Em janeiro de 2002, o então ministro da Agricultura Pratini de Moraes começava o ano anunciando a criação de um sistema revolucionário, que rastrearia todas as cabeças de gado do país. Por meio de brincos colocados nos bois, seria possível saber onde passou cada bovino do território nacional, do nascimento até o abate.
“Esperamos que toda a cadeia produtiva da pecuária faça parte dele [do sistema] nos próximos seis anos”, disse o ministro, que teria trajetória marcada pela ligação à JBS e ao ambicioso plano de internacionalização da empresa.
Anunciado há 17 anos, o Sistema Brasileiro de Identificação e Certificação de Origem Bovina e Bubalina, mais conhecido como Sisbov, ainda existe. Mas se no começo dos anos 2000 a perspectiva do governo era de rastrear todos os bovinos, hoje isso está longe de acontecer. O Brasil agora tem 218 milhões de cabeças de gado, mas somente quatro milhões delas estão inseridas no sistema (1.8%). Das fazendas de gado do país, somente uma a cada duzentas faz parte do Sisbov. Hoje, entidades de produtores rurais e o governo já não falam mais desse objetivo em um horizonte próximo.
O rastreamento individual é a única maneira de ter certeza por onde um boi passou durante a sua vida. Como cada um deles pode ser criado em diferentes fazendas, o rastreamento individual não é só uma ferramenta importante, mas essencial para combater o desmatamento. Se, por exemplo, o boi deixou sua pegada onde antes era floresta, isso fica registrado.
“Você tem outras medidas para monitorar os fornecedores, mas a mais efetiva é a rastreabilidade individual. As outras medidas até ajudam, mas nós só vamos ter uma definição [para o problema do desmatamento] com a rastreabilidade completa dos produtos”, diz o procurador da República Daniel Azeredo, responsável por acordos entre os frigoríficos e o Ministério Público Federal para conter o desmatamento na Amazônia.
Somente o gado exportado para a Europa é rastreado
O sistema atual se restringe ao gado que é exportado para a União Europeia, uma exigência feita pelos compradores europeus após o continente passar por uma série de crises sanitárias durante os anos 1990. Primeiro, parte do rebanho europeu foi afetado pelo mal da vaca louca. A doença levava a um problema no sistema nervoso central dos bovinos e fazia com que eles deixassem de comer. No auge do problema, em 1993, mais de 3,5 mil casos aconteciam por mês naquele continente.
Depois, em uma nova crise sanitária, animais belgas foram contaminados por dioxina, uma substância tóxica que também afetava a saúde dos consumidores. Por fim, reapareceram focos de febre aftosa no continente. Antes de ser erradicado, o surto custou um rebanho de mais de quatro milhões de animais.
Diante dessas crises, os europeus começam a se preocupar mais com a origem dos bois para que novas crises não acontecessem. No começo dos anos 2000, eles começam a exigir a rastreabilidade de cada cabeça de gado importada para o continente.
Devido à pressão europeia, o Ministério da Agricultura criou o Sisbov, seu primeiro, único – e ineficiente – sistema de rastreamento. Como nem todos os estados brasileiros podem vender para a Europa, o sistema serve como uma garantia de que os bois estavam nos últimos 90 dias no estado de onde o animal zarpou para o Velho Continente.
Naquele momento de final de governo Fernando Henrique, ainda havia a perspectiva de que o rebanho brasileiro seria completamente rastreado, o que nunca aconteceu.
“No começo dos anos 2000, iniciou-se uma tentativa de rastrear individualmente, mas isso não foi cumprido. Em 2009, o Congresso Nacional decide acabar com essa história de rastreamento individual. A rastreabilidade obrigatória seria feita a partir do controle de movimentação de lote”, lembra André da Silva Pinto Carneiro, Auditor Fiscal Federal Agropecuário.
A lei 12.097, de 2009, já sancionada por Luiz Inácio Lula da Silva, estabelecia cinco parâmetros para rastrear os lotes de bovinos, como as Guias de Trânsito Animal e os cadastros das propriedades. Ao mesmo tempo em que ela avançava no rastreamento coletivos dos animais, ela enterrava a perspectiva de rastrear cada um deles separadamente.
Toda essa discussão, porém, nada tinha a ver com o desmatamento. A própria lei não citava problemas ambientais, referindo-se a outros problemas em seu texto, especialmente a saúde animal.
“A rastreabilidade tem por objetivo primordial o aperfeiçoamento dos controles e garantias no campo da saúde animal, saúde pública e inocuidade dos alimentos”, diz o texto da lei.
BNDES ajudou tecnologia, mas nunca a aplicou
Anos após a tecnologia surgir, o BNDES perceberia o potencial que ela tinha no combate ao desmatamento. Em 2009, o banco estabeleceu que todos os fornecedores dos frigoríficos deveriam rastrear todos os gados abatidos até 2016.
Assim como o ministério, o BNDES nunca cumpriu sua promessa. O banco não conseguiu implementar a rastreabilidade individual seis anos após o prazo permitido, e admite que sua política socioambiental não é efetiva no controle dos chamados fornecedores indiretos, como são chamadas as fazendas que não vendem o gado diretamente aos frigoríficos.
Contraditoriamente, foi o próprio banco que possibilitou ao Brasil dominar a tecnologia do chip para o rastreamento bovino. Em um projeto sem relação com a área socioambiental do banco, o BNDES investiu R$ 20 milhões no desenvolvimento de chips para identificação por rádio frequência, o que equivaleria hoje a cerca de R$ 35 milhões.
“O BNDES vinha há pelo menos quatro ou cinco anos estudando o que podia fazer para trazer para o Brasil o conhecimento sobre chips”, diz Irecê Kauss, atual Chefe do Departamento de Tecnologia da Informação e Comunicação do banco. “Na época, existia a perspectiva de que o Sisbov ia passar a ser obrigatório para toda a população bovina do Brasil. E então existia uma perspectiva de demanda de mercado muito clara para esse tipo de chip, para esse tipo de rastreamento”.
Irecê diz que o objetivo do BNDES neste projeto foi bem sucedido, já que o país conseguiu desenvolver um chip para a identificação bovina e fabricá-lo em seu próprio território, uma produção que segue até hoje.
A empresa beneficiada, hoje controlada pelo Governo Federal, foi a Ceitec. Sediada no Rio Grande do Sul, ela continua produzindo os chips, e diz que ainda mantém diálogos com o Ministério da Agricultura sobre o Sisbov. Porém, a empresa não se pronuncia sobre o fracasso na adoção plena do sistema.
“Havia a perspectiva de adoção para todo o rebanho [do país]. Sobre a razão de não ter acontecido até hoje, a Ceitec não tem base para poder opinar” disse, por e-mail, o diretor de negócios da empresa, Tadeu Lorenzi.
Do Canadá ao Zimbábue, outros países buscam rastrear todos seus bovinos
Enquanto o Brasil deixa de lado a perspectiva de rastrear todo seu rebanho, outros países fazem aquilo que prometemos fazer. O vizinho Uruguai tem a maior proporção de bovinos do mundo, com onze deles para cada habitante. Naquele país, todos os bois são rastreados individualmente. Canadá e Austrália, outros países com grandes rebanhos, também tem um sistema semelhante. Países com uma menor renda, como o Zimbábue e a Namíbia, também começam a implementar novos sistemas, e prometem rastrear todo o seu rebanho.
No Brasil, o estado de Santa Catarina monitora individualmente todas as suas cabeças de gado. Após ter um surto de febre aftosa, o estado resolveu controlar a doença sem depender exclusivamente da vacinação. Em 2008, lançou o Plano de Identificação dos Bovinos e Bubalinos de Santa Catarina. Com um sistema semelhante ao Sisbov, o estado hoje controla todo o seu rebanho.
Ainda que seja o décimo segundo estado com mais bovinos no país, Santa Catarina ganha mercado, por ser o único estado brasileiro reconhecido como uma zona livre de aftosa sem vacinação, título dado pela Organização Mundial de Saúde há dez anos. Isso permite que ele exporte todo o seu rebanho para a Europa sem grandes restrições.
Como mostram os exemplos de Santa Catarina e de outros países, a tecnologia já permite o rastreio individual dos bovinos. O preço do rastreamento já deixa a tecnologia completamente viável para ser aplicada em todo país, mas falta empenho do mercado em sua aplicação, avalia Juliana Simões, secretária de Extrativismo e Desenvolvimento Rural Sustentável do Ministério do Meio Ambiente.
“Quando essa tecnologia veio, ela era cara e, por isso, era mais difícil os produtores poderem acessá-la. Hoje, essa tecnologia barateou bastante. Isso possibilita que outras propriedades menores possam acessar e adquirir esses brincos de monitoramento”, diz a secretária.
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Brincar gado não é fácil. A maioria das fazendas pequenas mal tem curral para vacina.
Quando não se quer fazer o correto, acontece estes fatos. O tal do jeitinho Brasiliano.