Reportagens

Após pressão do governo de MT, Ibama e IPHAN liberam obra no Portão do Inferno

Órgão ambiental optou por licenciamento simplificado. Retaludamento vai atingir sítio arqueológico e alterar paisagem do Parna da Chapada dos Guimarães

Cristiane Prizibisczki ·
20 de junho de 2024

Após três meses de intensas discussões entre os governos federal e do estado de Mato Grosso, os órgãos ambientais federais e de patrimônio histórico concordaram com a realização do retaludamento do paredão rochoso localizado na entrada do Parque Nacional da Chapada dos Guimarães (MT), conhecido como Portão do Inferno. O processo, no entanto, está marcado por questionamentos e falta de transparência por parte do governo de Mauro Mendes (União Brasil).

O Portão do Inferno é um paredão rochoso constituído, ao longo de milhares de anos, por três formações geológicas. As primeiras rochas, na base do paredão, são do Grupo Cuiabá e possuem entre 1 bilhão e 500 milhões de anos. O segundo grupo de rochas são da Formação Furnas, de quando a área era coberta pelos oceanos, algo entre 410 e 360 milhões de anos atrás. A terceira, composta pelos arenitos vermelhos que hoje são mais visíveis quando se passa ao lado do paredão, é da Formação Botucatu, com 150 a 140 milhões de anos. 

Nos anos 2000, a estrada que liga Cuiabá a Chapada dos Guimarães foi pavimentada, ganhando o nome de MT-251. No trecho que passa pela lateral do Portão do Inferno foi construída uma ponte, exatamente na divisa entre as formações Furnas e Botucatu. A área, que geologicamente já era propícia para deslizamentos e descolamento de rochas, ficou ainda mais vulnerável com o intenso tráfego de veículos.

Segundo a gestão do Parna de Chapada dos Guimarães, a fragilidade do local é conhecida desde ao menos 2008, quando um estudo da Universidade Estadual de Mato Grosso identificou o Portão do Inferno como área vulnerável.

Vista lateral do Portão do Inferno. Foto: Marcos Vergueiro/Secom-MT

Em 2019, o Governo do Estado de Mato Grosso foi comunicado sobre as quedas de blocos rochosos. Em 2021 e 2023 novamente o estado foi avisado: a intensidade e frequência das quedas havia aumentado. 

“Todo mundo fica surpreendido com a queda de rochas, menos o próprio Paredão. Porque ele já dizia, milhões de anos atrás, que ele ia cair, que essa formação geológica lá ia cair. Então, quem construiu a rodovia deveria estar preparado para esse sistema geológico natural, para essa situação”, diz Fernando Francisco Xavier, gestor chefe do Parna da Chapada dos Guimarães.

Em novembro de 2023, novos deslizamentos aconteceram e então o governo do estado apresentou uma proposta de intervenção emergencial no local. No dia 23 de dezembro de 2023, no entanto, um grande bloco rochoso se desprendeu do paredão, interditando a via. Foi aí que a pressão do estado sobre os órgãos ambientais começou.

Medidas emergenciais

No final de 2023, o governo de Mauro Mendes elaborou um relatório identificando fragilidade geológica entre os quilômetros 42 e 48 da MT-251, com necessidade de intervenções emergenciais. “Esses seis quilômetros de distância é a parte onde o paredão está mais próximo da rodovia. Ou melhor dizendo, onde a rodovia foi implantada próxima do paredão”, diz Xavier.

Segundo o gestor do parque, todas as obras emergenciais propostas pelo governo naquele momento foram autorizadas pelo ICMBio, órgão ambiental federal que cuida das áreas protegidas do país, e pela própria gestão da unidade. 

Instalação de sistema de vigilância de câmeras, uso de drones, instalação de mantas para contenção de deslizamentos e telas de proteção estavam entre elas. A única coisa que não foi autorizada naquele momento foi a retirada de blocos rochosos, justamente por ali existir um sítio arqueológico de cerca de 4 mil anos, ainda pouco estudado.

“Foi feita uma visita ao local pelo Ibama, ICMBio, Tribunal de Contas do Estado, e o IPHAN [Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional] foi avisado desde o primeiro momento da existência desse sítio arqueológico. Este órgão posteriormente fez um relatório dizendo ‘não’ para a retirada de blocos rochosos, antes que houvesse o acompanhamento de um arqueólogo”, explicou Xavier a ((o))eco.

No final de março de 2024, no entanto, para a surpresa inclusive dos órgãos ambientais federais, o governo de Mauro Mendes apresentou a proposta de retaludamento do Portão do Inferno. Isto é, a retirada total do maciço de rochas do paredão, o que envolverá o deslocamento de 180 mil metros cúbicos de rochas.

Na apresentação feita pela Secretaria de Estado de Infraestrutura e Logística (SINFRA), esta seria a “solução definitiva” do governo. A empresa responsável pela obra já está selecionada, inclusive: Lotufo Engenharia e Construções LTDA,  contratada com “dispensa de licitação”.

Segundo o governo do estado, dentre 10 alternativas existentes, o retaludamento seria a melhor opção. Na apresentação feita pela SINFRA e nos documentos oficiais do projeto, no entanto, não estão detalhadas quais seriam essas outras alternativas. 

Além disso, para agilizar o processo, eles pediram aos órgãos ambientais e ao IPHAN a “dispensa de licenciamento”. A ideia era que o licenciamento fosse feito apenas pelo órgão estadual. Nas contas do governo, a obra levaria 120 dias para ser concluída, a um custo de R$30 milhões.

Retaludamento

Retaludamento é um processo de terraplanagem através do qual se alteram, por cortes ou aterros, os taludes originalmente existentes em um determinado local. A proposta do governo do estado do MT pretende tirar 180 mil m³ de rochas do Portão do Inferno, com a destruição total do paredão.

Slide apresentado pelo governo do estado do MT com a proposta de retaludamento do Portão do Inferno.

Problemas múltiplos

As quedas constantes de blocos rochosos no Portão do Inferno de fato causaram um problema social na região de Chapada dos Guimarães. A MT-251 foi interditada logo após os descolamentos e atualmente a via funciona com uma pista apenas, num sistema de pare e siga. Ônibus e caminhões foram proibidos de trafegar por ali. 

Segundo apurou ((o))eco, que esteve em Chapada dos Guimarães no final de abril deste ano, além de problemas de abastecimento, moradores da cidade enfrentam dificuldades de deslocamento, principalmente aqueles que não têm veículo próprio. Alguns tiveram de parar os estudos realizados em Cuiabá, já que o tráfego de ônibus não é mais permitido no trecho. 

Rodovia hoje funciona com uma pista, em sistema de pare e siga. Foto: Marcos Vergueiro/Secom-MT

Por outro lado, os órgãos ambientais alegam que uma obra como esta não pode ser feita às pressas. Além da beleza cênica do Portão do Inferno, da riqueza geológica e da existência de um sítio arqueológico ainda não estudado, a área do paradão está parcialmente sobre o Aquífero Guarani. A retirada das rochas poderia comprometer a área de drenagem do maior aquífero do Brasil.

“O principal impacto [do retaludamento] que considero é na própria paisagem. Mas, também, no momento que você retira essas rochas, a água que antes se infiltrava por uma direção pode se infiltrar para a outra”, diz o geólogo Caiubi Kuhn, professor na Faculdade de Engenharia da UFMT e mestre em Geociências.

Segundo ele, o retaludamento pode influenciar os processos de erosão das rochas remanescentes e do entorno da obra, tornando-as instáveis, com fraturas. “A água vai percolar de forma diferente, então, você pode inclusive manter o problema [de descolamento de rochas]”, explicou o geólogo.

Além dos problemas geológicos, Fernando Francisco Xavier, chefe do Parna da Chapada dos Guimarães, explica que nos seis quilômetros indicados pelo governo do estado como instáveis, já houve o avistamento de ninhos de arara vermelha, estes também pouco estudados.

Jogo de empurra

Apesar dos avisos de prudência dos órgãos ambientais federais e do próprio Parque Nacional, o governo de Mauro Mendes não mediu forças para convencer o governo federal da necessidade da obra. 

No início de abril, Mauro Mendes chegou a ir a Brasília conversar com o presidente do Ibama, Rodrigo Agostinho, acompanhado de deputados e senadores do Mato Grosso, além do prefeito de Chapada dos Guimarães. 

Em um vídeo gravado para as redes sociais, reproduzido pelo site Alô Chapada, Mauro Mendes chega a dizer que Rodrigo Agostinho prometeu celeridade no processo de liberação de licenciamento.

“Ele [Rodrigo Agostinho] ficou de, o mais rapidamente possível, tramitar essa documentação aqui dentro para dar uma resposta sobre esse pedido de licença de licenciamento para que possamos, em cinco dias após esse documento, iniciar imediatamente a obra”, disse na ocasião o governador do estado de Mato Grosso.

Além da pressão sobre os órgãos ambientais, ((o))eco apurou que políticos locais tentavam “culpar” Ibama e ICMbio pela demora na liberação da obra, jogando a população contra tais órgãos.

“Com toda essa fala de que ‘vai cair, vai cair’, que os próprios gestores do Estado falaram, que vai cair e que o responsável pela morte de alguém é o ICMBio, isso afugentou as pessoas. A nossa visitação caiu”, diz Fernando Xavier.

Outras opções 

Na apresentação que fez na Câmara dos Deputados, o governo do Estado citou, mas não apresentou quais seriam as outras nove opções para resolver a situação do Portão do Inferno. 

Segundo os especialistas ouvidos por ((o))eco, o retaludamento não é a melhor delas, pelos grandes impactos ambientais. Procurado pela reportagem, o governo do estado disse que: 

“As opções analisadas foram apresentadas em audiência pública realizada na Câmara Municipal de Chapada dos Guimarães, no dia 7 de março de 2024. Foram apresentadas as alternativas de construção de uma ponte estaiada; um túnel falso; o retaludamento; ampliação da proteção com grades; instalação de barreiras metálicas; construção de um túnel por dentro do morro. A opção pelo retaludamento foi escolhida levando em conta uma série de fatores: garante mais segurança quanto ao risco de quedas de blocos e também em relação ao possível colapso do viaduto; tem custo financeiro menor; prazo de execução mais rápido; menos complexidade; e menos impacto socioeconômico ao município de Chapada dos Guimarães”.

Segundo apurou ((o))eco, as opções, no entanto, não puderam ser analisadas pela sociedade civil. Segundo o geólogo Caiubi Kuhn, dificilmente a obra será finalizada em 120 dias, considerando o volume de rochas que precisam ser retiradas, o que vai aumentar o prazo de execução e também seu custo.

“Se essa obra tivesse sido debatida de uma forma técnica mais aprofundada, com certeza não colocariam que ela ia ser feita em 120 dias, porque esse prazo é inviável. E se o prazo não é um ponto real, a gente provavelmente vai ter aditivos e aumento de custo. Então, e essa parte eu continuo mantendo tranquilamente, pode ser que a gente esteja escolhendo a obra com o maior impacto, com o maior custo e a mais demorada”, diz.

No final de abril, ICMBio, Ibama e IPHAN montaram uma “força tarefa” para analisar o caso. Segundo apurou ((o))eco, na última quinta-feira (13), IPHAN liberou a documentação, autorizando a obra, com algumas condicionantes. 

Em entrevista a ((o))eco na última quinta-feira (13), Rodrigo Agostinho afirmou que a análise dos órgãos ambientais está pronta para liberação e deverá ser enviada ao governo do estado do MT nos próximos dias.

“Teve análise de estudos, inventários e consultas ao ICMBIO e IPHAN. Eles [governo do estado] tinham pedido que o licenciamento fosse delegado ao estado, mas como está dentro de uma UC Federal decidimos encarar o desafio”, disse Agostinho.

Na terça-feira (18), em entrevista à imprensa local, a secretária de Estado de Meio Ambiente de MT, Mauren Lazzaretti, disse que em até 10 dias o governo do estado deve ter em mãos o licenciamento simplificado, realizado pelo Ibama, e a licença de instalação. Com tais documentos em mãos, a retirada total da porta de entrada do Parque Nacional das Chapada dos Guimarães será iniciada.

  • Cristiane Prizibisczki

    Cristiane Prizibisczki é Alumni do Wolfson College – Universidade de Cambridge (Reino Unido), onde participou do Press Fellow...

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