Todos os macacos brasileiros são arborícolas, ou seja, vivem e se locomovem majoritariamente em árvores. Quando vão ao chão é porque têm um bom motivo: a sobrevivência. Por uma ironia cruel do destino – e pela ocupação humana que reduz e fragmenta as florestas – esse instinto desesperado de sobreviver que pode levar um macaco ao solo, pode ser mortal. No Brasil, pelo menos 788 primatas morreram devido a colisões veiculares entre 1987 e fevereiro de 2023. O “pelo menos” é porque esse número com certeza é muito maior, já que a mortalidade de animais nas estradas é sempre subestimada. O dado, entretanto, reflete o esforço – realizado a nível mundial e de forma inédita – de dimensionar o impacto do atropelamento de primatas e a ameaça que as estradas representam para sua conservação.
A base de dados mundial – “The Global Primate Roadkill Database” – foi lançada em maio e reúne 2.862 ocorrências de atropelamentos de primatas registradas em 41 países entre 1987 e fevereiro de 2023. De acordo com o levantamento, o Brasil é o segundo país com maior índice de acidentes fatais entre primatas e veículos, com 788 ocorrências que equivalem a mais de um quarto (27,5%) do total no planeta. O país fica atrás apenas do Quênia, líder disparado, com 1.026 registros.
O objetivo da plataforma, que será atualizada de forma colaborativa por cientistas e cidadãos, é manter uma base de dados global de atropelamento de primatas, para entender a verdadeira dimensão da mortalidade de primatas por colisão veicular.
“O banco de dados está aberto a contribuições e qualquer pessoa pode contribuir. Ele será atualizado cada vez que uma nova entrada chegar, por isso está crescendo continuamente. Há um link para um formulário do Google no site que qualquer pessoa pode usar para fazer uma contribuição. Qualquer um pode enviar um relato anedótico, sugerir um trabalho de pesquisa ou base de dados que pode ter faltado incluir, ou enviar um artigo de notícias ou postagem de mídia social que inclua um acidente de atropelamento de primatas”, explica a fundadora e gestora do projeto, Laura Praill, em conversa com ((o))eco. Ela destaca também a importância de incentivar uma rede de ciência cidadã com a iniciativa.
A bióloga, especializada na conservação de primatas, lidera o artigo publicado em maio de 2023 na revista científica Animals, com acesso aberto, junto com outros 18 pesquisadores, no qual apresenta a base de dados global.
“Com certeza esses números reportados são apenas uma pequena porcentagem do verdadeiro total de primatas vítimas de atropelamentos no mundo. Conscientização é o nosso maior desafio. Se um indivíduo no Brasil vê um macaco morto na beira da estrada, o mais provável é que eles não saibam onde reportar isso, nem mesmo que há pessoas que querem coletar esse tipo de dado”, reforça Laura. “E as carcaças provavelmente já terão desaparecido na hora em que um pesquisador ou agente governamental aparecer”, acrescenta.
A pesquisadora conta que o plano é expandir o site, construir uma presença nas redes sociais e produzir uma newsletter sobre o projeto. O objetivo é trazer não apenas cientistas, mas cidadãos comuns a bordo do projeto.
Sudeste lidera atropelamentos no Brasil
A plataforma disponibiliza a última versão da planilha, com os dados compilados até o momento. A reportagem de ((o))eco acessou a planilha no dia 29 de maio para detalhar as informações reunidas sobre os atropelamentos ocorridos no Brasil. Através das coordenadas geográficas de cada registro foi possível entender as regiões que concentram os maiores índices de colisões com primatas. Sem surpresa, o sudeste, região com maior infraestrutura viária do país, lidera o ranking brasileiro.
O estado do Rio de Janeiro é o com maior número de ocorrências: pelo menos 301 primatas já morreram nas estradas fluminenses. O Espírito Santo aparece em segundo lugar, com 224 ocorrências, a maioria na Rodovia do Sol (ES-060), estrada litorânea que liga a capital Vitória ao sul do estado. Atrás está São Paulo, com 153 registros de atropelamentos de macacos.
Fechando o quarteto “sudestino”, está Minas Gerais, com apenas cinco registros. A planilha traz ainda 17 ocorrências adicionais coletadas na rodovia BR-040, no trecho entre Rio e Minas. Como estes dados não estão georreferenciados, entretanto, não é possível identificar o local de cada um.
Somadas, as ocorrências de atropelamentos de primatas na região sudeste do Brasil correspondem a quase totalidade do registrado no Brasil, com 700 colisões fatais de veículos com macacos (88,8%).
“A região sudeste é a região brasileira com a maior densidade de rodovias e frotas de veículos. Colisões com fauna só ocorrem com o tráfego, por isso a região sudeste lidera os índices de atropelamentos no Brasil. A região centro-oeste possui altos índices de atropelamentos para rodovias isoladas, por exemplo, mas em quantidades totais estão longe de serem comparadas com a região sudeste”, avalia Fernanda Abra, da ViaFAUNA Estudos Ambientais e uma das pesquisadoras que contribuiu para criação da base de dados global.
Fora do sudeste, o ranking segue com Distrito Federal, 22 ocorrências; Mato Grosso, 13; Pará, 10; Santa Catarina, 9; Amazonas, 8; Rio Grande do Sul, 7; Goiás e Bahia, cada um com 4; Paraná e Rondônia com 3; e Rio Grande do Norte, Acre e Paraíba com apenas um registro cada.
“Esses dados são extremamente subestimados. O Brasil é o país número um em diversidades de primatas e tem a 4° maior rede viária do mundo! No bioma Amazônico, por exemplo, são pouquíssimos os estudos que medem o impacto de empreendimentos rodoviários na fauna. Precisamos aumentar o interesse de pesquisadores nesta área e ter estudos distribuídos nos biomas com a presença de primatas e animais arborícolas em geral”, avalia Fernanda Abra.
Efeito colateral do desmatamento
Numa viagem por imagens de satélite pelas coordenadas de onde foram reportados os atropelamentos de primatas no Brasil, o padrão que se repete na maioria dos pontos é o de áreas verdes, às vezes unidades de conservação, rasgadas ou delimitadas pela malha viária. Quando a floresta se divide com a abertura de uma estrada, os macacos podem tentar a sorte na travessia pelo asfalto para escapar de um fragmento pequeno demais para que ele sobreviva ou para colonizar um novo território.
“A mortalidade de primatas por veículos é um impacto direto das estradas, mas sim, é também um impacto da fragmentação do habitat e do desmatamento, na medida em que os primatas são forçados a cruzar estradas para alcançar outros fragmentos de floresta”, afirma a coordenadora do projeto, Laura Praill.
No caso das espécies arborícolas, como são todos os primatas brasileiros, o risco é ainda maior, explica a pesquisadora, uma vez que essa inexperiência em se locomover pelo chão pode diminuir sua capacidade de evitar os carros.
Repensar as rodovias para reduzir os atropelamentos
A pesquisadora Fernanda Abra reforça que dar visibilidade aos dados de mortalidade de fauna nas estradas ajuda a subsidiar tomadas de decisões importantes, como a implementação de medidas de mitigação, uma responsabilidade não apenas das concessionárias, mas também dos gestores públicos, estaduais e federais, como o DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes).
“Uma abordagem para minimização dos impactos das rodovias e do tráfego sobre a fauna silvestre, em geral, é a implementação de uma nova cultura sobre infraestrutura sustentável. Especificamente para a fauna, isso significaria o planejamento e projetos de novas rodovias que já nasçam com estratégias de evitamentos, mitigações e compensações de impactos. Para as rodovias já existentes é necessário que haja uma adequação dos viários para minimização dos impactos. Isso significa implementar medidas de mitigação como passagens de dossel”, avalia.
As passagens de fauna, além de permitir a travessia segura de animais, também ajudam a restaurar ou incrementar a conectividade entre os ambientes naturais apartados pelas estradas.
Fernanda cita como exemplo o projeto Reconecta, que instalou 30 passagens de dossel para mamíferos arborícolas na BR-174, que liga Manaus (AM) a Boavista (RR), e cruza a Terra Indígena Waimiri-Atroari, em plena Amazônia. O projeto foi realizado com apoio do DNIT.
Outro exemplo está no trecho da BR-101 entre os municípios de Rio Bonito, Silva Jardim e Casimiro de Abreu, na Área de Proteção Ambiental (APA) da Bacia do Rio São João/Mico-Leão-Dourado, no estado do Rio. A duplicação da rodovia trouxe a exigência ambiental de uma estrutura de passagens de fauna com 15 túneis, 10 passagens copa a copa e um viaduto vegetado, o primeiro e até hoje único do tipo em rodovias federais.
Saguis são os mais atropelados
O gênero Callithrix é composto por seis espécies de saguis endêmicas do Brasil, distribuídas entre a Mata Atlântica, Cerrado e Caatinga. Cada espécie possui suas particularidades, algumas mais generalistas e adaptáveis, como os “saguis-estrelas” que podem ser vistos até mesmo em cidades, outras mais sensíveis e de ambientes mais restritos, como os ameaçados saguis-da-serra. Por serem muito semelhantes biologicamente, elas são capazes inclusive de reproduzir entre si, o que gera híbridos que não pertencem exatamente nem a uma espécie nem a outra.
De acordo com a base de dados global, os saguis do gênero Callithrix são as vítimas mais frequentes de atropelamentos em todo o mundo. Ao todo, foram 668 saguis mortos devido a colisões com veículos. A maior parte desses registros (281), conforme apurou ((o))eco, são identificados como “Callithrix sp.”, o que pode indicar que o bicho atropelado era um híbrido, sem espécie definida, ou que não foi possível fazer a identificação devido às condições do animal.
A nível de espécie, a maior vítima identificada é o sagui-de-cara-branca (Callithrix geoffroyi), nativo da Mata Atlântica, dos estados de Minas Gerais e Espírito Santo, com 215 ocorrências. Em segundo lugar, aparece o sagui-de-tufos-pretos (Callithrix penicillata), de ampla distribuição no Cerrado brasileiro e invasor em áreas de Mata Atlântica, vítima das estradas 150 vezes.
O sagui-da-serra-escuro (Callithrix aurita) e o sagui-da-serra (Callithrix flaviceps), duas espécies ameaçadas de extinção, também aparecem na lista de atropelados, com cinco e uma ocorrência, respectivamente.
Leia mais: Os ameaçados saguis-da-serra e o embate genético entre os Callithrix
Os bugios, do gênero Alouatta, também foram vítimas frequentes, com 67 registros. O bugio-ruivo (Alouatta guariba) – classificada como uma das 25 espécies de primatas mais ameaçadas do mundo por causa dos impactos da febre amarela e do desmatamento e fragmentação do seu habitat, a Mata Atlântica – teve 50 registros de colisões veiculares fatais.
Ao todo, de acordo com a base de dados global, 23 espécies de primatas brasileiros perderam a vida em colisões veiculares, sendo dez em algum grau de ameaça de extinção de acordo com a avaliação internacional da IUCN. Sendo duas delas classificadas como Criticamente em Perigo, o nível mais severo de risco: o sauim-de-coleira (Saguinus bicolor), que ocorre na região metropolitana de Manaus e teve dois indivíduos atropelados; e o próprio sagui-da-serra (Callithrix flaviceps).
Resultados mundo
Puxados pelo grande número de registros no Brasil, os Callithrix lideraram o número de registros de atropelamento, por gênero, no mundo, com 688 indivíduos mortos. Em segundo está o gênero Cercopithecus, que possui uma grande diversidade de espécies no continente africano, e teve 591 indivíduos atropelados. Os gêneros Chlorocebus, com 377; Macaca, com 324; Colobus, com 240; e Papio, com 143, completam o ranking. Todas são espécies de ocorrência do Velho Mundo (África e Ásia). O continente africano concentra mais da metade dos registros de atropelamentos.
A nível individual, quem lidera a lista de colisões veiculares é a subespécie de macaco-de-pescoço-branco (Cercopithecus mitis albogularis), principal vítima no Quênia, com 557 animais atropelados no país. O macaco-vervet (Chlorocebus pygerythrus), também nativo da África, aparece em seguida, com 371 atropelamentos. Em terceiro está uma espécie brasileira, o sagui-de-cara-branca (Callithrix geoffroyi), com 215 ocorrências.
A maioria dos incidentes registrados na base de dados envolve 48 espécies de primatas não ameaçados, que estão nas categorias de “Menos Preocupante” ou “Quase Ameaçado” de acordo com a Lista Vermelha da IUCN. Porém 16 espécies classificadas como Criticamente Em Perigo de extinção também foram vítimas das estradas no mundo.
De acordo com os dados compilados pela iniciativa, na década de 90 os índices de atropelamento de primata eram de menos de 100 por ano. Na década 2010 – 2020, entretanto, essa taxa saltou para cerca de 150 por ano.
“A falta de dados em um país não significa necessariamente que não ocorram colisões entre primatas. Para obter uma imagem completa, provavelmente precisaríamos comparar a densidade das estradas, o comprimento das estradas e o índice de desenvolvimento humano dos países onde ocorrem primatas – o que pode oferecer mais informações sobre os fatores que influenciam a mortalidade de primatas nas estradas”, pondera a coordenadora do projeto, Laura Praill. Os pesquisadores destacam ainda que a falta de números pode ser também um reflexo da subnotificação.
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