Um olhar rápido nas contas do BNDES e nos discursos dos seus diretores pode nos fazer acreditar que o banco não é mais relevante para a pecuária. A instituição não investe mais na JBS desde 2010, e a última compra de ações de um frigorífico foi em 2012. Além disso, o novo presidente do BNDES, Joaquim Levy, promete a pá de cal na chamada “política dos campeões nacionais”, focada em grandes e poucas empresas.
Uma análise mais detalhada, porém, desnuda um cenário diferente. Os três maiores frigoríficos do país ainda devem dinheiro ao banco público, cujo crédito subsidiado ainda serve aos produtores rurais. Mais do que isso, o BNDES, por meio do seu braço de participações, ainda é dono de parte das duas maiores empresas da pecuária, a JBS e a Marfrig.
Mesmo se o BNDES vender seus papéis nas empresas, uma perspectiva colocada na mesa pelo governo Bolsonaro, o banco ainda será credor delas pela próxima década. A situação conduz a uma questão crucial: nessa nova fase do banco, qual será o seu o papel no combate ao desmatamento ligado à pecuária daqui para a frente?
Liderar o combate ao desmatamento não é uma perspectiva do banco. Daniela Baccas, chefe de departamento de Meio Ambiente do BNDES, diz que que o financiador “é só uma ponta” neste combate.
“Essa é uma questão muito ampla que envolve comando e controle, atividades produtivas, ordenamento territorial. Então financiamento é uma só uma pequena parte dessa cadeia”, argumenta Daniela Baccas. “Tem que ter uma busca entre os vários atores envolvidos. Não é uma questão que envolve só as empresas, mas também o poder público, as ONGs, o pessoal do meio ambiente, da fiscalização e o próprio Ministério da Agricultura”.
Ainda que o BNDES não tenha uma “bala de prata” contra o desmatamento vinculado à pecuária, o banco público poderia liderar esse processo. Para Adriana Charoux, do Greenpeace, “o esforço que o BNDES faz é insuficiente por ele não cobrar que as empresas para as quais ele concede créditos ou tem participação acionária controlem os fornecedores indiretos. Essa é uma peça que o Greenpeace toca há muito tempo, e continua valendo”.
Já Paulo Barreto, pesquisador sênior do Imazon, afirma que o banco continua a ter influência pelo seu volume de participação no crédito rural, e que ele poderia servir de exemplo aos bancos privados.
“O banco público deveria ter padrão mais alto de exigência por tratar de subsídio público que deveria resultar em ganhos sociais e ambientais para a sociedade. Se o cliente não quiser seguir os requisitos, que busque recursos do setor privado”, diz o pesquisador.
Regras para frigoríficos continuam a falhar
O BNDES forneceu o dinheiro barato que permitiu à JBS se tornar a maior produtora de proteína animal do mundo, expandindo sua produção no Brasil e comprando empresas no exterior. Da mesma forma, ele também investiu nas outras duas maiores empresas do setor, Marfrig e BRF.
Isso era feito pelo banco de diversas formas, como empréstimos diretos e compra de títulos atrelados à empresa. Nos empréstimos, estavam os investimentos do BNDES voltados para investimentos para a produção de bens que viriam a ser exportados As chamadas “operações pré-embarque” entre o banco e a JBS aconteceram até o ano de 2011, no governo Dilma. As maiores operações, porém, não eram os empréstimos, mas a compra de ações e outros títulos feitos pela empresa.
As regras para empréstimos e compras acionárias eram as mesmas, e entre elas estava a promessa, nunca cumprida, de rastrear o boi do seu nascimento até o abate.
Três anos após vencer o prazo para a norma do banco ser cumprida, Baccas diz que o banco ainda busca fazê-lo.
“Ter uma norma maravilhosa, linda, e não ter como comprovar é o pior dos mundos. A gente quer avançar”, diz a responsável pelas políticas socioambientais do banco.
Pequenos agricultores não precisam cumprir regras
Além dos milionários investimentos nas grandes empresas frigoríficas, o BNDES também fornece o crédito que chega ao produtor rural. Nesse ponto, o banco é completamente omisso e não possui regras para coibir o desmatamento.
Os empréstimos, informou o BNDES por nota a((o))eco, passam ao largo de suas políticas socioambientais. Explica-se: para o produtor rural do setor de pecuária bovina, o BNDES somente faz empréstimo via agente financeiro, uma vez que são operações de valor geralmente abaixo de R$ 10 milhões. A instituição afirma não ser responsável, portanto, pelos impactos ambientais dos produtores que obtêm empréstimos junto a outros bancos.
“Tanto o risco de crédito quanto às obrigações de monitoramento são todas dos agentes financeiros”, informa o banco, em nota enviada pela assessoria.
Os empréstimos ficam, assim, submetidos às regras socioambientais estabelecidas pelo Conselho Monetário Nacional (CMN) e por outros bancos, sem supervisão do BNDES. Esses outros bancos seguem regras obrigatórias estipuladas pelo governo federal, através do Conselho Monetário Nacional, e políticas próprias, estabelecidas em acordos entre os bancos na Febraban, a Federação Brasileira de bancos. Essas políticas também se mostrado falhas, e até hoje os bancos privados não conseguiram cumprir um papel relevante nesse processo.
Aviso antigo
Quando a estratégia dos “campeões nacionais” ainda dava seus primeiros passos, em 2007, no segundo governo Lula, parte da sociedade civil já pedia um controle sobre os impactos desses investimentos, e alertava para alguns dos problemas que eles poderiam causar.
Em dezembro daquele ano, 24 entidades organizadas em torno da “Plataforma BNDES” enviaram uma carta ao banco. Na missiva, pediam ao BNDES “reorientar o financiamento a empresas monocultoras – celulose, soja, cana de açúcar (etc) – indutores de forte impacto sobre os ecossistemas em favor de uma agropecuária sustentável e dirigida ao mercado interno e de projetos de conservação e manejo florestal”.
A primeira política de sustentabilidade para a pecuária só chegaria depois de dois depois, a reboque de ações da sociedade civil e do Ministério Público Federal. Em 2009, o banco estabeleceu uma série de requisitos para os empréstimos na área. A cadeia bovina, assim, até hoje é um dos únicos três setores do banco que tem regras socioambientais específicas, ao lado do setor sucroenergético e do saneamento. O controle dos fornecedores dos frigoríficos, porém, nunca foi cumprido.
A janela de oportunidade é cada vez menor, e até agora o banco não deu passos concretos nesse sentido. O presidente do banco se reuniu na última semana com Ricardo Salles, ministro do meio ambiente. Em seu discurso, falou da busca de renovação de matrizes energéticas e de novas iniciativas do Fundo Amazônia, um fundo do banco direcionado a boas práticas ambientais. Sobre a pecuária, nada de concreto foi anunciado.
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