A região do Cristalino, no norte de Mato Grosso, é internacionalmente reconhecida pela sua biodiversidade de dimensões amazônicas. Esta escala acaba de ganhar mais números que fazem jus à fama: o recorde de mais de mil espécies de borboletas em uma única localidade. O número – precisamente de 1.010 espécies – foi obtido no Cristalino Lodge, ponto de hospedagem e turismo associado à Reserva Particular do Cristalino, e contou com apoio de turistas, através de fotografias tiradas na área.
“É o primeiro inventário de borboletas em uma localidade no Brasil a atingir esse número de mil espécies. Essa é sem dúvidas uma das áreas mais ricas e com maior biodiversidade da Amazônia”, conta a bióloga Luísa Mota, que liderou o levantamento, publicado na revista Biota Neotropica no início de novembro junto com outros 13 autores.
O total de espécies registradas no Cristalino Lodge equivale a 29% de todas as espécies de borboletas conhecidas no Brasil e mais que o dobro de todas as espécies registradas na Europa. A lista contempla desde borboletas amplamente distribuídas na Amazônia, até espécies típicas do Cerrado. A presença das borboletas típicas da savana brasileira pode ser resultado natural da dispersão das espécies por matas de galeria nas margens de rios e áreas mais úmidas ou uma consequência da destruição das florestas, já que o Cristalino está localizado num cinturão verde cada vez mais próximo – e mais pressionado – pelo avanço do Arco do Desmatamento.
O número de borboletas na região do Cristalino pode ser ainda maior, estimam os pesquisadores, que calculam que o número de espécies pode ultrapassar a marca dos 1.200.
A pesquisadora Luísa Mota, que atua no Departamento de Biologia Animal e Museu de Diversidade Biológica da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), reforça que ainda são poucos os locais na Amazônia brasileira que possuem inventários de borboletas. No Brasil, essas listas são mais comuns em localidades na Mata Atlântica.
O inventário teve como base coletas de aproximadamente 2.500 borboletas, feitas por diferentes pesquisadores durante expedições ao local, entre 2000 e 2018. Além disso, contou com dois aliados essenciais: o turismo e a rede mundial de computadores.
“Esse trabalho é uma colaboração de muita gente. E além dos animais que foram encontrados em expedições feitas pelos pesquisadores, nós aproveitamos que muita gente visita o lodge, tira fotos e compartilha na internet, em sites como o iNaturalist, onde as pessoas podem subir suas fotos de bichos tiradas num determinado local. Então a gente procurou todos os registros pro Cristalino Lodge”, explica Luísa.
A contribuição da ciência cidadã teve um papel ainda maior graças aos observadores de borboletas – sim, eles existem! –, apaixonados que dedicam-se, tais quais observadores de aves, a fazer esses registros por onde passam. Graças a estas fotografias foi possível identificar 351 espécies, que representam quase 35% de todas as espécies listadas no inventário.
Todas as fotografias de borboletas encontradas na internet associadas ao Cristalino Lodge foram analisadas e identificadas por especialistas, para serem validadas.
“Esse trabalho só conseguiu chegar nesse número por causa da interação com cidadãos científicos. Sem a colaboração deles a gente não teria conseguido fazer um escaneamento tão grande da área. Tem muitas espécies que são raras. E com todas essas pessoas indo lá, a gente conseguiu um número de registro muito maior. Isso prova que a ciência cidadã é uma ferramenta muito importante, além de aproximar a sociedade do fazer científico e da conservação da natureza”, conta a pesquisadora.
Uma das fotos tiradas por um desses cidadãos científicos, inclusive, registra uma espécie que não foi identificada e que pode se tratar de uma espécie nova para a ciência.
“Por mais que as pessoas costumem não ter muito carinho pelos insetos, eles são super importantes em qualquer ecossistema terrestre, é o grupo mais diverso, em termos de biomassa, e são muito importantes em termos ecológicos para o funcionamento de qualquer ecossistema. E as borboletas talvez sejam os insetos mais conhecidos, existe uma tradição maior de pesquisa. Imagine todo o resto que existe ali? As borboletas de alguma forma exemplificam a riqueza dessa região do Cristalino”, aponta Luísa.
O Cristalino Lodge está associado a quatro Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPNs) contínuas, que formam um corredor de 11.399 hectares de área protegida privada junto ao Parque Estadual Cristalino – atualmente sob ameaça de extinção por uma decisão judicial em análise.
Leia mais: Por falha no processo, extinção do Parque Estadual Cristalino II é anulada (por enquanto)
O Lodge apoia a Fundação Ecológica Cristalino, que realiza o monitoramento e a conservação das reservas florestais junto a um comitê participativo.
“Eu fico contente que esse trabalho possa chamar atenção para essa região, que está em perigo por causa da situação do parque e dos incêndios”, comenta Luísa. “A iniciativa de um lodge de turismo como o Cristalino tem um papel importante pra abrir um espaço de conhecimento e valorização da natureza e do local no sentido mais afetivo”, acrescenta.
O inventário coloca de forma definitiva o destino Cristalino na rota dos observadores de borboletas. Um guia bilíngue sobre a diversidade do Cristalino, elaborado por Kim Garwood e Juan Guillermo Jaramillo, já está disponível online no site Butterfly Catalogs.
Uma das borboletas que pode ser observada no Cristalino Lodge é a belíssima Caria trochilus, de asas amarronzadas salpicadas por brilhos coloridos nas pontas: azul, laranja, amarelo, verde… um verdadeiro Carnaval em forma de borboleta que você confere na foto da capa desta matéria. “Você não sabe a beleza desse bicho até vê-lo no sol pela primeira vez”, garante a pesquisadora. Na ausência de um nome popular consolidado para a espécie, durante a conversa feita por telefone com Luísa, “batizamos” provisoriamente a espécie de “borboletinha-carnaval”.
Pesquisar é preciso!
O trabalho também reforça a importância de multiplicar os esforços de pesquisa pela Amazônia para entender melhor a distribuição e o status de ameaça das borboletas.
Luísa cita o exemplo da borboleta Cristalinaia vitoria, uma espécie descrita no Cristalino, mas ainda muito pouco estudada. “Justamente pela falta de inventários, existem muitos animais na Amazônia que não conhecemos a distribuição, então nem conseguimos avaliar se estão ameaçados. Espécies endêmicas do Arco do Desmatamento, por exemplo, com certeza estão em situação crítica”, pontua.
A pesquisadora explica que a capacidade de dispersão (ou seja, de deslocamento) varia bastante entre as borboletas. Enquanto algumas são migratórias, capazes de percorrer milhares de quilômetros, outras são territoriais e não voam mais do que algumas dezenas de metros.
Atualmente, a única espécie de borboleta da Amazônia brasileira considerada ameaçada de extinção é a rabo-de-andorinha (Parides klagesi), conhecida de uma única população no norte do Pará.
“Muitas borboletas da Amazônia têm uma distribuição ampla, mas a gente precisa conhecer melhor quais são as mais restritas, porque borboletas do sul da Amazônia estão em áreas muito pressionadas pelo desmatamento”, afirma Luísa. “A gente tem que conhecer o que tem ali, espécies novas, espécies que a gente não sabe se estão restritas ali. E o ecossistema depende de todas elas, dessa integridade”, completa a pesquisadora da Unicamp.
Apesar das RPPNs do Cristalino terem sua existência assegurada – ao contrário do parque estadual – a pesquisadora lembra que uma eventual extinção do parque também afetará negativamente as reservas. “É uma floresta contínua, são os mesmos animais nas reservas e no parque que estão tentando extinguir. Isso sem falar no fogo, que também não tem fronteiras, então toda a região sofre com isso”, destaca a bióloga.
“Essa é uma região extremamente rica, que por várias razões da ecologia do local, é uma das mais ricas do Brasil. E esse número só foi encontrado ali por causa da preservação dessa região, por causa dessas RPPNs. Sem a floresta em pé, a gente não teria as borboletas. Essa lista é o resultado do trabalho de muita gente, mas também do trabalho de conservação da Fundação Cristalino e do Cristalino Lodge, porque sem eles a floresta talvez não estaria mais ali. Eles formam um corredor contra o avanço do desmatamento para o norte, e sem isso toda essa biodiversidade está comprometida”, resume Luísa Mota.
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