O biólogo campineiro Alexandre Antonelli assumiu há dois meses a direção científica do Kew Gardens. É um emprego dos sonhos de qualquer botânico. Isto porque o Jardim Botânico Real, no bairro de Kew, não é somente o jardim botânico de Londres. É muito mais do que isso. Fundado em 1759, portanto há exatos 260 anos, Kew Gardens é a maior e mais tradicional instituição de pesquisa botânica do planeta e também um Patrimônio Mundial da Unesco. Simples assim.
No Kew são cultivados, preservados e estudados mais de 50 mil espécimes de plantas de todo o mundo. Ali trabalha um grupo de excelência formado por 350 pesquisadores. Desde o mês de fevereiro, todos eles se reportam diretamente a Antonelli, hoje com 40 anos.
“Ainda não tive tempo de conhecer todos eles,” diz Antonelli de modo afável e um tanto encabulado, e que hoje pronuncia o português natal com um leve acento sueco. Afinal, já são 23 anos longe do Brasil, 20 deles vividos na Suécia.
Antonelli cresceu no Cambuí, um bairro de classe média de Campinas. Aos 17 anos, abandonou o primeiro semestre do curso de Biologia na Unicamp para mochilar pelo mundo. Nos três anos seguintes, trabalhou como intérprete, programador e garçom em países como o Reino Unido, França e, México. Aos 20 anos, conheceu a sueca Anna, quando trabalhava como instrutor de mergulho em Honduras. De lá seguiram para a Suécia, onde casaram, tiveram três filhos, e aonde Antonelli fez sua formação completa. Em 2001, ele entrou no mestrado em Biologia na Universidade de Gotemburgo, instituição onde completou seu doutorado em 2008.
Após um pós-doc na Suíça, em 2010 Antonelli se tornou curador científico no Jardim Botânico de Gotemburgo. “Gotemburgo tinha uma grande linha de pesquisa com a flora da América do Sul. Fiquei muito animado em dar continuidade a esse trabalho.”
A partir de 2014, Antonelli tornou-se professor na Universidade de Gotemburgo, onde desde então orientou mais de 70 alunos, muitos deles brasileiros.
“O foco das minhas pesquisas é a biogeografia das florestas tropicais. Tenho interesse de entender de que modo os biomas se formaram, de qual forma determinadas espécies de plantas se adaptaram a biomas diversos, acarretando assim na sua diferenciação e no surgimento de outras espécies, aumentando a biodiversidade.”
Antonelli realizou trabalhos de campo no Brasil (na Amazônia, no Cerrado, na Mata Atlântica e nos Pampas), África do Sul, Austrália, Áustria, Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, Estados Unidos (na Flórida), Geórgia, Grécia (em Creta), Guiana Francesa, Islândia, Japão, México, Moçambique, Panamá, Peru, República Dominicana, Suécia, Suíça e no Uruguai. Suas investigações resultaram na publicação de mais de 150 artigos científicos ‒ diversos deles como principal autor, e publicados na Nature e na Science, as duas bíblias da pesquisa acadêmica mundial.
“A biogeografia tem a interdisciplinaridade em seu âmago. Para compreender os aspectos geográficas, geológicos e climáticos que afetam uma linhagem de plantas, por exemplo, há que se recorrer ao trabalho de ecólogos, geólogos, climatólogos, geneticistas, palinólogos, paleontólogos e bioinformáticos. Por isto mesmo, tratam-se de pesquisas complicadas e demoradas. Não raro, leva-se até três anos para se obter os primeiros resultados.”
Como se vê, o grande diferencial ‒ e a virtude acadêmica ‒ de Antonelli é fazer pesquisa de excelência com vistas à conservação dos biomas tropicais, ao mesmo tempo que consegue cativar o interesse, reunir e orquestrar o trabalho de inúmeros especialistas de todo o mundo na consecução de pesquisas complexas, que envolvem grandes coletas, vastas coleções museológicas, e a investigação de múltiplas bases de dados.
Eram exatamente estas as aptidões que a direção do Kew buscava num futuro diretor científico para a instituição.
“No primeiro semestre de 2018, durante uma estadia como professor visitante na universidade Harvard, nos Estados Unidos, fui contactado por uma agência de caçadores de talentos, que buscava candidatos para a vaga de diretor científico do Kew. Fiquei surpreso. Eles me pediram que escrevesse uma carta dizendo porque deveria ser escolhido e o que eu faria caso ocupasse aquela colocação. Em outubro, veio a resposta positiva. Em dezembro, na semana do Natal, fui a Londres fazer uma palestra de apresentação aos mais de 300 pesquisadores do Kew. Assumi agora em fevereiro.”
Decorridos apenas 10 anos desde a defesa de seu doutorado, Antonelli conquistou um dos cargos científicos mais cobiçados da Botânica ‒ se não o mais cobiçado de todos. A este pesquisador brasileiro bastou o tempo que a Terra leva para completar dez voltas em torno do Sol para avançar sua carreira de forma meteórica, numa trajetória astronômica que inúmeros pesquisadores igualmente brilhantes costumam levar até três décadas para percorrer.
O sujeito é um monstro científico. Ele conversou na semana passada com a reportagem de O ECO via Skype, desde o seu novo gabinete na capital britânica.
“Durante os quase 260 anos de existência, esta instituição acumulou a coleção mais vasta de plantas e fungos do mundo. Nosso desafio é prosseguir nesta trajetória, mas ao mesmo tempo garantir a preservação deste patrimônio maravilhoso e insubstituível.”
“Neste sentido, costumo usar como exemplo a tragédia do incêndio no Museu Nacional, em setembro passado, no Rio de Janeiro. A palavra a usar é esta: tragédia. Em 2010, no Instituto Butantan em São Paulo, já ocorrera tragédia semelhante, com a destruição pelo fogo da coleção única e insubstituível de serpentes daquela instituição.”
“Que sirva de lição a todas as instituições e museus do planeta, da necessidade de garantir a existência de ao menos dois holótipos de cada espécie.”
Holótipo ou espécime-tipo de uma espécie é o espécime físico (uma ave, um peixe, o couro de um jacaré, uma amostra de DNA, as sementes e folhas de determinada planta, etc) que serviu de base para a descrição de uma nova espécie. O holótipo obrigatoriamente deve ser depositado no arquivo de um museu ou instituição de pesquisa no momento da sua descrição.
A extrema importância da preservação do holótipo se deve ao fato de que este, por ser dono das características únicas que serviram para definir a nova espécie, serve de base de comparação futura para qualquer outro exemplar da mesma espécie, ou do mesmo gênero, ou da mesma família, coletados em qualquer lugar do planeta.
O Museu Nacional era depositário de dezenas de milhares de holótipos de insetos, coletados ao longo de 200 anos, e que em 2o de setembro de 2018 irremediavelmente viraram fumaça e cinzas. Mais além, havia milhões de amostras não descritas, de florestas brasileiras que não mais existem. Aquele repositório era a única forma de saber as espécies que um dia lá existiram.
“Daí a importância de que, daqui para a frente, se exija a deposição de ao menos dois holótipos em arquivos de instituições diferentes. De modo a minimizar que, caso haja nova tragédia, a perda não seja irreparável.”
Outra meta de Antonelli é digitalizar todas as coleções do Kew. “Meu sonho é fazer uso da tecnologia de reconhecimento de imagem, possibilitando a qualquer visitante simplesmente apontar a câmera do seu celular para um exemplar de nossa coleção e conhecer todas as informações que desejar.”
“Através de seus pesquisadores, o Kew Gardens desenvolve hoje colaborações com instituições científicas de 110 países. Minha intenção é expandir ainda mais. Neste sentido, o Brasil e seus pesquisadores podem vir a ter lugar privilegiado. Nos anos 2000, durante os dois governos de Lula, era praticamente impossível fazer coleta científica no Brasil. Em nome do combate à biopirataria, a quantidade de documentos que o IBAMA exigia para realizar os trabalhos inviabilizava qualquer coleta. Hoje em dia, a coisa está melhor. Vamos tentar retomar e ampliar as coletas e colaborações no Brasil”
Antonelli tem três nacionalidades. Ele é brasileiro de nascimento, italiano por ascendência, e sueco por escolha. Ele fez sua formação científica completa fora do Brasil. É de se questionar se Antonelli teria obtido o mesmo sucesso caso tivesse optado por pesquisar em nosso país. Tudo é possível, mas as chances são de que ele jamais teria podido trilhar os caminhos ou obtido as oportunidades que acabaram por levá-lo à direção científica do Kew Gardens.
“A universidade brasileira precisa mudar. Dou um exemplo bastante simples. Aqui na Europa é praticamente impensável que um estudante faça a sua formação completa numa mesma instituição de ensino e pesquisa, como acontece no Brasil, onde o pesquisador muitas vezes se forma, faz mestrado, doutorado e pós-doc na mesma universidade.”
“A formação dos pesquisadores deve necessariamente se dar em locais distintos. O futuro pesquisador precisa mudar de cidade, trocar de instituição, respirar novos ares, conhecer novos grupos de pesquisa, fazer novos contatos, ampliar seus horizontes.”
“Quando existia o programa Ciência sem Fronteiras, os jovens pesquisadores brasileiros tinham maiores chances de sair do país e se formar em instituições estrangeiras. Eu espero que programas semelhantes voltem a ser adotados.”
Por falar em Brasil, o que Antonelli pensa da política ambiental do governo Bolsonaro?
“No século 21, para se atingir o desenvolvimento e a melhoria das condições de vida de toda a população, não é mais preciso destruir as florestas e poluir o meio ambiente como no tempo da revolução industrial, como aconteceu aqui na Europa. Hoje há conhecimento e tecnologia para fazer diferente, aliando crescimento econômico com conservação, conscientização ecológica e preservação do meio ambiente. Eu espero que o novo governo eventualmente venha a trabalhar neste sentido.”
É uma boa resposta. Não chega a criticar o governo brasileiro, ao mesmo tempo que aponta caminhos para o futuro. É a resposta de um cientista que também é um político, outra atribuição que um diretor do Kew Gardens deve possuir.
Cientista jovem, brilhante, e que conquistou um emprego dos sonhos, Antonelli deve encher de orgulho sua mãe, que ainda vive em Campinas (o pai dele morreu há 20 anos).
Tomei a liberdade de perguntar a ele se sua mãe não chora de orgulho toda vez que sabe das novas conquistas do rebento?
Antonelli volta a ficar encabulado.
“Bem, não sei, mas acho que sim…”
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Bom dia! Educando FAPERJ/CRS
Falou mal do Deus Lula aparece a turba acéfala pra atacar o cidadão. Até com comentários ignorantes dizendo que ele não fala mais português. Lamentável…
Concordo plenamente, Rogério
Muito lúcido seu comentário, muito bem posicionado, vindo de quem conhece a situação e vive no Brasil. No início do artigo o repórter já comenta que o brilhante rapaz nem sabe mais falar um português sem sotaque
Parabéns para ele. Mas as informações sobre fazer coleta no período Lula não procedem. Sou estudante da universidade federal da Bahia, diretamente ligado a pesquisa botânica. Durante o governo Lula, cresceram os investimentos na universidade pública, com ampliação de vagas, aumento de verbas, e muitas bolsas de programas governamentais. O herbário da UFBA por exemplo, foi reconstruído com instalações completamente novas, ampliando a sua capacidade. Universidade de feira de Santana também é outro exemplo, com grandes programas na área botânica e grandes projetos de doutorado e mestrado nessa área. Nunca se teve tanta verba para financiar a pesquisa e aulas de campo para nossas matérias de taxonomia e sistemática botânica. O aluno saia para passar 3 dias de viagem na chapada Diamantina fazendo coleta junto com o professor e alunos orientados pelo mesmo. Basta fazer uma pesquisa simples de dados e ver o quanto foi coletado, e quantas novas espécies foram descritas. Quantas correções em herbários fora do país foram feitas por pesquisadora brasileiros que iam para outros países corrigir plantas com classificações atualizadas, estes pesquisadora estavam viajando com dinheiro de programas do governo em seus mestrados Oi doutorados com o famoso "Sandwich". Para um pesquisador externo e sem nenhuma ligação com instituições de ensino brasileira sim, deve ter ficado mais difícil de se fazer coleta. Mas para qualquer pesquisador brasileiro não. Acabo de chegar de uma viagem de campo que ocorreu em parceria com a UFBA e Harvard, uma viagem quase que praticamente custeada por Harvard, mesmo tendo sido metade da turma brasileiros. Isso pois as verbas para viagem foram cortadas, professores não recebem mais dinheiro para hospedagem e comida em campo. Mas Harvard tem uma professora pesquisadora visitante na UFBA, se fosse necessário ela poderia fazer a coleta. Não creio que seria possível para um pesquisador brasileiro simplesmente sair adentrando as matas Americanas e coletando a bem entender. Sendo assim essa dificuldade que ele fala é algo benéfico para nós. Outra coisa, a forma como foi bastante indiferente em sua resposta as política ambiental do governo também é alarmante. O governo Bolsonaro juntou os ministérios da agricultura e meio ambiente, e empossou um poderoso dono de agronegócio. Índios estão sendo mortos e aldeias inteiras estão sendo genocidas, em reservas florestais indígenas. O mundo não tem se acanhado em fazer críticas a este governo. Porque ele tem? Acredito nos biólogos brasileiros formados no Brasil, sob dura dificuldade de pesquisa, porém, que entendem melhor nossa atual situação. Os dois pontos políticos levantados por ele, me parecem muito bem alinhados, poderia ter sido um bom espaço para real crítica, e nos ajudar nesse momento de pavor ecológico que vivemos. Isso sim teria sido um posicionamento a altura de alguém que chegou a tal posição.
E um dia a conta da gastança…. E quem disse que o governo juntou os ministérios do meio ambiente e agricultura? Vc vive numa realidade paralela? Se vc pesquisar, verá em que época mais se matou índios recentemente.
Que monte de besteira…
*** Errata, os ministérios não chegaram a ser fundidos, pelo menos até o momento, mas foi a sugestão inicial do presidente. O ministério do meio ambiente perdeu para o ministério da agricultura: " serviço é responsável pelo Cadastro Ambiental Rural (CAR), que regulariza propriedades rurais e faz a gestão de áreas de reserva e preservação. A pasta da Agricultura também passa a ser responsável pela identificação, delimitação, demarcação e pelos registros de terras indígenas e quilombolas, competências antes exercidas pela Funai (Fundação Nacional do Índio) e pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária).O licenciamento do setor da pesca foi outra competência transferida do Meio Ambiente para a Agricultura. Já a política nacional de recursos hídricos se tornou atribuição do Ministério do Desenvolvimento Regional, com a transferência do Departamento de Recursos Hídricos, do Conselho Nacional de Recursos Hídricos e da ANA (Agência Nacional de Águas) para a pasta.Outra medida significativa foi a extinção da Secretaria de Mudanças do Clima e Florestas. Com ela, deixam de existir o Departamento de Políticas em Mudança do Clima e o Departamento de Monitoramento, Apoio e Fomento de Ações em Mudança do Clima."[ https://epocanegocios.globo.com/Brasil/noticia/20… ]