Um acordo firmado entre Brasil, Bolívia e Paraguai para ampliar a proteção e o desenvolvimento sustentável do Pantanal foi escanteado pelos governos dos três países. O aperto de mãos ajudaria a conter os impactos gerados pelo agronegócio, obras de infraestrutura e mudanças do clima sobre a maior planície inundável por água doce do planeta.
Selado no 8º Fórum Mundial das Águas (2018), em Brasília (DF), o pacto assinado pelos ministros de Meio Ambiente do Brasil, José Sarney Filho, e da Bolívia, Carlos Ortoño, e de Comércio Exterior do Paraguai, Didier Olmedo, pretendia ampliar a conservação do Pantanal investindo em ciência, reduzindo a poluição, melhorando a gestão das águas e de ambientes naturais.
O documento reconhece que tais ações fortaleceriam o bioma para enfrentar a crise global do clima e prega um maior respeito a direitos humanos, como de povos indígenas e de populações tradicionais. Todavia, os Ministérios dos três países nada informaram sobre suas ações desde a assinatura do termo até o fechamento desta reportagem.
“A iniciativa evaporou como toda e qualquer outra da área ambiental [no atual governo brasileiro]”, conclui José Pedro de Oliveira Costa, secretário de Biodiversidade e Florestas quando Sarney Filho esteve à frente do Ministério do Meio Ambiente no governo Michel Temer (MDB), de maio de 2016 a abril de 2018.
“Não sabemos de ações oficiais sobre isso [a execução do acordo]”, reforça José Luis Cartes, diretor-executivo da ong Guyra Paraguay. A entidade é parte do Observatório do Pantanal, uma articulação de ongs da Bacia do Alto Rio Paraguai.
Igualmente indagado por O Eco, o Ministério das Relações Exteriores brasileiro comentou que “em razão de limitações de agenda, neste momento não será possível conceder a entrevista solicitada”.
O desprezo pelo acordo trinacional pantaneiro aumenta a longa ficha de retrocessos socioambientais do governo Jair Bolsonaro (PL). A lista inclui a desativação de políticas climáticas e do Fundo Amazônia, que aplicava recursos internacionais na conservação da floresta, o freio na criação de áreas protegidas e tentativas recorrentes de abrí-las para a mineração e o agronegócio.
Isso põe em risco as mais de 4 mil espécies de animais e plantas e a qualidade de vida de cerca de 10 milhões de pessoas abrigadas nos 175 mil km2 do Pantanal, distribuídos nos três países. A superfície é semelhante a do Uruguai. Mesmo assim, o bioma segue como um coadjuvante nos programas de candidatos eletivos.
As propostas do atual presidente descrevem que “uma parceria interministerial do governo federal realiza gestões no sentido de contratar 6 mil bombeiros que atuarão descentralizadamente em biomas que concentram incêndios e queimadas, como Pantanal, Cerrado e toda a Região Norte”.
A campanha de Lula resume que a proteção da “Amazônia, cerrado, mata atlântica, caatinga, pantanal, pampas e os outros biomas e ambientes” será equilibrada com a promoção do desenvolvimento sustentável e “exigirá o enfrentamento e a superação do modelo predatório de exploração e produção, (…) agravado pela completa omissão do governo atual”.
Mas enquanto os governos patinam rumo à proteção efetiva do Pantanal, um projeto aprovado em setembro pelo Fundo Global para o Meio Ambiente (GEF, sigla em Inglês), do Banco Mundial, segue as diretrizes do acordo de 2018 e beneficiará ações de ongs ambientalistas sobretudo na Bolívia e no Paraguai. Os recursos previstos são de US$ 8,2 milhões, hoje quase R$ 43 milhões.
Bioma transnacional
Políticas e projetos de governos e da sociedade civil são fundamentais para manter o Pantanal sul-americano vivo no longo prazo. No Brasil, o bioma tem 80% da vegetação natural. As taxas de preservação também são altas na Bolívia e no Paraguai, mas lavouras de soja e criação de gado ameaçam esse cenário nos países vizinhos.
José Luis Cartes, da Guyra Paraguay, conta que a recessão econômica causada pela pandemia de Covid-19 conteve parte do avanço do agronegócio na planície alagável. Ao mesmo tempo, secas e queimadas favorecem a pecuária, a abertura de estradas e a eletrificação rural na transição do Pantanal ao Chaco – um bioma sequer reconhecido no Brasil, onde ocorre no Mato Grosso e no Mato Grosso do Sul.
“Vários anos seguidos de forte seca deixaram muito pouca água num ecossistema sujeito a inundações anuais. Isso aumentou a força e a frequência dos incêndios, que até cruzam a fronteira entre os países”, ressalta o biólogo. Em 2020, o fogo que devorou ⅓ do Pantanal brasileiro alcançou regiões do Paraguai e da Bolívia.
Áreas protegidas no país vizinho também não escapam de pressões econômicas. A Câmara dos Deputados paraguaia aprovou este mês um projeto que elimina o Parque Nacional Médanos del Chaco para a suposta exploração de petróleo. Indígenas vivem no entorno da reserva de 5,1 mil km2, abrigo de rica biodiversidade e de fontes de água para o Pantanal. Ambientalistas tentam reverter a decisão.
Soja, gado e fogo da mesma maneira rondam o Pantanal boliviano, mas enquanto 46% do bioma estão lá oficialmente protegidos, apenas 4,6% têm esse status no Brasil, tudo graças a áreas como o Parque Nacional e Área Natural de Manejo Integrado (ANMI) Otuquis e à ANMI San Matías. Juntas, somam quase 40 mil km2 – similares ao estado do Rio de Janeiro.
“E cerca de 20% do pantanal boliviano é um Sítio Ramsar [zona úmida de valor internacional], o que aumenta sua proteção e favorece a preservação ambiental e de culturas indígenas distintas das encontradas nos países vizinhos”, descreve o diretor de Conservação do WWF-Bolívia, Jordi Surkin.
Mas o entorno das reservas é alvo de mineração e de projetos siderúrgicos. Também podem ser atropeladas por projetos como do Viál Portuário Motacucito-Mutún-Puerto Busch, para exportar commodities pela hidrovia Paraguai-Paraná. Na ANMI San Matías, há pelo menos 26 povoados e 61 fazendas – quase todas de pecuaristas brasileiros.
Decisões unilaterais do Brasil da mesma maneira preocupam conservacionistas da Bolívia e do Paraguai. “O bioma não tem fronteiras ecológicas. O que ocorre no Brasil pode afetar até Rosário, na Argentina [já quase no rio da Prata]”, destaca Victor Hugo Magallanes, coordenador do Programa Cerrado Pantanal do WWF-Bolívia.
As ameaças incluem a multiplicação de hidrelétricas e a formação de uma hidrovia, que podem secar o Pantanal. Apenas na porção norte da Bacia do Alto Rio Paraguai, no Mato Grosso, estão previstos 86 barramentos para a geração de energia. Investimentos e obras distribuídas nos países pantaneiros consolidam o rio Paraguai como uma via fluvial para exportações. Mas há alternativas.
“Políticas transnacionais de conservação e de desenvolvimento precisam reconhecer o grande potencial pantaneiro para um desenvolvimento associado a economias como do turismo e de produtos que preservem os ambientes e culturas naturais, cada vez mais globalmente valorizados”, destaca José Cartes, da Guyra Paraguay.
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