Reportagens

Às pressas, Fundo Clima aprova consórcio para executar Lixão Zero em Rondônia

Em procedimento pouco usual, Caixa terá apenas três dias úteis para analisar volumosa documentação e projetos básicos de engenharia do projeto

José Alberto Gonçalves Pereira ·
23 de dezembro de 2020 · 3 anos atrás
O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, em mutirão de coleta de lixo em mangue localizado em Santos, São Paulo, em 2019. Foto: Ministério do Meio Ambiente/Flickr.

O MMA está promovendo operação relâmpago para viabilizar até o fim deste mês o uso de todo o orçamento não reembolsável do Fundo Clima de 2020 no projeto Lixão Zero. Tendo o controle do comitê gestor do Fundo Clima, o MMA conseguiu ontem, dia 22, aprovar como novo executor do projeto o Consórcio Intermunicipal da Região Centro-Leste de Rondônia (Cimcero). A presidente da entidade, Gislaine Clemente (MDB), conhecida como Lebrinha, foi presa no final de setembro por envolvimento em um suposto esquema de corrupção nos contratos com coleta e destinação de lixo em Rondônia. Lebrinha é prefeita de São Francisco do Guaporé, uma das 15 cidades que serão beneficiadas pelo Lixão Zero.

Chama a atenção o fato de que o Cimcero substituiu o governo de Rondônia como proponente e executor do projeto no último dia 15 e o contrato com a Caixa e o MMA deverá estar assinado até o dia 30. Em duas semanas, o MMA está viabilizando um novo executor para a proposta. A pasta demorou quase quatro meses para admitir publicamente que o governo de Rondônia possuía pendências fiscais com a União que  impediam a Caixa de lhe repassar dinheiro do Fundo Nacional do Meio Ambiente (FNMA) e do Fundo Clima.

A operação relâmpago começou pouco mais de duas horas após a publicação da primeira reportagem de ((o))eco sobre o assunto, no último dia 9. A segunda reportagem informa detalhes sobre a troca do governo de Rondônia pelo Cimcero como executor do projeto.

O processo de análise e aprovação do projeto no FNMA e no Fundo Clima apresenta pelo menos 16 procedimentos suspeitos, revelados por ((o))eco nas duas reportagens anteriores sobre o caso. Veja no box uma relação atualizada de procedimentos suspeito.

A Caixa contará com três a cinco dias úteis apenas para analisar e aprovar farta documentação sobre o projeto Lixão Zero e seu novo executor – o Consórcio Intermunicipal da Região Centro-Leste de Rondônia (Cimcero). O projeto tem valor total de R$ 12 milhões, que virão das linhas não reembolsáveis do Fundo Nacional do Meio Ambiente (FNMA) e do Fundo Clima. Para a análise e aprovação da proposta pelo banco, o proponente precisa encaminhar documentação técnica, social e jurídica, plano de trabalho e projetos básicos de engenharia.

Verificada a viabilidade da proposta e comprovada a ausência de pendências financeiras e fiscais do proponente, será formalizado o contrato de repasse de recursos entre a Caixa e o Cimcero. Os repasses são efetivados de acordo com as etapas executadas, devidamente comprovadas. Como o início do projeto ocorrerá no próximo dia 31, o contrato precisa ser assinado até 30 de dezembro.

O Cimcero entrou no circuito do Lixão Zero no dia 10 de dezembro, quando protocolou proposta similar à do governo de Rondônia, que visa eliminar 11 lixões, beneficiando 15 cidades do estado. Em menos de dois dias, o MMA analisou eventuais pendências fiscais e problemas com órgãos de controle e a capacidade técnica e econômica do consórcio executar o projeto.

No dia 14, o MMA protocolou parecer favorável à troca do governo de Rondônia pelo Cimcero como executor do projeto. Ainda sem aval do comitê diretor do Fundo Clima, o MMA empenhou (reservou) R$ 8,9 milhões em 15 de dezembro para o consórcio, que foi ratificado ontem pelo colegiado.

Em um único dia, a última segunda-feira, o consórcio incluiu 117 documentos na Plataforma +Brasil, antes mesmo da reunião do colegiado do Fundo Clima. No caso de Rondônia, proponente inicial do projeto, a documentação foi incluída somente depois que o projeto havia sido aprovado pelos colegiados dos dois fundos.

Os 15 municípios que serão beneficiados pelo Lixão Zero são Candeias do Jamari; Colorado do Oeste; Jaru e municípios localizados nos arranjos Abunã (Nova Mamoré e Guajará-Mirim), Madeira-Guaporé (Costa Marques, Seringueiras, São Francisco do Guaporé e São Miguel do Guaporé), Leste Rondoniense (Ouro Preto do Oeste, Mirante da Serra e Vale do Paraíso), Presidente Médici (Presidente Médici, Alvorada D’Oeste e Castanheiras).

Deflagrada em 15 de setembro passado pelo Ministério Público de Rondônia e Polícia Federal (PF), a operação Reciclagem apurou que Lebrinha e outros três prefeitos teriam recebido cerca de R$ 1,5 milhão em propina para autorizar o pagamento de dívidas com uma empresa responsável pelo serviço de lixo em várias cidades rondonienses. O dono da empresa se tornou delator e colaborou com a operação, filmando a entrega de maços de dinheiro à Lebrinha e aos prefeitos de Cacoal, Ji-Paraná e Rolim de Moura. Em decorrência de sua prisão, Lebrinha foi substituída na presidência do consórcio pelo prefeito de Parecis, Luiz Brito (MDB), cujo mandato termina no fim deste mês.

CNI vota com o governo

Na reunião do comitê gestor do Fundo Clima realizada ontem, apenas a Confederação Nacional da Indústria (CNI) alinhou-se ao governo federal entre as quatro confederações empresariais com assento no colegiado. Foram seis votos favoráveis à substituição do governo de Rondônia pelo Cimcero, consorcio integrado por 44 municípios.

Houve dois votos contrários – Confederação Nacional do Comércio (CNC) e Fórum Brasileiro de Mudança do Clima; duas abstenções (Ministério da Economia e Confederação Nacional do Transporte); e uma notável ausência – a do representante da Confederação Nacional da Agricultura (CNA), que costuma manter interlocução privilegiada com o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles.

Raio X da votação

Entre os integrantes do comitê diretor do Fundo Clima que não pertencem ao governo, apenas o representante da CNI votou a favor da ratificação do novo proponente do projeto Lixão Zero. O consórcio Cimcero substituiu em 15 de dezembro o governo de Rondônia, antes, portanto, da deliberação do colegiado na terça-feira, 22 de dezembro. Veja como foi a votação sobre a ratificação do Comcinero como novo executor do projeto:

A favor 

    • Ministério do Meio Ambiente (MMA): Luiz Biagioni 
    • Ministério da Agricultura (Mapa): Elvison Nunes Ramos
    • Ministério de Minas e Energia (MME): Luiz Banhan 
    • Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCT): Marcelo Morales 
    • Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES): Julio Leite 
    • Confederação Nacional da Indústria (CNI): Marco Cantarino 

Contra

    • Confederação  Nacional do Comércio (CNC): Cristiane Souza
    • Fórum Brasileiro de Mudança do Clima (FBMC): Flavia Frangetto 

Abstenções

    • Confederação Nacional do Transporte (CNT): Thiago Ticchetti
    • Ministério da Economia (ME): Peng Yaohao 

Ausente

    • Confederação Nacional da Agricultura (CNA): Rodrigo Justus de Brito.

Apelo por cautela foi ignorado

Os representantes do governo federal e da CNI ignoraram o apelo da representante titular do FMBC, Flávia Frangetto, especialista em direito ambiental e mudanças climáticas, para que o comitê gestor decidisse o assunto com maior cautela. Ela mencionou solicitação feita ao MMA na reunião virtual do FBMC realizada na última sexta-feira, 17 de dezembro, para que aguardasse uma pré-análise do novo proponente pela Caixa, contratada pela pasta para administrar os repasses dos dois fundos aos executores dos projetos aprovados.

Dessa forma, afirmou Flávia, o processo como um todo ganharia maior eficiência, uma vez que o escopo da análise da Caixa seria mais abrangente, comparativamente ao que fora trazido pelo MMA, que afirma não ter encontrado pendências do consórcio na dívida ativa da União e no Cadin (cadastro com informações sobre débitos de pessoas físicas e jurídicas com a administração pública federal).

Com isso, prosseguiu a advogada, os membros do Fundo Clima poderiam verificar as condicionantes de governança e os requisitos específicos para um investimento climático. A representante suplente do FBMC, Linda Murasawa, especialista em mudanças climáticas, reforçou a importância de ser preservada a reputação do Fundo Clima.

Os representantes da CNT e da CNC frisaram a necessidade de haver mais elementos para avaliar a substituição do proponente. A ((o)eco, ambas as entidades já haviam comunicado que desconheciam os procedimentos suspeitos relatados pela reportagem.

Na reunião virtual ordinária do comitê gestor do Fundo Clima, ocorrida em 22 de outubro, Flávia, do FBMC, foi a única que votou contra a proposta do MMA de usar todo o orçamento de 2020 do Fundo Clima no projeto Lixão Zero, na ocasião ainda tendo o governo de Rondônia como executor. Dez votaram a favor.

Rafael Torino, diretor de fundos de meio ambiente do MMA, admitiu na última quinta-feira, em reunião virtual do Fórum Brasileiro de Mudança do Clima (FBMC), que a pasta estava ciente das pendências fiscais do estado antes do encontro do comitê gestor do Fundo Clima em outubro. O MMA não informou o colegiado sobre o impedimento fiscal de Rondônia para receber recursos federais por meio de convênios.

Os 16 enroscos que o MMA não esclarece

O processo de análise e aprovação do projeto Lixão Zero no comitê gestor do Fundo Clima apresenta inúmeros procedimentos suspeitos não esclarecidos pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA), que não respondeu a nenhum dos e-mails enviados à sua assessoria de comunicação (Ascom) desde o início deste mês. Respostas às questões feitas foram cobradas por telefone da Ascom ao menos uma meia dúzia de vezes. Segue a relação atualizada dos procedimentos nebulosos do MMA identificados por ((o))eco na tramitação do projeto Lixão Zero no MMA:

    • MMA não realizou chamada pública para o envio de projetos destinados à análise e eventual aprovação pelo comitê gestor do Fundo Clima em 2020.
    • Nota técnica inicial do MMA, favorável ao projeto Lixão Zero de Rondônia, foi produzida em tempo recorde – menos de cinco horas em 23 de junho último.
    • MMA ignorou ausência no projeto de estudos de viabilidade técnica e econômica e sobre emissões de gases de efeito estufa.
    • Pauta e ata da reunião de 15 de julho deste ano do conselho deliberativo do FNMA não foram divulgadas no portal do MMA.
    • Documentos do projeto também não foram publicados no site do MMA.
    • O plano original de alocação de recursos para o projeto de Rondônia não previa o repasse de dinheiro do Fundo Clima, conforme atesta a ata da reunião do FNMA realizada em 15 de julho, obtida por ((o))eco por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI).
    • Parecer do MMA de 18 de agosto confirmou a aprovação da proposta pelo conselho do FNMA e a encaminhou à Caixa, agente financeiro responsável pelos repasses ao governo de Rondônia. O documento não diz que metade do custo total do Lixão Zero dependia da autorização do comitê gestor do Fundo Clima para o MMA aplicar no projeto o valor integral disponível em 2020 para a linha não reembolsável do Fundo Clima.
    • O MMA tinha conhecimento das pendências fiscais de Rondônia que impediam o estado de receber recursos federais por meio de convênios, mas a informação foi omitida dos integrantes do comitê gestor do Fundo Clima na reunião de 22 de outubro, que aprovou a aplicação no projeto do orçamento total da linha não reembolsável do instrumento em 2020.
    • Três notas de empenho foram geradas em 2020, somando R$ 8,9 milhões, mas o plano de trabalho da proposta prevê desembolso de apenas R$ 400 mil este ano.
    • Documentos técnicos do projeto são assinados somente por ocupantes de cargos comissionados, sem assinaturas de analistas ambientais de carreira e não comissionados, normalmente responsáveis pela produção desses documentos.
    • Duas notas de empenho foram emitidas em 15 de dezembro pelo MMA, assegurando a destinação de 70% do valor total do projeto para consórcio Cimcero, sem autorização dos colegiados do FNMA e do comitê gestor do Fundo Clima. Como o plano de trabalho do projeto permanece o mesmo, 97% dos desembolsos serão efetuados somente em 2021 e 2022.
    • O orçamento integral do Fundo Clima para 2020 foi incluído em uma das notas de empenho emitidas em favor do Cimcero. Ou seja, o orçamento ficou reservado para o Cimcero, antes que o colegiado do fundo deliberasse sobre a troca de proponente, o que impossibilitou o uso do dinheiro em projetos com maior relevância para a política de combate às mudanças climáticas.
    • O proponente do projeto foi substituído no dia 15 de dezembro pelo Cimcero sem que houvesse análise de sua capacidade técnica e econômica para executá-lo e anuência dos colegiados do FNMA e do Fundo Clima.
    • Parecer do MMA favorável à troca do proponente comunica que os colegiados do FNMC e do Fundo Clima deveriam ratificar a substituição. A reportagem ficou sabendo por vias informais da reunião do comitê gestor do Fundo Clima, agendada para esta terça-feira, 22 de dezembro, às 10h30. Não há, contudo, informação no portal do MMA sobre a provável reunião extraordinária do conselho deliberativo do FNMA.
    • A troca do executor do projeto Lixão Zero foi aprovado pelo colegiado do Fundo Clima, que desconsiderou os pedidos dos representantes do FBMC, da CNC e da CNT para que a decisão fosse tomada depois que houvesse mais informações, inclusive financeiras, sobre o Cimcero, que teve sua presidente presa em setembro numa operação do MP-RO e da PF contra um suposto esquema de corrupção envolvendo serviços de lixo em quatro cidades de Rondônia.
    • Caixa terá três dias úteis para analisar o projeto Lixão Zero e volumosa documentação do Cimcero a tempo de deferir ou não o apoio do Fundo Clima ao projeto, cujo contrato deve ser assinado até 30 de dezembro.

 

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  • José Alberto Gonçalves Pereira

    Jornalista especializado em mudanças climáticas e economia verde. Voltou a escrever para ((o))eco em 2020, investigando o Fundo Clima.

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