Reportagens

Comitiva flagra descumprimento de decisão judicial na Baía de Sepetiba

Denúncias já foram levadas a órgãos públicos estaduais e federais e também serão encaminhadas à ONU por violação de direitos humanos e salvaguardas ambientais

Elizabeth Oliveira ·
19 de agosto de 2022 · 2 anos atrás

Parlamentares, ambientalistas, pesquisadores e pescadores flagraram, nesta quarta-feira (17), o que consideraram configurar o descumprimento de decisão judicial que levou à suspensão de licença de operação de quatro usinas termelétricas flutuantes movidas a gás na Baía de Sepetiba. Essa medida foi oficializada pelo Instituto Estadual do Ambiente (Inea), no dia 10 de agosto, até que a Karpowership aprove o Estudo e o Relatório de Impacto Ambiental (EIA-RIMA) para implementação do projeto energético. A comitiva, dividida em duas embarcações, documentou em vídeos e fotografias que não havia nenhum sinal de desmobilização da infraestrutura de embarcações e torres de transmissão do controverso empreendimento, liderado pela empresa de origem turca. Trabalhadores foram vistos a bordo e dois deles vieram comunicar que aquela se tratava de uma zona de exclusão de navegação.

Denúncias decorrentes dessas constatações já foram protocoladas nesta quinta-feira (18), pelo Instituto Arayara, junto à Superintendência Regional da Polícia Federal, à Polícia Militar Ambiental, à Capitania dos Portos, ao Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ) e à Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (DPERJ).

Este foi o segundo flagrante de descumprimento da decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ) que levou ao cancelamento da licença de operação. A determinação foi assinada em 22 de julho, pela juíza Georgia Vasconcellos da Cruz, da 2ª Vara de Fazenda Pública. O primeiro ocorreu no dia 5 de agosto, tendo gerado uma provocação da organização ambientalista ao MPRJ. O promotor Carlos Frederico Saturnino acatou a solicitação e na terça-feira (16) enviou ofício ao TJRJ solicitando a notificação do Estado e do empreendedor, para que se pronunciem, em até 72 horas, sob pena de majoração de multa de R$ 50 mil que já estava estipulada pela Justiça.

O Instituto Arayara tem liderado um movimento de articulação e buscado o Judiciário para impedir a continuidade do projeto em função de potenciais riscos socioambientais que as termelétricas poderiam causar, tendo em vista que a Baía de Sepetiba já tem sido fortemente pressionada por inúmeras atividades industriais instaladas no seu entorno. Além de considerar que o projeto não faz mais sentido por não ter conseguido fornecer energia gerada por combustível fóssil em caráter emergencial, até maio deste ano, razão que levou a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) a revogar a outorga de autorização da Karpowership, em 9 de agosto, a organização tem outras argumentações contrárias. Dentre as quais, tem apontado falhas no processo de tramitação burocrática do empreendimento e por meio de duas Ações Civis Públicas tem alcançado vitórias jurídicas como a recente decisão que impediu o Estado do Rio de Janeiro de liberar o empreendimento de realizar EIA-RIMA e determinou o cancelamento da sua licença de operação.

Diante de vários questionamentos surgidos na ocasião, a reportagem consultou o Inea, cuja resposta sobre a suspensão da licença de operação e suas consequências foi a seguinte: “Na prática, a empresa deve interromper e paralisar todo e quaisquer atos relacionados à operação da Usina Termelétrica Flutuante, embarcações e estruturas operacionais. No entanto não está obrigada a desmobilizar a estrutura que já está no local. Quanto às indagações relacionadas à zona de exclusão, o órgão ambiental afirmou: “Cabe esclarecer que a mesma é de responsabilidade da Autoridade Portuária e da Marinha, e que o local já era zona de exclusão de pesca anteriormente ao Licenciamento da Karpowership”.

Movimentação de trabalhadores nas embarcações da Karpowership. Foto: Fiscalização/Reprodução.

Parlamentares denunciarão o empreendimento à ONU

Lideranças locais ligadas à pesca artesanal contaram à comitiva quais têm sido os principais problemas decorrentes da chegada das termelétricas, durante reunião na sede da Associação dos Pescadores da Ilha da Madeira (Aplim). Após ouvirem os relatos sobre desconhecimento prévio e falta de consulta sobre o empreendimento, a deputada federal Talíria Petrone (PSOL-RJ), integrante da Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) da Câmara dos Deputados; e o deputado estadual Flavio Serafini (PSOL-RJ), titular da Comissão de Defesa do Meio Ambiente da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), anunciaram que pretendem formalizar uma denúncia à Organização das Nações Unidas (ONU). A proposta pretende apontar violações de direitos humanos e de salvaguardas socioambientais pela Karpowership.

A decisão de visitar a Baía de Sepetiba e ouvir as lideranças foi um dos encaminhamentos acordados durante a realização de audiência pública, na Câmara dos Deputados, no dia 3 de agosto. Na ocasião, os participantes do evento consideraram evidente a necessidade de confirmar junto às representações de comunidades tradicionais locais, se a empresa promoveu escuta prévia, livre e informada. Esse processo está previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário, quando envolver empreendimentos causadores de potenciais impactos socioambientais. Nesse caso, se estima que 3,5 mil pescadores artesanais e marisqueiras da região serão afetados pelas usinas que têm capacidade para gerar 560MW de energia

“Percebemos uma omissão absurda em relação à biodiversidade da região, além da violação de direitos humanos. A audiência já nos deixou chocados com os depoimentos”, afirma a deputada. “Agora, a nossa vinda nos deixou também impactados. Vimos embarcações, ligações instaladas e gente trabalhando. Além disso fomos abordados e alertados de que ali se tratava de uma zona de exclusão, o que pode confirmar que eles estavam trabalhando”, acrescenta.

A diretora executiva do Instituto Arayara, Nicole Oliveira, também entende que a dupla abordagem de empregados do empreendimento, comunicando que os barcos da comitiva não deveriam estar navegando no local, pode caracterizar que para a empresa e seus profissionais as regras de atuação não foram modificadas, mesmo que a Justiça já tenha determinado a suspensão de qualquer operação no local. “Disseram que chamariam a Capitania dos Portos e eu disse que seria bom que chamassem”, recorda a ativista sobre o segundo episódio, quando um encarregado uniformizado disparou a ameaça. Para ela, descumprir uma decisão judicial não pode deixar de ser considerado um fato da maior gravidade.

Pescadores relatam pressões sofridas e denunciam degradação ambiental da Baía

Barco de pesca artesanal na Baía de Sepetiba. Foto: Elizabeth Oliveira.

“Tendo em vista que a legislação não está sendo cumprida, isso virou caso de polícia”, afirma Sérgio Hiroshi, presidente do Conselho Fiscal da Aplim. Amauri Quirino, presidente da Associação, relata que em 50 anos de atividades pesqueiras na região, tem vivenciado situações nunca imaginadas, incluindo assédio moral cotidiano por parte de profissionais de órgãos de fiscalização que vêm abordando pescadores mesmo que eles estejam navegando fora da área de exclusão de pesca existente. Ambos confirmaram que a comunidade pesqueira da região nunca foi consultada sobre a instalação do empreendimento.

Flávio Lontro, coordenador geral da Comissão Nacional de Fortalecimento das Reservas Extrativistas e Povos Tradicionais Extrativistas Costeiros e Marinhos (CONFREM), reforça os argumentos e alerta que a biodiversidade da Baía de Sepetiba, já afetada por inúmeras fontes de degradação ambiental, ficará ainda mais vulnerável com a implementação de quatro termelétricas. “Desde quando avistamos a primeira embarcação chegando na baía, nós pescadores temos nos posicionado contra esse projeto”, afirma. Diante de todo o imbróglio gerado ele questiona: “O que nos resta fazer para tirar esse trambolho da Baia de Sepetiba que vem passando por cima de tudo e de todos?”. 

Durante a reunião, os pescadores também opinaram que são vítimas de racismo ambiental, já que o empreendimento da KPS é apenas mais um, dentre tantos outros causadores de altos impactos ambientais que se instalaram nessa baía. Nesse momento, Quirino mostra no celular fotos de nuvem de poeira de minérios que resulta das atividades portuárias locais, de onde commodities minerais são embarcadas. E Sérgio Hiroshi denuncia que as casas da região são atingidas por esse tipo de poeira, sem que nenhuma providência seja tomada para solucionar o problema.

Outras lideranças da pesca artesanal e demais participantes da reunião concordaram que dali por diante, além de levar o caso a outras instâncias, inclusive internacionais, deveria haver uma mobilização para denunciar o problema do descumprimento da decisão judicial junto aos órgãos públicos estaduais e federais, processo liderado pela equipe do Instituto Arayara, integrada também por Ivens Drumond, coordenador de Advocacy da organização.

Os pescadores mencionaram que seria importante a Alerj liderar uma iniciativa de levantamento de conflitos ambientais da Baía de Sepetiba e buscar promover debates para solucioná-los, da mesma forma que se engajou em relação à Baía de Guanabara, onde o deputado Serafini acompanha questões relacionadas às zonas de exclusão de pesca pela indústria do petróleo. O parlamentar argumentou que após os encaminhamentos dos problemas mais urgentes relacionados à KPS, buscará promover esse debate.

Para Serafini, a empresa responsável pelas termelétricas está tentando ganhar tempo na expectativa de reverter a decisão judicial. Mas além dos potenciais impactos ambientais, incluindo o aumento da temperatura da água nas áreas onde se inserem, “a presença dessas usinas já tem forte impacto também na vida dos pescadores”, observa o deputado. Ele acrescenta que a missão na Baía de Sepetiba vai gerar um relatório com todos os detalhes do que foi presenciado, além de ouvido a partir do encontro com as lideranças locais.

Além disso, a proposta é também de solicitar uma reunião com integrantes do MPRJ para discutir a situação. “Essa promessa de salvação da economia do Estado a partir da implementação de termelétricas a gás é um grande equívoco”, opina o deputado. Para o parlamentar, não é esse modelo de desenvolvimento que irá resolver os problemas socioeconômicos fluminenses, que até hoje também não foram resolvidos pela indústria do petróleo.

  • Elizabeth Oliveira

    Jornalista e pesquisadora especializada em temas socioambientais, com grande interesse na relação entre sociedade e natureza.

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