Análises

A quem interessa arriscar um tesouro?

A temerária tentativa de explorar petróleo nas imediações de Fernando de Noronha e do Atol das Rocas

Alexander Turra · Carlos Eduardo Leite Ferreira · Ronaldo Bastos Francini-Filho ·
7 de outubro de 2021 · 2 anos atrás

As ilhas oceânicas brasileiras, como o Atol das Rocas e o Arquipélago de Fernando de Noronha, são um tesouro para a biodiversidade marinha. Esses ambientes são caracterizados pela ocorrência de espécies endêmicas, ou seja, que só existem lá. Além disso, esses locais abarcam parcelas significativas de populações de espécies ameaçadas de extinção e são importantes áreas de reprodução, descanso e alimentação de mamíferos marinhos e tartarugas, além de exuberante avifauna.

No entanto, essas ilhas são muito frágeis. No caso de um impacto ambiental severo há risco de extinção das espécies endêmicas, o que seria um processo sem volta. Além disso, as populações de espécies que também ocorrem em outros lugares, como na costa brasileira, apresentam potencial limitado de recuperação nas ilhas em função das dificuldades de recolonização em ambientes muito distantes da costa.

O Arquipélago de Fernando de Noronha tem ativos adicionais. Um deles remete à sua importância histórica e turística, fundamental não apenas para os moradores da ilha, mas também para o setor turístico nacional. A população humana local depende direta e indiretamente da pesca nos arredores, a qual poderia ser severamente afetada no caso de um desastre ambiental.

Considerando a importância e a fragilidade desses ambientes, seria difícil imaginar que, deliberadamente, esses tesouros pudessem ser colocados em risco. Mas o interesse em expandir a atividade de exploração de petróleo e gás natural nos arredores da Reserva Biológica do Atol das Rocas e do Arquipélago de Fernando de Noronha tem trazido muitas preocupações com o futuro da região. O leilão que a Agência Nacional do Petróleo (ANP) pretende realizar no dia 7 de outubro de 2021 tem a intenção de conceder 14 blocos de exploração de petróleo à iniciativa privada, atitude que pode ser considerada “temerária”, conforme manifestação do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e o Ibama, desconsiderada pelo Ministério das Minas e Energia e pela ANP.

Os vazamentos correspondem ao risco mais evidente da exploração do petróleo no mar, gerando impactos de curto (agudos) e longo (crônicos) prazos. O petróleo tem um comportamento muito complexo quando vaza no ambiente marinho. Parte dele volatiliza para a atmosfera, parte fica na superfície e parte vai para o fundo. Noronha e Rocas estão à leste dos blocos que se pretende leiloar, de forma que as correntes superficiais, que fluem para oeste, levarão as manchas de óleo predominantemente para o continente. Entretanto, a contracorrente subsuperficial do Equador poderia facilitar a chegada de óleo nas ilhas. Já a porção do petróleo que afunda poderá comprometer os ecossistemas sobre o fundo ao longo das regiões afetadas e suas adjacências, onde ocorrem importantes montes submarinos (“ilhas afundadas”) de grande relevância ecológica.

Além de Rocas e Noronha, as manchas de óleo podem afetar todo o litoral do Rio Grande do Norte ao Amapá, comprometendo assim outros ambientes sensíveis e relevantes, como os manguezais do Maranhão e do Pará, além das atividades de subsistência e econômicas, como a pesca e o turismo, a exemplo do que aconteceu por ocasião do grande vazamento que atingiu o litoral norte/nordeste brasileiro entre o final de 2019 e o início de 2020.

Os riscos associados aos vazamentos são agravados, pois as estratégias de mitigação existentes são ineficientes e, em alguns casos, podem causar ainda mais danos para a biodiversidade. Os dispersantes de óleo, por exemplo, evitam a chegada do óleo na costa, mas facilitam a contaminação de organismos na coluna d’água e de ecossistemas que ocorrem nos fundos marinhos. Por exemplo, o uso do dispersante Corexit causou mortalidade e comprometimento do ciclo de vida de diversas espécies marinhas no grande vazamento de óleo ocorrido no Golfo do México em 2010 (Deepwater Horizon).

Outro risco associado à exploração de óleo no mar, mas menos evidente que os vazamentos, equivale à invasão de espécies exóticas. Tanto as plataformas, quanto as boias e as embarcações que dão suporte às atividades, aumentam a chance de organismos de outras regiões do planeta colonizarem esses importantes ambientes. Os prejuízos ecológicos e econômicos podem ser elevados e irreversíveis, como no caso da invasão do coral-sol ao longo da costa brasileira e que hoje tem na Bacia de Campos uma fonte constante de larvas a partir de estruturas flutuantes infestadas.

Por fim, a atividade sísmica, essencial para implementar a exploração, também é altamente impactante. Ela consiste na emissão de sons muito potentes que permitem a identificação de jazidas de petróleo. Esses sons afetam os organismos marinhos, como baleias e golfinhos que se comunicam pelo som.

Considerando esse cenário controverso, algumas perguntas precisam ser feitas. A quem interessaria leiloar esses blocos? A quem interessaria fazer um lance sobre eles?

Em relação à primeira pergunta, esse leilão está sendo feito pela ANP considerando os interesses do Ministério de Minas e Energia e, portanto, do governo federal. Mas para que expandir a exploração de petróleo, em especial em uma área tão relevante e sensível, se o mundo está caminhando para uma transição à economia de baixo carbono e com menor dependência de combustíveis fósseis? Essa atitude não contribui para o combate às mudanças do clima com o qual o Brasil, enquanto nação, deveria estar mais empenhado em apoiar.

Já em 2013, a Câmara dos Deputados promoveu discussões sobre a concessão de blocos para exploração de petróleo e gás natural à iniciativa privada, revelando a preocupação com o risco de especulação financeira por parte de empresas que não possuem estofo técnico e/ou econômico para cumprir o que prometeram. Muitas empresas vencedoras não têm tradição no setor de petróleo e gás e não oferecem segurança quanto às suas condições econômico-financeiras, o que pode afetar a forma como lidam com os aspectos ambientais da exploração.

Esse cenário indica que o país está priorizando atividades potencialmente especulativas e de caráter imediatista em detrimento de uma visão mais sistêmica, estruturante e de longo prazo pautada pelo uso sustentável do oceano, que depende de sua qualidade.

A segunda pergunta remete aos interesses das empresas, especialmente em assumir esses riscos, tanto para o ambiente quanto para sua imagem. No caso da Foz do Amazonas, por exemplo, a empresa francesa Total desistiu da exploração por conta não só das dificuldades de licenciamento, mas também em função do potencial de repercussão política e social no caso de um vazamento.

Em suma, a exploração de petróleo nessa região contraria todos os esforços recentes para resguardar a qualidade do oceano e a provisão dos benefícios providos por ele para as pessoas. Essa atitude corresponde a uma ação que afasta o Brasil ainda mais dos caminhos trilhados pela Agenda 2030 das Nações Unidas, cujo Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 14 pretende “conservar e usar de forma sustentável os oceanos, mares e recursos marinhos para o desenvolvimento sustentável”, e pela Década das Nações Unidas da Ciência Oceânica para o Desenvolvimento Sustentável, que preconiza dentre outros resultados, um oceano limpo, saudável, produtivo e utilizado sustentavelmente.

*Artigo endossado pela Coalizão Ciência e Sociedade.

As opiniões e informações publicadas nas seções de colunas e análises são de responsabilidade de seus autores e não necessariamente representam a opinião do site ((o))eco. Buscamos nestes espaços garantir um debate diverso e frutífero sobre conservação ambiental.

  • Alexander Turra

    Professor titular do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (IOUSP) e coordenador da Cátedra UNESCO para a Sustentabilidade do Oceano.

  • Carlos Eduardo Leite Ferreira

    Graduado em Ciências Biológicas pela Universidade Santa Úrsula (1988), com mestrado e doutorado em Ecologia e Recursos Naturais pela Universidade Federal de São Carlos (1993-1998). Atualmente é professor associado no Dept. de Biologia Marinha da Universidade Federal Fluminense.

  • Ronaldo Bastos Francini-Filho

    Doutor em Ciências Biológicas (Zoologia) pela Universidade de São Paulo e Professor do Centro de Biologia Marinha da Universidade de São Paulo (CEBIMAR-USP). Trabalha com foco em ecologia e conservação de ecossistemas costeiros e marinhos.

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