Isso tudo impõe uma nova realidade, inclusive para esses governos negacionistas e produtores do agronegócio que terão de compreender a necessidade de fazermos uma mudança, pois os prejuízos já são claros.
Hoje nós já temos uma perda de superfície hídrica de 15%, medida pelo MapBiomas Brasil. Nós já temos um encurtamento das chuvas de cerca de 27 dias em cidades do estado do Mato Grosso e isso levou ao prejuízo de bilhões de dólares na agricultura dessa região. No estado de São Paulo, já estamos completando quase um mês de distanciamento do período que era para iniciar as chuvas. Uma parte do agronegócio já compreendeu isso e a Ciência tem uma boa base de informação e de argumentação para que essa mudança aconteça. Mesmo os governos estaduais que forem negacionistas terão que fazer o dever de casa em benefício da população e da economia.
Enfim, é uma agenda da qual não vamos ter como fugir. Com um governo federal que procura dialogar, que procura trabalhar e liderar pelo exemplo, será fácil para gente avançar. Difícil é quando temos um governo federal como o do Bolsonaro, que não tem essa postura. Daí, os governos estaduais que já possuem dificuldade de implementar uma agenda ambiental ficam com mais dificuldade ainda. Enfim, a ideia agora é estruturar o plano de prevenção e controle do desmatamento para todos os biomas, ao mesmo tempo que o plano de desenvolvimento sustentável é estruturado para todos os estados.
Toda a sociedade, todo mundo, todos os núcleos do Ministério Público, vão ter que entrar com ação contra esse tipo de licenciamento [autolicenciamento]. Eles pensam que isso vai facilitar? Eles vão judicializar qualquer licenciamento com esse processo de autodeclaração. A coisa mais sensata a fazer é não fazer isso.
Marina Silva.
Segundo o climatologista Carlos Nobre, as energias renováveis estão entre as menos custosas, mas os subsídios para a indústria fóssil, grande contribuinte para crise climática, ainda são bem maiores. Considerando o potencial energético do Brasil, que políticas públicas e parcerias você destaca para estimular o investimento em energias solar, eólica e de hidrogênio verde?
A primeira coisa que temos que fazer é ter a clareza de que o plano de segurança energética para o Brasil deve caminhar na direção de ter uma matriz energética limpa, renovável, segura e com geração distribuída. Uma vez estabelecido que esse é o nosso termo de referência, então vamos trabalhar no sentido de sair da grande contradição que nós vivemos hoje.
A energia eólica, a energia solar e a energia de biomassa já têm um custo menor do que a energia de hidroeletricidade. Essas energias renováveis também podem ter uma eficiência maior do que a energia gerada pela hidroeletricidade. Se o processo de geração de energia ocorre dentro da cidade ou próximo da cidade, já tem um ganho de energia em torno de 20% a 25%. Quando trazemos energia através de processos de longa distância, temos a perda de até 30% dessa energia no trajeto. Assim, investir em energia eólica e solar, por exemplo, é ter mais eficiência energética e menos impacto socioambiental do que grandes projetos como é o caso das grandes hidrelétricas. Em relação à energia fóssil, seja carvão, diesel ou gás, ela é uma realidade que se impõe para o mundo ainda, mas principalmente para países que não têm condições como o Brasil de produzir energia limpa, incluindo hidrogênio verde. As parcerias a gente pode buscar nesse terreno.
Recentemente na COP 27, quando eu estava conversando com os ministros de meio ambiente e desenvolvimento econômico do Reino Unido e da Alemanha, eles muito claramente colocaram que têm interesse na questão do hidrogênio verde, mas sabemos que para produzir hidrogênio verde, precisamos ter uma grande quantidade de energia limpa. O Brasil reúne possibilidades para fazer isso com recursos do BNDES. Nós podemos fazer também uma mudança no paradigma da Petrobras, em vez de ser uma empresa apenas de exploração de petróleo, ser cada vez mais uma empresa de geração de energia em geral, assim ela passaria também a investir em energias limpas. Eu gosto daquela frase batida que “a gente saiu da idade da pedra não pela falta da pedra, mas foi porque descobrimos outras coisas”. A gente vai sair da Era fóssil, não pela falta de carvão e petróleo, mas porque a gente descobriu outras coisas que não inviabilizam a vida na Terra. O Brasil como supridor de energias limpas, como hidrogênio verde, e tendo estabilidade na proteção das suas fronteiras, estaria avançando na importância estratégica da segurança energética.
Em relação ao polêmico papel da energia nuclear. Manaus, por exemplo, não supre energia suficiente das hidrelétricas e termelétricas locais, tendo que importar de outros lugares mais distantes. Como você vê a possibilidade de usinas nucleares serem instaladas para abastecer totalmente algumas regiões, como uma transição para chegarmos finalmente às energias totalmente limpas e seguras?
Eu vejo de outra forma, vamos utilizar o grande potencial que já temos de solo e de vento, vamos criar mecanismos de geração de energia. Nós temos um grande potencial de produzir energia a partir da biomassa, mas grande parte dela vira gás carbônico na atmosfera quando poderia ser transformada em energia. Por que a gente vai buscar colocar usina nuclear onde tem a Amazônia que é um lugar sensível e que tem a própria floresta para gerar a energia necessária? Por exemplo, quando nós fizemos as concessões florestais ao longo da rodovia BR 163 no Mato Grosso, criamos os distritos florestais sustentáveis. O potencial de geração de energia de biomassa só desses distritos é enorme, e isso quando pensamos apenas em manejo florestal sustentável de uma região. A natureza é poliglota, quando fizemos boas perguntas, florestas como a Amazônia nos deram respostas sobre as fontes de energia sustentáveis já disponíveis.
No recente programa Roda Viva, você comentou que desmatamento e comércio ilegais na Amazônia atual são muito mais complexos do que quando comandou o Ministério do Meio Ambiente, inclusive com muito mais vias clandestinas abertas. Quais medidas o Estado deve tomar para combater com eficiência o crime ambiental espalhado em uma área tão extensa como a Amazônia?
Sim, agora a realidade está muito mais complexa. Hoje nós temos o atravessamento de várias formas de criminalidade, como pesca ilegal, tráfico de drogas, trafico de armas, garimpo, exploração de madeira, grilagem, enfim, é um pot-pourri de criminalidade que se cruza. Mas nós temos uma experiência que deu certo, nós não vamos partir do nada agora.
Em 2003, quando nós chegamos no governo, nós fomos tirar do zero um processo de monitoramento em tempo real, que é o sistema DETER (Sistema de Detecção de Desmatamentos em Tempo Real). Fazer o plano de prevenção e controle do desmatamento. Criar uma cultura de política ambiental transversal para a Amazônia, para o enfrentamento da questão do ordenamento territorial e fundiário, para o combate às ilegalidades e para o desenvolvimento sustentável. Infelizmente só o que funcionou foi o combate à ilegalidade e ordenamento territorial fundiário. A agenda de desenvolvimento sustentável, que é dos outros Ministérios que trabalham com o fomento, infelizmente não avançou. Mas deu certo. E por mais de uma década deu certo. Então é recuperar de forma atualizada o plano.
E se, naquele momento, já foi fundamental muita inteligência do Ibama e da Polícia Federal, calçando as nossas ações, agora incomparavelmente mais. Então é preciso fazer essa atualização e levar para o processo da dinâmica do combate ao desmatamento os instrumentos de políticas econômicas, como a questão da reforma tributária: quais são os mecanismos de incentivos que se irá criar para botar de pé a nova economia? É fundamental pensar uma reforma tributária. Quando você pensa nos incentivos, os instrumentos creditícios, quais são os redutores em termos de política de juro para quem quer fazer um investimento voltado para a bioeconomia? Nas prioridades na agenda de combate aos crimes, nós não podemos chegar apenas com a face do comando e controle. Inclusive com políticas emergenciais, como é o caso do Bolsa Verde, e outras ações para dar suporte às comunidades mais vulneráveis. Mas isso são políticas emergenciais.
Você tem que trabalhar com a questão de um novo modelo, inclusão produtiva, criar uma economia diversificada, pois é isso que vai fazer com que nós não tenhamos que ficar enxugando gelo. Mas agora nós teremos medidas para os primeiros 100 dias de governo, que já dialogarão com processos estruturantes de mudança dessas abordagens. O plano de prevenção e controle do desmatamento, nas suas diretrizes estratégicas, ele continua atualíssimo: combate à ilegalidade, ordenamento territorial e fundiário e investimento em desenvolvimento sustentável. Esse é o tripé. Em cada uma dessas agendas vamos ter que trabalhar de forma transversal, criando sinergias, inclusive na agenda de ordenamento territorial e fundiário. Fazer a destinação das áreas de terras públicas com floresta que ainda não foram destinadas. Nós temos 57 milhões de hectares de áreas com floresta que precisarão ser destinadas, mas não mais para corte raso. Única e exclusivamente para terra indígena, unidade de conservação de proteção integral ou de uso sustentável.
Segundo a pesquisasira Vera Lex Engel, o avanço do garimpo ilegal em terras indígenas, como a dos Yanomamis, e também o envolvimento dessa atividade com tráfico e contrabando internacional, está se mostrando desafiador de combater. Podemos chamar isso de genocídio? Devemos fortalecer uma política integrada de controle de fronteiras?
Um dos compromissos públicos e reiterados tanto no discurso da vitória, quanto agora na COP 27 no Egito, do presidente Lula, é de que ele vai remover o garimpo ilegal das terras indígenas. Hoje nós temos três grandes TIs que estão altamente vulneráveis: A terra dos Caiapós, dos Yanomami e a TI Pirititi, onde houve uma grande apreensão de madeira que depois foi relaxada pelo governo Bolsonaro na época. Se você consegue resolver o problema nessas três áreas, você resolve todos os problemas. Porque quando você pega um problema que parece irresolvível e você resolve, mostra que você dá conta do recado.
No caso do povo Yanomami é sim um genocídio. Com o povo Caiapó a situação também está muito grave. Nós temos uma situação de criminalidade ali que terá de ser enfrentada de uma forma muito bem estruturada. Para que a medida seja exemplar e que se proteja a vida dos povos indígenas. Não é algo que se pode fazer apenas como um demonstrativo. Não. É algo que tem que ser muito bem pensado, planejado. Inclusive buscando alternativas para os próprios garimpeiros, que não são os que fazem os grandes investimentos.
Nós temos um programa, que já é um compromisso do Brasil, de reflorestar com espécies nativas 12 milhões de hectares de área degradada. Com esse reflorestamento, segundo os cálculos do Instituto Escolhas, nós podemos gerar algo em torno de 260 mil empregos. Se você tem 70 mil garimpeiros, você já tem espaço para botar essas pessoas pra trabalhar. Aí muita gente diz: mas eles nunca vão ganhar o mesmo que no garimpo. Primeiro que eu duvido que o garimpeiro mesmo, aquele que está lá cavando, tenha essa vantagem toda. Não tem jeito. É uma atividade criminosa. Não pode. Tem que ganhar de forma lícita. Lamento, mas é uma atividade ilícita. Você tem que ir pra uma atividade lícita. E é isso que o governo terá de prover, do ponto de vista de alternativas, para fazer essa desintrusão, recuperação dessas áreas, descontaminação dessas áreas e principalmente o tratamento dessas pessoas, que hoje estão com seu sistema nervoso comprometido, com grave contaminação por mercúrio. De cada 10 crianças Yanomami, pelo menos 4 estão contaminadas. Isso é sim um genocídio.
Há diversas ações que merecem mais atenção e recuperação, dado o desmonte da política ambiental ocorrido durante o governo Bolsonaro, em especial na gestão Salles, como a reposição do corpo técnico nos institutos como IBAMA e ICMBio, a retomada de programas do INPE sobre monitoramento de desmatamentos e queimadas por satélites, o estímulo à regularização do CAR, do Código Florestal, o fortalecimento da fiscalização e da sanção administrativa para crimes ambientais, e outras. Tudo isso deve ser prioridade imediata do Estado ou há alguma prioridade zero na área ambiental que deve ser atacada no primeiro dia do novo governo?
Acho que a prioridade zero a gente já conseguiu alcançar, que foi derrotar o Bolsonaro. A partir daí é recompor as equipes que foram desestruturadas, substituídas por policiais, recomposição de orçamento, fortalecimento das instituições, tanto aquelas que são responsáveis pela gestão das unidades de conservação, como é o caso do Instituto Chico Mendes, que está enfraquecido, desmontado, a questão das ações de fiscalização e licenciamento que tem a ver com o IBAMA, de monitoramento que tem que haver com o instituto de pesquisas espaciais. O, digamos assim, repatriamento do Serviço Florestal Brasileiro e da Agência Nacional de Águas, que hoje estão nos Ministérios da Agricultura e do Desenvolvimento Regional para o MMA e, ao mesmo tempo, você começar a atuar numa governança que seja duradoura, que fortaleça as políticas e as instituições públicas.
Nas medidas dos 100 dias você vai ter uma série de ações emergenciais, mas essas aí que eu listei são basilares na retomada do Fundo Amazônia, que tem 3 bilhões de reais, inclusive para essas ações emergenciais, que é um dinheiro que pode ser usado com mais rapidez. Além do Fundo Amazônia, precisamos urgentemente reaver o plano de prevenção e o controle do desmatamento, fazer toda essa atualização para que ele volte e aí não só para a Amazônia, mas ele tem que se estender para todos os biomas brasileiros. Além disso, quando eu saí do Ministério, nós tínhamos acabado de fazer o plano de desenvolvimento sustentável da Amazônia. Esse plano, ele foi muito bem consistente quando da sua feitura. Precisa atualizá-lo para que ele oriente as ações de desenvolvimento para a região. Principalmente na parte de infraestrutura e da busca de novas alternativas de vida para os 27 milhões de amazônidas que vivem ali.
Segundo Carlos Nobre, estamos perto do ponto de não retorno da Amazônia, na questão do desmatamento. E o professor Carlos Nobre defende uma política radical de desmatamento zero pro próximo governo, ao custo de, se não tivermos sucesso, podemos propiciar sim uma savanização nas bordas sul da floresta que vai ser irreversível. Pode comentar isso?
O compromisso do Brasil é de desmatamento zero até 2030. Esse compromisso teve um grande prejuízo em função do governo Bolsonaro, porque foram quatro anos de incentivo ao desmatamento, em lugar de progressivamente avançar no seu combate. Então não vamos ter que fazer só aquilo que teria que ser feito nos quatro anos do governo do presidente Lula, mas também será necessário fazer aquilo que não foi feito no governo Bolsonaro. Recuperando todos esses esforços, que estão muito mais agravados. Mas o compromisso do Brasil é de desmatamento zero. O próprio presidente Lula disse isso durante a campanha, no discurso da vitória e recentemente na COP 27. É algo fácil de se alcançar? Não é fácil. Mas mais do que desmatamento zero, é preciso colocar os principais pilares de uma nova dinâmica de desenvolvimento, que não nos leve a ficar enxugando gelo.
Aí entra a agricultura de baixo carbono, a agricultura diversificada, a bioeconomia, infraestrutura para o desenvolvimento sustentável. E é exatamente em função desse diagnóstico dramático, de que podemos já estar chegando no ponto de não retorno, que vem a decisão corajosa de que se vai transformar os 57 milhões de hectares de área com floresta em, apenas, terras indígenas ou unidades de conservação de uso sustentável e de proteção integral. Isso é você dizer que não há mais para onde avançar, porque nós já estamos ali beirando os 20% de desmatamento da Amazônia. Se chegar a 25%, a gente entra em ponto de não retorno. Então essas medidas todas serão necessárias para não se chegar a esse ponto.
É interessante um país que não fique só no controle, fiscalização e ordenamento do meio ambiente, mas também aproveite melhor o potencial social e econômico de unidades de conservação de uso sustentável?
É que as unidades de conservação têm várias modalidades. Você tem a de proteção integral, a de uso sustentável e você tem unidades de conservação onde é previsto visitação, algum tipo de atividade turística, como é o caso dos parques, que sempre terão uma área intangível e uma área de acesso. As unidades de conservação, como as reservas biológicas, você não pode ter nenhuma atividade. Mas isso aí não é porque você vai arbitrar assim, é porque tem um estudo científico que faz esse lastro para que seja assim. E as unidades de uso sustentável, algumas delas tem a presença das comunidades, a presença das próprias populações indígenas, você tem também a possibilidade do manejo florestal sustentável. Tudo isso é uma atividade econômica. E não necessariamente para a exploração de madeira. Você pode explorar fibras, oleaginosas, resinas, fruto, um monte de coisas porque ali tem uma profusão de riquezas que não precisa necessariamente derrubar as árvores para extrair madeira.
O Projeto de Lei (PL 3729/2004), conhecido como “mãe de todas as boiadas”, está tramitando no Senado e tem como objetivo colocar o autolicenciamento ambiental como regra no país. O que é razoável fazer, caso esse PL seja aprovado para sanção do novo governo?
Acho que nesse caso do auto licenciamento, que é uma categoria absurda que só mesmo Bolsonaro poderia criar, né? Sobretudo depois do que aconteceu em Brumadinho e Mariana. Ali tinha um processo de licenciamento, acompanhamento do Ministério Público, dos órgãos ambientais estaduais, laudos atrás de laudos, e aconteceu o que aconteceu, a comunidade perdeu suas vidas, perdeu seu patrimônio histórico, econômico, social, sua memória, tudo. E até hoje não foram indenizados. As empresas mudam o CEO e depois continuam como se nada tivesse acontecido. Agora imagine num processo de licenciamento auto declaratório, o que acontecerá. Então a coisa mais sensata que se pode fazer em relação a isso é não aprovar. Porque vai ser um processo de judicialização interminável. Toda a sociedade, todo mundo, todos os núcleos do Ministério Público, vão ter que entrar com ação contra esse tipo de licenciamento. Eles pensam que isso vai facilitar? Eles vão judicializar qualquer licenciamento com esse processo de autodeclaração. A coisa mais sensata a fazer é não fazer isso.
Os licenciamentos precisam ganhar agilidade? Claro. Mas quem foi que disse que pra ter agilidade tem que perder a qualidade? Que tem que ser conivente com o que não deve ser aprovado no processo de licenciamento? Você tem que trabalhar com a lógica, né? De reduzir ao máximo os danos ou de mitigar danos. E quando não é possível, não é compatível. Às vezes a licença não pode ser dada mesmo. Isso já aconteceu. A hidrelétrica de Ipueiras, de Tijuca Alto, em São Paulo, nós não demos a licença. E não demos porque ela não tinha viabilidade econômica, não tinha viabilidade ambiental, não tinha viabilidade social e muito menos cultural, porque ia alagar o quilombo do Mumbuco. Não tem nem lógica, né? Qualquer licenciamento dessa natureza vai ser judicializado. Não é uma solução, é uma anti solução. Não cria segurança jurídica, é o mais radical ambiente de insegurança jurídica.
Uma recente nota da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) coloca que alguns Ministérios, entre eles o do Meio Ambiente, constituem áreas estratégicas para o país e devem ter lideranças comprometidas, como a ex-ministra. Ou futura ministra? A senhora pode adiantar isso pra gente?
Olha, a única pessoa que pode adiantar ou atrasar essa resposta é o presidente Lula. Por enquanto eu estou com o mandato, que eu tenho muita alegria de ter recebido por São Paulo, e de ter ajudado politicamente, eleitoralmente, programaticamente, já no primeiro turno na campanha do presidente Lula, bem como agora na transição, onde ajudei juntamente com uma equipe de colegas, coordenados pelo Jorge Viana, a apresentar uma proposta robusta para essa transição. E ver que boa parte dos instrumentos que ali estão eu pude contribuir com eles, inclusive da sua concepção.
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