REPORTAGEM
Caroços do açaí movem economias na Amazônia
De fornos industriais a bebidas, o uso das sementes reduz impactos ambientais e climáticos na floresta equatorial
Por Aldem Bourscheit
O consumo crescente de açaí gera milhares de toneladas de caroços que precisam ser descartados corretamente. Pois, uma série de usos diminui seus impactos ambientais e climáticos e aquece economias na Amazônia.
O Pará responde por mais de nove em cada dez quilos de açaí consumido no país. Logo após vêm os estados do Amazonas, com 5,6%, e da Bahia, com 0,3%. O salto na produção paraense foi superior a 40%, desde 2015.
Em 2021, foram colhidas quase 1,4 milhão de toneladas de açaí no Pará. Seus maiores produtores são os municípios de Igarapé-Miri, Cametá, Abaetetuba, Bujaru e Barcarena.
Além do potente consumo regional e nacional do açaí, estimulado pelo sabor exótico e associação à melhoria da saúde, a polpa do “ouro roxo” já chega a mais de 30 países, incluindo Estados Unidos, Japão, Austrália e Alemanha.
“O açaí pode ser uma referência em bioeconomia, manter modos de vida tradicionais e ser uma alternativa à soja e ao boi”, destaca Lucimar Souza, diretora-adjunta de Desenvolvimento Territorial do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam).
Mas, tamanha pujança econômica trouxe efeitos colaterais como milhares de toneladas de caroços merecendo um destino melhor que o simples descarte em águas, ruas e solos amazônicos. A semente soma até 85% do peso do fruto.
Professor no Instituto Federal do Pará (IFPA), Márcio Picanço conta que as ruas do município onde mora, Breves, no arquipélago do Marajó, são um “verdadeiro lixão a céu aberto com tantos caroços de açaí”.
“Esse é um problema crônico no município. Pessoas consomem muito açaí e despejam tudo nas ruas. Há vias que praticamente são fechadas de tanto caroço que têm”, reclama.
Para conter esses impactos, soluções vêm nascendo na floresta, estimulando economias locais, gerando empregos e renda na própria região. Ao mesmo tempo, ajudam a conter prejuízos ambientais e ao clima.
As aplicações incluem a produção de mudas e de artesanato, insumos para cosméticos, papéis, plásticos, fertilizantes, bebidas e construção civil. Os resíduos também geram eletricidade ou calor em grandes fornos industriais.
“É um produto local, um combustível renovável, amigo do ambiente e ainda barato”, avalia Manoel Nogueira, do Programa de Pós-Graduação em Engenharia Mecânica da Universidade Federal do Pará (UFPA).
Sumidouros de resíduos
Ano passado, 109 mil toneladas de caroços foram aos fornos da Votorantim Cimentos, em Primavera (PA). As sementes substituem desde 2018 parte do coque de petróleo, combustível fóssil importado dos Estados Unidos.
O material comprado no exterior custa menos e tem mais enxofre que o coque produzido no Brasil. Esse é mais demandado por setores específicos no país e pelo mercado internacional, como a China.
Antes desse uso, os caroços eram descartados em aterros ou jogados no meio ambiente. As montanhas de rejeitos apodreciam exalando mau cheiro e emitindo metano, um gás de efeito estufa.
“Os produtores agora vendem a polpa e também o caroço, que tem valor econômico para eles e valor energético para nós. Todos ganham”, diz o diretor-global de Sustentabilidade da companhia, Álvaro Lorenz.
A unidade de Primavera produz até 1,2 milhão de toneladas anuais de cimento, com 62% da energia térmica gerada por sementes de açaí (45%) e outras (17%) fontes naturais de biomassa.
Itens como casca de arroz, palha de milho, bagaço de cana e caroço de dendê também são usados no país pelo grupo Votorantim, que já substituiu por biomassa 31,3% da queima de combustíveis fósseis.
“O coprocessamento tem um efeito positivo na redução das nossas emissões de CO2 na atmosfera. É um dos pilares da estratégia global de descarbonização da empresa”, ressalta Lorenz.
Os caroços de açaí também são usados diretamente na construção civil. Concreto misturado com esse e outros resíduos é testado em obras na capital Belém. Outras misturas são permeáveis e ajudariam a reduzir alagamentos.
Outro sumidouro para caroços de açaí é testado desde o ano passado na Alunorte, refinaria de alumina do grupo norueguês Hydro no município de Barcarena, no litoral paraense.
“Já foi conseguido deslocar 10% do consumo de carvão e a meta é alcançar 30% até o fim deste ano”, descreve Manoel Nogueira, do Programa de Pós-Graduação em Engenharia Mecânica da UFPA.
Até agora, foram queimadas 8,2 mil toneladas de sementes misturadas com carvão mineral. “O objetivo é converter a caldeira para 100% de combustível à base de caroço de açaí”, afirma a Assessoria de Imprensa da Hydro.
A mudança pode cortar a importação de carvão da Colômbia, que tem maior poder calorífico que o brasileiro, e ajudará a empresa a reduzir as emissões de poluentes que ampliam a crise do clima.
A Alunorte é a maior refinaria global de alumina fora da China. Pode produzir até 6,3 milhões de toneladas anuais. O material extraído da Bauxita é usado em itens como alumínio, abrasivos, refratários e velas de ignição.
Enquanto isso, aplicações de menor escala igualmente ajudam a dar conta dos caroços de açaí. É o caso do “Cafessaí da Amazônia”, uma alternativa ao café tradicional, mas sem cafeína ou glúten.
A criação do produto foi liderada desde 2004 pelo manauara Charley Oliveira, mas só em 2018 o projeto decolou, inclusive com apoio do governo estadual. “Começamos com um moedor manual e um pequeno torrador”, conta.
A hoje moderna fábrica na capital amazonense produz de três a quatro toneladas mensais da bebida em pó. A demanda cresce quando chegam cruzeiros nacionais e internacionais, de dezembro a abril.
“Estrangeiros querem levar esses tesouros da Amazônia para seus países de origem”, diz o empresário. Pequenas quantidades do produto também são exportadas para países como Argentina, Polônia, Alemanha e Suíça.
Rumo à capital, os caroços levam até 16 horas de barco desde municípios no Médio Amazonas, como Codajás e Anamã. A região produz 32 mil toneladas anuais de açaí e cerca de 27 mil toneladas de sementes.
“O desperdício [de caroços] era ainda maior. Ia tudo para os rios, lixões ou qualquer terreno vazio, entupindo bueiros, atraindo ratos e baratas”, descreve Oliveira.
Além do Cafessaí, com sabor de chá frutado e caramelo, uma nova mistura de caroços de açaí (70%) e café convencional (30%) já representa 40% das vendas da empresa.
As mesmas sementes são convertidas numa bebida similar ao café por famílias rurais no município de Imperatriz, no Maranhão. O Coffí é vendido em feiras e lojas regionais, nas versões extra-forte ou com rapadura.
O coletor de açaí Jesus Silva, 23 anos, morador da comunidade ribeirinha de São José, pega açaí em seu barco ao longo do rio perto de Melgaço, a sudoeste da Ilha de Marajó, estado do Pará, Brasil. Foto: Tarso Sarraf / AFP
Florestas e lavouras
A cadeia produtiva e comercial do açaí já ocupa o segundo posto no PIB (Produto Interno Bruto) do Pará, diz o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), atrás da pecuária e à frente do cacau.
“É uma cultura ligada à segurança alimentar da população, mantida sobretudo pelo ‘batedor’, o pequeno vendedor artesanal de açaí”, descreve Lucimar Souza, diretora-adjunta de Desenvolvimento Territorial do Ipam.
Estudos da entidade civil contaram cerca de 25 mil imóveis rurais e aproximadamente 200 mil ha produzindo açaí no estado, em florestas nativas, sistemas agroflorestais e plantações das palmeiras.
“Estima-se que de 20% a 30% sejam áreas manejadas ou cultivadas”, detalha Geraldo Tavares, da gerência-executiva de Fruticultura da Secretaria de Desenvolvimento Agropecuário e da Pesca do Pará.
O órgão público apoia a implantação de sistemas agroflorestais em 47 municípios, onde em cada um atuam em média cem produtores. O açaí é o carro-chefe da iniciativa.
Em municípios como Belém e Ananindeua, a renda anual de cada banca de batedores, onde trabalham em média três pessoas, é de R$ 90 mil. Cerca de ⅓ dos empreendimentos é liderado por mulheres, informa o Ipam.
O desenvolvimento de árvores de menor porte e a disseminação de equipamentos de segurança facilitarão a colheita. Ela depende hoje dos “peconheiros”, que escalam as árvores com laços de fibras nos pés.
Além disso, melhorar as condições sanitárias e de comércio dentro e fora da Amazônia reforçarão a economia do açaí. “Questões fundiárias também, pois faltam documentos de terras para muitos produtores”, diz Lucimar Souza.
Todavia, a pressão por monoculturas pode vir de carona na expansão econômica do “ouro roxo”. Se a cadeia for dominada por grandes indústrias, a floresta pode cair e pequenos produtores podem perder seu sustento.
“Já há produção de açaí em monocultura. Isso preocupa, mas há investimentos também em sistemas agroflorestais, onde boas técnicas de manejo evitariam as monoculturas”, destaca a diretora do Ipam.
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