Reportagens

Conheça a guardiã do único atol do Atlântico Sul

Maurizélia de Brito, a Zelinha, é chefe da Reserva Biológica Atol das Rochas, uma pequena fonte de vida no meio do Oceano.

Paulina Chamorro · João Marcos Rosa ·
30 de novembro de 2023

Conheça a guardiã do único atol do Atlântico Sul

Maurizélia de Brito, a Zelinha, é chefe da Reserva Biológica Atol das Rochas, uma pequena fonte de vida no meio do Oceano.

Texto | Paulina Chamorro

Fotos e Vídeos | João Marcos Rosa

O cataramã Borandá partiu de Natal, no Rio Grande do Norte, no rumo de 60 graus, com vento sudeste a 12 nós em 10 de novembro de 2021. Após 24 horas e 270 km de navegação tranquila, a embarcação de apoio do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) chegou à Reserva Biológica (Rebio) Atol das Rocas, o único atol do Atlântico Sul e um dos menores do mundo.

Era 6h00, e o pequeno barco de 12 metros de comprimento estava a algumas centenas de metros da praia. De onde parou, dava para avistar a faixa de areia branca, com alguns coqueiros e uma minúscula casa no horizonte. Ali ficamos, esta repórter e o fotógrafo João Marcos Rosa, parados esperando, até que às 10h o rádio tocou e o comandante recebeu o aviso de que um bote vinha nos buscar.

Maurizélia de Brito, Zelinha, é servidora de carreira do Instituto Chico Medes para Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Ela foi nomeada subchefe da Reserva Biológica Atol das Rocas em 1991 e chefe em 1993, cargo que ocupa até hoje.

Foto: João Marcos Rosa

A pequena porção de areia, envolta por um cordão de recifes de corais e formações de algas, fica no topo de uma cadeia de montanhas submarinas. É lá, junto de milhares de aves, que vive um raro espécime humano, ícone da conservação de áreas marinhas no Brasil e referência para a pesquisa sobre oceanos, conservação de áreas protegidas e pesca: Maurizélia de Brito, mais conhecida como Zélia de Brito, ou ainda, Zelinha.

Seu local de trabalho há 30 anos, Zélia tem hoje 56, o Atol das Rocas é um Sitio do Patrimônio Natural Mundial pela Unesco – forma com Fernando de Noronha as Ilhas Atlânticas Brasileiras – e Sítio Ramsar. Principalmente, a reserva é um dos ambientes marinhos naturais com menos impacto humano no mundo.

Mas Zélia é uma espécie altamente adaptada a esse lugar inóspito e solitário, quase reconhecida como endêmica do atol. Ela parece formada pela areia de composição orgânica da ilha, a estrutura e firmeza dos recifes de algas calcárias que compõe seu habitat, a resiliência dos corais que se recuperam a cada troca de sedimento e a força das marés internas e externas.

Antes da pandemia, entre idas e vindas ao atol, Zélia conta que passava cerca de cinco meses do ano no meio do Atlântico. Depois do início da pandemia, com a redução das equipes e menos gente para fiscalizar a área, o Atol das Rocas virou sua primeira casa – ela agora passa até nove meses do ano lá.

Em sua homenagem, cientistas já batizaram três espécies de invertebrados, mas ela mesma é uma espécie ainda a ser descrita. Uma espécie humana exclusiva daquele ambiente, que vive de acordo com as limitações e adaptações, em uma relação simbiótica, assim como os corais e as algas. Uma espécie que se adaptou aos ventos constantes, rajadas, chuvas que aparecem no meio do oceano, marés que podem mudar totalmente de um dia para o outro.

O perímetro do Atol das Rocas tem 7 km de extensão, o que faz dele um dos menores atóis do mundo. A ilha do Farol, um trecho de areia que fica sobre a superfície o ano todo (nesta imagem, está na parte de baixo do atol, no centro da foto), tem apenas 0,2 km2 de área. Foto: João Marcos Rosa
O Atol das Rocas fica no topo de uma cadeia de montanhas submarinas e é o único atol do Atlântico Sul. Um atol é uma ilha, uma série de ilhotas ou um recife de coral em formato de anel que circunda uma lagoa. Foto: João Marcos Rosa
Na parte de baixo da foto, é possível ver as ruínas do farol em estrutura de concreto inaugurado em 1935 e, ao fundo, a pequena casa que abriga todos os visitantes e habitantes humanos. O atol aparece em um mapa português já em 1502. Foto: João Marcos Rosa

“Rocas é um lugar que se impõe”, contou, em entrevista à reportagem, a pesquisadora Alice Grossman, bióloga co-autora do livro Atol das Rocas 3º51´S 33º48´W. “Cabe a nós encontrar um caminho de conciliação para que a gente consiga ficar lá em harmonia com a natureza, desenvolvendo atividades científicas que gerem conhecimento. E a Zélia jogou luz nesse caminho de conciliação.”

Tirando o trabalho de monitoramento e fiscalização feito pela equipe do ICMBio, órgão ligado ao Ministério do Meio Ambiente responsável pela reserva, todas as atividades de pesquisa haviam sido suspensas desde o começo da pandemia, mas os cientistas começaram a voltar no fim de 2021. Para ingressar no atol, além das autorizações para pesquisa ou documentação, é preciso esperar pelas condições ideais do mar – sujeito a marés de lua e swell, um conjunto de ondulações que, no caso do atol, podem chegar a quatro metros de altura.

Para passar pela Barretinha, uma fenda de acesso ao interior e área de desembarque na ilha do Farol, tivemos uma janela de apenas um dia – entre o fim da maré de Lua e a chegada do swell. Antigas carcaças de navios naufragados são provas da dificuldade de acesso – o Atol das Rocas já consta em um mapa português de 1502.

Chegada

Zélia Brito aguardava nossa chegada em terra, acompanhada de Jarian Dantas, membro da equipe de apoio que trabalha com ela há 25 anos. Os dois têm uma longa relação de amizade e confiança, assim como quase todos os demais colaboradores indiretos do atol. 

O atol não tem água doce potável, quase nada de sombra e apenas uma casa, localizada na ilha do Farol, onde todas as pessoas autorizadas a permanecer ficam. Tudo vem do continente, de água a alimentos, o que torna a permanência desafiadora, o planejamento uma rotina diária e não negociável, e a adaptação necessária.

Trinta-réis-das-rocas inspeciona o fotógrafo. Milhares de indivíduos dessa espécie endêmica habitam o atol, o que faz dele um dos maiores ninhais de aves-marinhas do Brasil. Foto: João Marcos Rosa
O Atol das Rocas abriga a maior colônia de atobá-mascarado do Brasil. Milhares de aves ocupam as pequenas ilhas formadas no interior do atol – o barulho que fazem é alto e incessante. Foto: João Marcos Rosa
Caranguejos aratus também dividem as ilhas do atol com as aves. Foto: João Marcos Rosa

Forte, falante, e contente de mostrar a dinâmica de trabalho e do atol, Zélia foi logo nos mostrando os locais de banho e das necessidades básicas e listando as regras – não se pode andar no meio dos ninhais, um pesquisador de um tipo de animal não pode ir para outra área que não seja a do seu estudo e todos têm que respeitar as horas pré-definidas para usar o ‘banheiro’ (uma área reservada no mar), tomar banho e lavar louça. Por dez dias, até o swell passar e o barco voltar, esses quatro indivíduos da espécie humana, uma espécie invasora, ficaram sós em um ambiente em constante movimento.

Zélia estava preocupada com as marés que regem o tempo de entrada de sedimentos – se as rocas saem do lugar e para onde, se as piscinas e recifes se movem, se os polvos que ela monitorava pela Barretinha já tinham saído de suas tocas antes de elas serem soterradas, se os tubarões-lixa e tubarões-limão estão se movendo para a Baía da Lama, se as aves estavam bem.

“Eu digo que é uma relação biológica, emocional, psicológica, física, fisiológica, científica”, diz Zélia. “Eu tenho uma relação muito forte e eu preciso muito dele e eu sei que o atol também precisa de mim. Então, eu tenho a consciência de que é uma relação mútua. Somos cúmplices.”

Desde a entrada na ilha, o som de milhares de viuvinhas e trinta-réis que nidificam na ilha é constante, assim como o vento. Zélia grava esses sons e, quando está no continente, com saudades de Rocas, coloca para ouvir, até conseguir dormir.

A casa tem três quartos, dois para as equipes e um para Zelinha e os mantimentos. A cozinha não tem pia e não existe banheiro. A construção é de 2007 e fruto de um fundo criado pela Fundação SOS Mata Atlântica. A energia é fornecida por 48 placas solares que abastecem geladeiras, luz e internet, que chegou em 2007.

Os primeiros anos, quando Zelinha ainda era subchefe – foi nomeada chefe da unidade dois anos depois de chegar – foram duros e intensos. As equipes dormiam em barracas, ficavam acampadas por meses e eram alvos constantes de ameaças por pescadores, que chegavam de barco para pescar em volta do atol. “O atol não tem referência, não existe um lugar como ele”, conta Zelinha. “Os desafios foram todos, de ocupação, de continuidade, de aprendizado, de conhecimento, de persistência, de insistência, do acordar, do amanhecer, do anoitecer, de tudo. Muitos desafios, mas o maior deles foi o medo.”

Jarian ainda lembra das embarcações. “Tinha noite que víamos oito barcos fundeados no entorno do atol, pescando de todas as formas”, disse ele durante um uma das caminhadas pelo interior da laguna permanente no interior do atol.

Zélia inspeciona dois curiosos tubarões-lixa. Foto: João Marcos Rosa

Primeira saída de campo

Ainda no primeiro dia, pouco depois de nos acomodar, a guardiã do atol nos convocou para uma primeira saída. O objetivo era acompanhar o trabalho do programa de monitoramento da Rebio conduzido pela equipe do ICMBio.

Em conversas, Zélia sempre enfatiza que nunca concluiu uma formação acadêmica, mas a abrangência de seu conhecimento é evidente – ela é, sem dúvidas, a maior especialista sobre o Atol das Rocas.

“Observamos os eventos naturais, um swell ou a chegada de algas em grande quantidade; a questão da pesca; do lixo marinho; mamíferos marinhos; tartarugas; aves; elasmobrânquios, aeronaves no espaço aéreo da unidade”, lista Zélia. “Abrangemos todas as áreas, conhecemos bem os lugares, sabemos como chegar em cada maré, em cada lua. Se vemos que alguma espécie não está bem, ou se vemos uma espécie que nunca vimos, procuramos um especialista. É uma ponte entre a unidade de conservação e a pesquisa.”

A principal missão de uma unidade de conservação na categoria Reserva Biológica – a mais restrita, onde o turismo é proibido – é sua conservação e a produção do conhecimento científico. No caso do Atol das Rocas, as pesquisas começaram ainda antes da implementação. Já são mais de 120 estudos concluídos na Rebio. “O pesquisador é o nosso melhor parceiro. Ele faz com que a gente ocupe tecnicamente a unidade de conservação”, conta Zelinha.

O atol atrai cientistas de todas as áreas e do mundo inteiro. O plano de manejo da reserva, aprovado em 2009, lista 54 instituições principais envolvidas com a reserva, entre pesquisa e fiscalização, nos níveis local, regional, nacional e internacional.

Alice Grossman é um desses parceiros. Desde 1994 ela é testemunha da importância do Atol para a pesquisa de várias espécies. “Aquele lugar poderia trazer muito conhecimento para o estudo das tartarugas. E [isso] seria fundamental para engrossar o caldo da conservação de espécies”, diz Alice. “Com a Zélia começamos a criar e descrever os verdadeiros parâmetros da biologia reprodutiva e da história natural das tartarugas-verdes no Brasil. Criamos, juntas, uma série de metodologias, que deram um acréscimo a esse conhecimento e foram retomadas por outras pessoas, o que é muito importante na ciência.”

Além de testemunha, Alice quase foi vítima dos primeiros anos conturbados da reserva. Zélia conta que, em uma das investidas de pescadores ilegais, a pesquisadora foi verificar o nome de três barcos que pescavam nas imediações do atol quando um dos tripulantes atirou em sua direção, mas não a acertaram.

Segundo Zélia, essa é uma das várias histórias que ela escreveu à mão em um livro que nunca chegou a ser publicado – o manuscrito de Do Alto do Atol foi furtado, junto com outros pertences, em seu apartamento, localizado em Natal, Rio Grande do Norte.

Zélia caminha ao lado de Jarian Dantas, membro da equipe de apoio na reserva há 25 anos. Foto: João Marcos Rosa
O trabalho de Zélia no atol envolve saídas em terra, água e até no ar. Além dos mergulhos e caminhadas, Zélia também acompanha pesquisas que utilizam drones. Foto: João Marcos Rosa

Rotina extraordinária

Tem sempre algo extraordinário acontecendo no Atol das Rocas. O som constante das aves em volta da casa, o vento batendo, a proximidade do swell, os tubarões na água, as aves migratórias que chegam de Fernando de Noronha, moreias pescando, caranguejos na Baía da Lama, a peleja das viuvinhas e trinta-réis em proteger seus filhotes do jovem atobá.

No primeiro dia saímos em uma volta de reconhecimento para o lado norte da ilha do Farol, passando pelas ruínas da primeira casa de pesquisa. Fincada em frente à Barretinha, a porta de entrada, a casa serviu de abrigo por 15 anos à equipe do ICMBio e cientistas. Zélia se emociona toda vez que se refere a velha casa de madeira que já não existe. A tatuagem no braço esquerdo, de uma viuvinha chamada Cida, é desses tempos. Cida, que viveu 23 anos no atol, é um dos animais batizados por Zélia, que conversa e mantém relações de amizade com muitos deles.

Nos dias seguintes, começamos a observar o mar e os seres marinhos. Dava para ver não só como os sedimentos se movem pelo atol, mas também como os animais interagem com estas transformações – a “energia”, como Zelinha e outras pesquisadoras ouvidas pela reportagem se referem a essas interações. “Nasce bicho, morre bicho, tudo se transforma diariamente”, diz Zelinha.

Com a Lua quase virando cheia e a proximidade do swell, o primeiro monitoramento foi checar se três polvos já tinham mudado de toca. Dentro de três dias, com o movimento dos sedimentos, tudo seria coberto por areia.

Passado um dia, e quando a maré permitiu, atravessamos a laguna permanente, no lado sul do atol – único local que não seca totalmente em nenhuma época do ano. De lá, saímos de bote para realizar os primeiros mergulhos. Em menos de meia hora avistamos mais de 15 tubarões de cerca de três metros, nadando ou descansando. Já dentro d’água, nos deparamos com três fêmeas de tubarão-lixa descansando no fundo. Zélia se aproximou, tirou fotos das nadadeiras e checou a presença de marcas nos animais – eles permanecem calmos, mesmo próximos. A maioria são fêmeas que usam o atol como uma maternidade. As principais espécies – vistas por todo o interior do atol e de todos os tamanhos – são tubarão-lixa e tubarão-limão.

Já com a maré começando a baixar, ao atravessar a laguna, vários pequenos tubarões neonatos, nascidos a menos de um mês, passaram pela equipe. Outros, um pouco maiores, nadavam em direção à Baia da Lama, uma espécie de rio de água do mar, com uma vegetação que lembra o mangue, composta de plantas suculentas adaptadas à salinidade.

Nenhum animal se abala com a nossa presença – nem os tubarões, nem os caranguejos, nem mesmo as aves. “O atol é responsável pela perpetuidade de muitas espécies de animais. Serve de abrigo, serve de local de alimentação, de reprodução para milhares de espécies”, diz Zelinha. “Tudo aqui é área de pesquisa. Então os animais também sentem isso. Não se interfere, temos os comportamentos naturais de verdade.”

A preponderância de fêmeas também é comum entre outras espécies do lugar. Um estudo na Rebio mostrou que apenas 67% das lagostas eram fêmeas, por exemplo.

Em mergulhos nas piscinas temporárias que se formam de acordo com a força do swell, vimos peixes dentões, corais e tartarugas. Tudo era documentado por Zélia, que conversava com os dentões e com as aves, dava boas-vindas aos recém-chegados e, já à noite, repassava e digitava o que havia anotado.

Com a proximidade da Lua Cheia, mais transformações ocorrem. Em frente à ilha do Farol, na ilha do Cemitério – que tem esse nome pela quantidade de parte de naufrágios –, as águas corriam de um lado para o outro, empurrando sedimentos e areia. Durante um período do ano, até algas e corais ficam cobertos de areia e precisam se mudar.

Um ambiente em movimento

Como em todo lugar do mundo, também tem plástico trazido pela correnteza até a ilha do Cemitério. O material é coletado e catalogado por Zelinha. É cada vez mais comum encontrá-los – são desde garrafas de combustível a pequenos fragmentos. Tudo vai para a lista de monitoramento da Rebio.

O plástico é especialmente perigoso na reserva, já que lá tudo está conectado. Se acontece algo com os ninhos de aves, interfere na população de tartarugas. Enquanto as aves se banham durante as raras chuvas que caem no atol, os caranguejos-terrestres saem de suas tocas para se alimentar. Flagramos, de noite, cerca de 20 desses caranguejos se alimentando da carcaça de uma ave.

Com a Lua Cheia e a eminência do esperado swell, os tubarões ficam mais agitados, e outras transformações acontecem. Zelinha também fica mais agitada. Caminha muito, sobe no farol e circunda ilhas com uma agilidade reveladora. Sempre atenta. O perímetro do atol todo tem cerca de 7 km, uma volta na ilha do Farol, que tem cerca de 0,2 km2 de área, pode ser feita em até meia hora. Mas, com Zelinha e suas paradas para observar, monitorar e anotar tudo, levamos dez dias para percorrer a área inteira.

A energia de Zelinha é lá em cima, assim como a energia das ondas e marés que movimentam e transformam a ilha a todo momento. Um dos projetos que ela participa monitora essas mudanças com drones. Entre os objetivos está colher informações sobre variação no volume de sedimentos e altitude das ilhas e monitorar o branqueamento de corais. Se algo é detectado nas piscinas, realiza-se um mergulho de checagem.

Os drones também ficam de olho nos mamíferos que passem ao largo do atol e na geomorfologia das ilhas – atrás de expansões ou diminuições no ninhal de aves ou erosão nos ninhos de tartarugas.

Há um processo energético de onda e maré no atol, o que explica a intensidade de fenômenos como o swell. “A gente pode dizer que temos diferentes frequências de energia acontecendo”, explica Mirella Costa, professora do departamento de Oceanografia da Universidade Federal de Pernambuco que iniciou suas pesquisas no atol durante o doutorado, em 2012. “Temos variações a cada seis horas de maré alta e baixa, quatro vezes por dia. A cada quinze dias, durante as luas Cheia e Nova, tem marés mais extremas, com maior amplitude, chamadas marés de sizígia, e isso gera uma energia mais elevada.”

A cada seis meses, segundo Mirella, tem a entrada de swell do norte, que é mais intenso e movimenta as ilhas. Também há eventos de ondas interanuais muito extremos, que acontecem a cada cinco ou dez anos. Esses, quando acompanhados de uma maré de lua, promovem transformações de enorme magnitude. “Todos esses processos vêm operando em grande escala e gerando esses resultados que observamos de mudança na forma da ilha, aumento da ilha e migração dela para o interior da laguna.”

No sétimo dia de reportagem no atol, as ondas já batiam com mais força no anel de algas calcárias. No oitavo, o swell chegou com a força que só o Oceano pode demonstrar. Da casa, desde as primeiras horas da manhã, já se ouvia as ondas de quatro metros batendo no recife.

O espetáculo é hipnotizante. Dependendo da intensidade, as ondas podem chegar até a casa de pesquisa, varrendo todos os ninhais de aves, como já aconteceu no passado.

swell tem um impacto forte no ambiente recifal, nas piscinas e na ilha. O sedimento que é jogado de fora para dentro do atol, chamado de aterro, passa por muitos ambientes até chegar às ilhas, soterrando colônias de corais de esponja, tocas de polvo, poços de maré e tocas de moreias no caminho. A mudança no ambiente fica evidente – o que era fundo rochoso, calcário ou coralíneo vira fundo arenoso.

“E não são dez centímetros. São dois metros e meio durante quatro meses que o coral fica soterrado”, diz Zélia. “Quando esse aterro chega nas ilhas, o coral está meio pálido, mas depois volta com sua coloração normal ou próximo disso.” Essa dinâmica ajuda a explicar a resiliência dos corais. Apesar das mudanças climáticas, os corais ainda estão saudáveis.

Zélia observa o comportamento dos caranguejos-terrestres no Atol das Rocas. Foto: João Marcos Rosa
A chefe da reserva biológica conta que, desde o início da pandemia, quando reduziu-se o número de pessoas no atol, ela passa, entre idas e vindas, até nove meses do ano no meio do Atlântico. Foto: João Marcos Rosa

Resiliência no atol

Zélia parece ter uma relação de simbiose com o ambiente – está conectada com as energias e a transformação que as ondas e os ventos trazem, adaptada às mudanças e preparada para as adversidades.

Por vezes Zélia comenta que o atol a salvou. “Aos 19, fui trabalhar no Instituto Brasileiro de Defesa Florestal [IBDF, que depois se tornaria Ibama]; eu tinha meu dinheiro, e eu comecei a beber”, conta Zélia. “Depois de alguns anos, vi que, se o meu objetivo de vida era cuidar do Atol, eu tinha que me sarar. Parei de beber há 22 anos e o atol é muito responsável por esse preparo psicológico que eu tenho de me adaptar às coisas ruins da vida.”

Nos intensos primeiros anos da reserva, Zélia se dedicou a conscientizar os pescadores que trabalhavam no entorno. Poderia ser mais difícil não fosse a relação de vida que ela tem com a categoria. Criada em uma comunidade pesqueira na praia de Pipa, no Rio Grande do Norte, desde os oito anos já embarcava para sair com o pai e os amigos pescadores.

Seu pai foi um destacado coordenador do IBDF e responsável por levar a filha para trabalhar com fiscalização ambiental. Segundo Zélia, ele ainda é sua maior inspiração ee teve forte influência na forma de dialogar com os pescadores.

No atol, Zélia ficou famosa entre as comunidades de pesca como a xerife do mar. Ela tinha que enfrentar uma média de 280 dias de pesca por ano, com até 14 barcos nas proximidades. A insistência na fiscalização e a busca por parcerias estratégicas, como com a Marinha, foram reduzindo os incidentes. Hoje a presença de estranhos é quase zero. “Os pescadores mais antigos se aposentaram, os novos viram que a gente realmente não ia permitir a pesca e eles foram desistindo,” conta Zélia.

Durante os dez dias que passamos no atol, testemunhamos apenas um incidente com embarcações: veleiros que participavam de uma regata e se aproximaram demais do atol.

Faltam dois dias para o fim da estadia da reportagem e as ondas do swell começam a diminuir. A energia de Zélia também muda, uma espécie de ressaca marinha toma conta. São três décadas cuidando de um lugar que abriga muitas vidas.

“Quando penso em desistir, subo no farol. De lá, vejo todo o atol e grande parte da área da unidade. Tenho um retrato mental de todo esse lugar, conheço cada pedacinho, até as rocas, e olho e penso em tudo o que fiz, e que antes subia o farol para contar o número de barcos de pesca”, diz Zélia. “Agradeço principalmente ao atol, por ter aceitado essa parceria. Essa é minha maior vitória. É saber que existe essa parceria, esse amor e esse compromisso entre nós dois.”

Partida

Um dia antes da partida da reportagem, Zelinha começa a arrumar e coordenar o embarque da nova equipe de duas pessoas e do material que será trazido para o atol no catamarã Borandá, que também a levará de volta ao continente. A logística é complicada – são trazidos mantimentos e água e devolve-se todo o lixo não orgânico para o continente.

Enquanto caminha para cima e para baixo, ela troca mensagens por WhatsApp com a sua equipe em Natal. Tudo deve ser comprado um dia antes, para que o barco zarpe o mais cedo possível.

“Ainda não estou preparada para deixar o Atol. Nunca me acostumei e talvez não me acostume”, diz Zelinha com os olhos marejados e voz embargada, mesmo sabendo que em três semanas estará de volta para passar uma temporada de três meses, acompanhando a pesquisa com drone, a temporada de desova das tartarugas e os cientistas que estão finalmente retornando ao atol depois da pausa da pandemia.

A saudade antecipada da guardiã do atol é justificada. Afinal, estamos falando de uma espécie que só vive plena ali, em seu ambiente natural, e terá que novamente se adaptar a um lugar mais rude, no continente, onde o tempo é descompassado e os barulhos humanos, estranhos.

Entramos no pequeno barco que fica atracado na ilha do Farol, passamos pela Barretinha, embarcamos no catamarã Borandá que acabara de chegar e seguimos rumo a Natal. À medida que o pequeno espaço de areia desaparece, saímos também de um universo único, conservado por uma pessoa que dedicou sua vida a ele.

“Quando comecei a faculdade de biologia tinha um objetivo: queria salvar o planeta. E logo entendi que não era fácil achar pessoas que queriam isso. Quando conheci a Zélia eu encontrei uma pessoa que verdadeiramente queria salvar o planeta”, disse a pesquisadora Alice Grossman. “Mais do que isso: ela já estava salvando. Imediatamente entendi que eu podia fazer o mesmo. Que poderia e devia fazer coisas que de fato teriam impacto na saúde do planeta.”

Mas a chefe da Rebio não se deslumbra com os elogios e muitos reconhecimentos que já recebeu. Para Zelinha, o importante é fazer a diferença para seu companheiro, o atol. Essa relação – simbiótica, natural – mostra que seres humanos podem se integrar harmoniosamente ao ambiente natural, mais uma espécie frente ao espetáculo que é a vida marinha e suas conexões.

No atol se vê e se aprende isso. Zélia ensina.

Esta reportagem foi parcialmente financiada pela Fundação Toyota do Brasil e originalmente publicada em 8 de março de 2022 na National Geographic Brasil.

  • Paulina Chamorro

    Jornalista com mais de duas décadas de atuação em temas socioambientais

  • João Marcos Rosa

    João Marcos Rosa é um fotógrafo brasileiro apaixonado pela cultura e vida selvagem. Jornalista por formação, é um dos sócios fundadores da Nitro Imagens e tem especial talento para contar histórias visuais ligadas à biodiversidade e à conservação ambiental.

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