Iniciado há cinco anos, o banco de dados sobre albatrozes e petréis – aves marinhas que ocorrem em todo litoral brasileiro – já reúne 10 mil amostras e tem ajudado a apoiar mais pesquisas sobre as espécies desse grupo. A iniciativa é desenvolvida conjuntamente pelo Projeto Albatroz junto ao Centro Nacional de Pesquisas para Conservação de Aves Silvestres (CEMAVE) e a ONG R3 Animal.
A reportagem de ((o))eco conversou com Alice Pereira, bióloga marinha e coordenadora do Banco Nacional de Amostras Biológicas de Albatrozes e Petréis (BAAP), para entender melhor como funciona essa iniciativa, criada em 2018. Segundo ela, a ideia do BAAP é funcionar como um intercâmbio entre pessoas que tenham interesse em estudar sobre albatrozes e petréis, e pessoas que possuem amostras que podem auxiliar nos estudos, promovendo ferramentas essenciais para os interessados no estudo de conservação das espécies.
Para se tornar parceiro do banco, os interessados devem se cadastrar pelo site oficial. A partir daí, poderão doar ou receber amostras biológicas para suas pesquisas, como culturas bacterianas, sangue, tecidos, penas, carcaças, esqueletos e peles. O banco trabalha tanto com amostras físicas, como com compartilhamento de dados – que, no último ano, tiveram alta de 57%.
Segundo Alice, uma das principais metas da iniciativa é tornar possível estudos, mesmo em instituições com pouco recursos para custeio de bolsas ou viagens de campo. “Às vezes a amostra está coletada, a gente só não sabe onde tem”. Após uma avaliação do projeto de pesquisa, as amostras são finalmente enviadas ao solicitante, contribuindo para o crescimento das pesquisas sobre essas aves, muitas delas ameaçadas de extinção.
Confira a seguir a entrevista completa com Alice sobre essa iniciativa e conservação dessas aves:
((o))eco: Como surgiu a ideia de criar esse banco de amostras?
Alice Pereira: O banco surgiu em função de uma demanda vinda do Plano Nacional para a Conservação de Albatrozes e Petréis (PLANACAP). Existem vários planos nacionais de conservação de diferentes espécies de aves, e o plano de albatrozes e petréis é o mais antigo. E essa demanda também vem de outra coisa importante, que é o Acordo para a Conservação de Albatrozes e Petréis (ACAP). Esse acordo é internacional, vários países são signatários, entre eles o Brasil. E essa demanda surge porque se precisa fazer pesquisa com albatrozes e petréis, saber o status das populações, se elas estão ou não ameaçadas, qual o grau de ameaça, se elas são migratórias ou pertencem a um lugar. A gente precisa ter um esforço coletivo dos países. Apesar da gente ter um plano nacional de albatrozes e petréis, a gente só tem duas espécies que de fato nidificam aqui, que são “nossas”. As demais são todas migratórias, passam por vários países. Então precisa ter um esforço conjunto. E aí surgiu com o ACAP a ideia de cada país ter esse banco e se ajudarem.
Como é feita a gestão do BAAP?
Várias instituições têm amostras. Elas são de universidades, museus, estão com os programas de monitoramento de praias, que agora acontecem bastante… estão aí, espalhadas. Não se poderia criar mais uma coisa que é só de uma pessoa, ou poderia ter um interesse particular de alguém publicar. Então se decidiu fazer a gestão compartilhada de conservação, que são instituições que se juntam, cada uma vinda de um interesse – público, privado, de uma ONG, academia – que se juntam para gerir o banco. Então, no caso, o CEMAVE, que é o Centro Nacional de Pesquisas para Conservação de Aves Silvestres do ICMBio; o Projeto Albatroz, que é patrocinado pela Petrobras e acaba então patrocinando o banco; e a R3 Animal, que é uma ONG daqui de Santa Catarina que entra com o espaço, cedendo o laboratório, o espaço físico. O CEMAVE também cede parte do espaço físico, mas como eles têm bastantes amostras de monitoramento de praias aqui, também acabam ajudando bastante. Às vezes até ajuda para coletar amostra. Então é uma gestão compartilhada, por termo de cooperação.
O que aconteceu para o BAAP ter um aumento de quase 60% no número de amostras no ano passado?
O banco trabalha tanto com amostras físicas que as pessoas doam – por exemplo, tenho coletada aqui uma amostra de sangue e quero enviar pra vocês, coletei duas e quero enviar uma. Como posso também compartilhar os dados. Por exemplo, eu tenho [uma amostra] aqui, mas não tenho site, não tenho como ficar gerindo isso, e quero compartilhar. Parte desse aumento foi isso. Recebemos muitos dados, por exemplo, do Projeto de Monitoramento de Praias (PMP), que tem várias instituições executoras ao longo da costa brasileira. E a gente recebeu os dados das amostras que eles têm, recebeu lotes de amostras físicas também. A gente já tem 19 instituições parceiras – não só PMP, mas museus também, porque alguns museus não têm site, não têm ninguém pra ficar a cargo, então mandam pra gente. Aí a gente compartilha só a informação. ‘Ah, tem amostra de tecido desse bicho aqui, tem músculo, penas’. Aí o pesquisador interessado vai no site, seleciona tudo o que precisa, ou consegue uma ideia por saber que existe material disponível… aí ele pode selecionar. É como uma ponte. A amostra está coletada, mas às vezes a gente só não sabe onde tem. Então o banco se propôs a organizar esse material, saber onde é que tá, quem é que tem, o que é, e a pessoa só seleciona, submete o projeto dela, que será avaliado – não como uma banca, claro – e depois a gente encaminha essas amostras. E se a amostra não está fisicamente com o BAAP, a gente coloca o pesquisador em contato com a instituição que deixou as informações no site. Mas o coletor é o dono da amostra até o fim, a gente só vai fazer a ponte mesmo.
Como funciona o compartilhamento dessas amostras?
A gente tá sempre em busca de doar amostra para o pesquisador. Quem quiser fazer pesquisa vai lá no site do BAAP, vê o que tem lá que te interesse. De repente tem uma coisa que interessa. Tudo isso é pra aproveitar, maximizar o recurso. Porque esse animal já foi coletado. Foi gasto um recurso não só financeiro, mas também de pessoal para coletar aquilo. Já tá ali, então vamos aproveitar já que já foi. Doar o máximo possível, que é o que a gente tenta fazer. Então vem uma carcaça, coleta tudo que der: sangue, pena, ossos, tecido, órgãos, o que der, pra poder redirecionar para todas as pesquisas que o pessoal tem interesse.
E se não tiver ali, a pessoa também pode solicitar. ‘Estou fazendo pesquisa tal, vocês não se interessam?’. A gente pode conversar, inclusive, com alguma instituição e ver se eles se interessam em fazer, às vezes fazer o contato, tudo é possível. Nossa meta é expandir. A gente tem várias lacunas de conhecimento em relação a esses bichos, em relação à saúde dessas populações, principalmente. Que é o que essas amostras vão levar. A gente coleta para saber da saúde, porque as outras pesquisas que geralmente a gente faz com o Projeto Albatroz são em relação à ecologia, onde que eles estão, se eles interagem com a pesca e como eles interagem, a abundância, a diversidade dos grupos nessas áreas de alimentação. E com as amostras a gente consegue saber da saúde. Não é o Projeto Albatroz que vai fazer, mas através dos pesquisadores que solicitam as amostras a gente pode entender. E o próprio Projeto Albatroz vai divulgar isso, o que ajuda o pesquisador também, que precisa divulgar o seu trabalho. Às vezes ele quer tentar um mestrado, um doutorado, e já divulga ali o artigo.
Existem muitas ameaças a essas aves?
Tem muitas ameaças, de todos os lados. Começa lá onde ele nidifica, que são várias espécies invasoras que acabaram chegando nesses locais, como ratos, gatos, cabras, pessoas. As ilhas são pequenas, Trindade [arquipélago no litoral do Espírito Santo] é um ambiente que são ilhas rochosas, aí tem uma partezinha que tem vegetação. Levaram cabras pra lá, e elas tiraram toda a vegetação. Os ratos vem nas embarcações, isso há muito tempo. Os barcos atracavam e vinham os ratos junto. Aí tiveram a bela ideia de levar gatos pra “limpar” toda a ilha (risos). Foi o principal problema, e ainda hoje é um desafio em algumas ilhas. Isso acaba matando, e o pior é que mata pequeno, filhote. E pega os pais também, porque os pais não conseguem se afastar do ninho por estarem chocando o ovo. Eles vão ficar em cima do ovo, com o filhote, e o rato vai comendo ele vivo. É terrível. Ali é um problema.
Aí no oceano a gente vai ter pesca incidental, acaba acontecendo, assim como com tartarugas e algumas espécies de golfinho. Tem também a poluição por resíduos plásticos, contaminantes. Às vezes até nas ilhas têm contaminantes em tinta de casas, residências. A poluição de luz de barcos também impacta, de cidades, até de estações de pesquisa. Ainda tem a falta de alimento, mudanças climáticas… são várias fontes.
Essas aves botam poucos ovos, não é? Isso dificulta a conservação?
É um ovo por ano e acabou. Se botar dois, o outro vai morrer ou ele não vai conseguir alimentar. E tem uns albatrozes, uns maiores, que botam a cada dois anos, porque os esforço pra alimentar é grande. Leva 9 meses pra ave emplumar e adquirir toda a estrutura óssea, a musculatura e até a capacidade cerebral pra ela sair e pensar… não dá pro bicho se reproduzir todo ano, botar um monte de ovos. É uma estratégia desse grupo de aves, então a conservação é importante por isso. Por isso ela tem que ser compartilhada por vários países, porque não adianta só os países que são “donos”, digamos assim, dessas colônias… por exemplo, a Inglaterra que é o país que monitora essas colônias, que é o responsável por essas colônias, mas eles virem aqui pro Brasil e morrerem nas pescarias, ou na praia por ter comido algum lixo que veio daqui – porque não tem como saber de onde vem o resíduo. Então todos os países têm que fazer esse esforço, senão não vai pra frente.
A gente tem uma pesquisa em conjunto com a Argentina para monitorar os impactos dos ftalatos, que são resíduos do plástico, plastificantes, que dão a maleabilidade do plástico. Esse plastificante é o pior que tem no plástico. A gente faz junto com a Argentina – e foi financiado pelo ACAP, para ser um esforço conjunto entre os dois países – para desenvolver a técnica e ajudar os outros países a fazer também, desenvolver a metodologia para tentar achar na glândula uropigiana dessas aves. Elas ingerem [os ftalatos] e depositam nessa glândula que elas têm na base da cauda, que impermeabiliza as penas.
Seria possível usar ninhos artificiais para ajudar na conservação dessas aves, como se faz com araras-azuis?
Tem ninho artificial para albatroz-arisco na Nova Zelândia. Porque com as mudanças climáticas mudou o regime de chuvas e eles estavam tendo problemas com materiais para fazer o ninho. Ficava molenga, desmoronava. Então os pesquisadores lá fizeram de um material sintético, e ajudou. Não foram todos os albatrozes que gostaram e utilizaram, mas alguns tiveram sucesso, conseguiram criar o filhote, foram até o fim do ciclo reprodutivo e continuaram usando. Porque até isso é um problema. A questão das mudanças climáticas pode alterar não só as rotas migratórias, onde eles vão ficar, a disponibilidade de alimento, mas também até isso, fazer o ninho. Os que dependem de materiais, como lama, ou que fazem em lugar aberto, vão sofrer demais. Porque com as mudanças climáticas vem mais chuva, ou fica seco demais. A ave sofre com o calor, então o aumento de temperatura é limitante pras aves. Elas são muito estressadas com o calor, porque a temperatura delas é mais alta.
*Editado às 21h17 do dia 10/04/2023
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