Reportagens

Do Pacífico ao Atlântico: uma visita para falar de trilhas de longo curso

A diretora de operações da Pacific Crest Trail, Jennifer Tripp, vem ao Rio falar sobre o manejo da trilha de longo curso americana em intercâmbio com a Trilha Transcarioca.

Duda Menegassi ·
20 de dezembro de 2017 · 7 anos atrás
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Jennifer Tripp, da Pacific Crest Trail Association, com Horacio Ragucci, coordenador do Movimento Trilha Transcarioca. Foto: Duda Menegassi

A Pacific Crest Trail é uma das maiores trilhas de longo curso nos Estados Unidos. Com 4.265 quilômetros de extensão, ela é quase 24 vezes mais longa que a maior trilha brasileira, a Transcarioca, com 183 quilômetros. A diferença de idade também é considerável. Enquanto a PCT, como abreviam os íntimos, foi oficialmente concluída em 1993, o percurso brasileiro foi inaugurado apenas em fevereiro deste ano. A missão de ambas, entretanto, é a mesma: estimular a visitação nas áreas protegidas e aproximar o contato com a natureza através da caminhada. E os desafios também dialogam – nas devidas proporções e contextos locais, é claro.

Com o objetivo de aprender com quem está nesse caminho – literalmente – há mais tempo, o Movimento Trilha Transcarioca realizou neste ano um intercâmbio com a Pacific Crest Trail Association (PCTA). Em agosto, um grupo foi conhecer um trecho da trilha americana que cruza a costa oeste dos Estados Unidos, da fronteira sul, no México, até o Canadá. E em dezembro, a diretora de operações da trilha, Jennifer Tripp, veio ao Rio de Janeiro, lar da Transcarioca, dar uma palestra sobre as oportunidades, as histórias e os desafios de gerir um percurso da dimensão da PCT.

((o)) eco aproveitou para bater um papo em exclusividade com a diretora, leia a seguir a entrevista:

((o)) eco: Qual a importância desse intercâmbio entre trilhas de longo curso?

Jennifer Tripp: A convite da Coordenação Geral de Uso Público e Negócios do ICMBio ( Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), participei do Seminário de Boas Práticas em unidades de conservação em novembro e foi interessante ouvir que quase todas as discussões lá são parecidas com as que nós temos dentro do National Trail System (Sistema Nacional de Trilhas) e com as agências federais americanas. Nós estamos lidando com os mesmos desafios e mesmo que a nossa trilha exista há mais tempo, nós ainda debatemos os mesmos tópicos que foram discutidos aqui. Todos nós estamos procurando por soluções para problemas similares e é muito importante ter essa troca de experiências porque nós temos recursos limitados em conservação. Nós não precisamos reinventar a roda, nós temos que tentar aprender as melhores práticas de quem está sendo bem-sucedido. Nós fazemos isso nos Estados Unidos entre as trilhas de longo curso. Eu vim ao Brasil para compartilhar a nossa experiência com a PCT, mas também pude aprender coisas novas sobre sinalização. É sempre um aprendizado e também uma chance de compartilhar mapas e materiais de divulgação.

Um dos maiores problemas enfrentados pela Trilha Transcarioca é a segurança. Como vocês lidam com possíveis crimes que acontecem na Pacific Crest Trail?

Existem diferentes agências envolvidas ao longo da Pacific Crest Trail, nem todos os territórios são parques nacionais. Então, quando há algum crime na trilha, a resposta ao ocorrido irá depender da agência responsável por aquele território. Se estiver na jurisdição do National Park Service (Serviço Nacional de Parques), por exemplo, eles provavelmente mandarão alguém ao local. Se for no território do Forest Service (Serviço Florestal dos Estados Unidos), entretanto, talvez não seja possível fazer isso porque eles não possuem uma equipe grande de fiscalização e costumam estar focados em crimes maiores como o cultivo ilegal de maconha. Eles não estão tão preocupados se alguém roubou uma placa da trilha, por exemplo. Mas na instância da maioria dos crimes, nós trabalhamos junto com a força policial municipal. E próximo do México nós também trabalhamos com a patrulha da fronteira. A verdade é que não temos registros recorrentes de crime, principalmente porque nós estamos afastados de áreas urbanas, diferente do que acontece com a Trilha Transcarioca, que está completamente inserida dentro de uma metrópole. O nosso trecho mais urbano, no sul da Califórnia, é inclusive onde temos a maior ocorrência de infrações.

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Representantes da Trilha Transcarioca durante a experiência de intercâmbio na Pacific Crest Trail. Foto: Eduardo Pegurier


Uma das principais bandeiras da Transcarioca é a geração de emprego e renda. Vocês possuem parcerias com os empreendimentos locais por onde passa a trilha?

A maior parte da trilha passa por lugares remotos, então nós não temos muitos estabelecimentos comerciais próximos à trilha, mas nós temos cidades estratégicas em que o trilheiro pode reabastecer e que são populares entre os montanhistas. Nessas cidades nós colocamos placas indicando que são “hiker friendly” (amigáveis aos montanhistas) e indicamos os lugares mais conhecidos por lá, como um restaurante que é famoso pela sua torta. Estamos iniciando um programa nos moldes do Trail Town Program (Programa Trilha na Cidade) para que a gente consiga desenvolver a nossa parceria com essas cidades. Com isso eles ganhariam placas e adesivos para colocar na vitrine dos seus estabelecimentos. A Appalachian Trail e a Continental Divide Trail já possuem seus programas de parceria. A PCT está um pouco atrasada nesse quesito e só começamos agora a desenvolver o nosso. Sem dúvida é uma excelente ferramenta para conectar as comunidades com os usuários da trilha. Na Arizona Trail, para dar outro exemplo, eles possuem um aplicativo e os negócios que se tornam parceiros da trilha aparecem no app em uma lista que mostra os serviços prestados por cada um, seja lavanderia, chuveiro, nas cidades por onde passa a trilha. Ou seja, eles estão usando a tecnologia para levar os usuários aos estabelecimentos que fizeram doações à associação da Arizona Trail. Esse é outro jeito de arrecadar dinheiro para manutenção da trilha. Na Continental Divide Trail, eles passam por áreas bem remotas, onde as cidades são muito pequenas e o que eles fazem, na verdade, é dar dinheiro para que a cidade construa placas e desenvolva material informativo sobre a trilha. Há vários tipos de modelo que você pode usar para estimular essa interação com a cidade e com os negócios locais.

Como funcionam os acampamentos ao longo da trilha?

As pessoas fazem a trilha por um final de semana, por uma semana ou por cinco meses e na maior parte da trilha você pode acampar em qualquer lugar, exceto em terras particulares, onde há placas indicando a proibição do camping. Mas em terras públicas você pode acampar em qualquer lugar onde haja espaço e isso gera alguns conflitos de uso. Há pessoas que gostam de acampar bem ao lado da trilha e quem é que gosta de trilhar e ver um bando de barracas margeando a trilha? Nós tentamos educar as pessoas para acamparem a uns 60 metros de distância da trilha, em superfícies duras, argilosas, em vez de acampar no meio de uma linda campina, em meio ao verde. Em algumas áreas de uso mais intenso, principalmente em alguns dos parques, você só pode acampar em áreas pré-estabelecidas ao camping, mas essa não é a regra para a maior parte da PCT. Outro local comum em que as pessoas costumam se aglomerar para acampar é perto de fontes de água e a vegetação ao redor desses cursos d’água está ficando altamente danificada por conta disso. Então nós precisamos colocar mais placas e investir ainda mais na educação dos usuários para tentar instruí-los a não acampar exatamente ao lado da fonte de água. E esse é um problema crescente porque agora existem aplicativos que contam “ei, esse é um excelente lugar para acampar, lindo e próximo da água”. Por isso nós estamos tentando trabalhar com os desenvolvedores desses apps para retirar indicações como essa e mostrar que, na verdade, esses são os piores lugares para acampar porque prejudicam o ecossistema.

Desde a criação da PCT houve mudanças de traçado?

A PCT foi planejada para percorrer a crista das montanhas e nós não mudamos substancialmente o traçado a não ser que a gente consiga comprar alguma área nova ou que um estudo indique a possibilidade de uma rota mais cênica ou sustentável. Às vezes a trilha passa por um determinado lugar porque foi mais fácil implementá-la ali, mas é um trecho que sofre muita erosão e se transformou em uma vala com o passar do tempo. Por vezes, fazemos essa mudança de traçado para que a trilha passe por uma área mais sustentável que exija menos manutenção. Mas nunca mudamos para muito longe do percurso original. A trilha começou a ser idealizada na década de 30 e o traçado atual ainda é quase o mesmo, com exceção das terras que conseguimos adquirir posteriormente. Atualmente, ainda existem 1.500 propriedades privadas no caminho da Pacific Crest Trail e nós queremos arrecadar fundos para comprá-las e possivelmente redesenhar a trilha de acordo com essas novas aquisições.

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Sinalização na Pacific Crest Trail, em trecho sobreposto à Tahoe Rim Trail. Foto: Eduardo Pegurier


Quais os maiores desafios de manter uma trilha tão extensa?

O maior desafio é conseguir engajar voluntários suficientes para fazer o trabalho de manutenção anual da trilha, como a poda das árvores e a desobstrução do caminho. Em 2016, nós somamos mais de 2 mil voluntários e mesmo assim só conseguimos cobrir metade da Pacific Crest Trail. A trilha é muito remota e alguns lugares demandam dois dias de caminhada só para serem alcançados, para então começar o trabalho. É complicado conseguir voluntários dispostos. Nessas áreas mais remotas, nós investimos mais na divulgação dos projetos de voluntariado e anunciamos pelo país inteiro. Investimos também mais tempo da nossa equipe para engajar os voluntários a irem para essas áreas. Fazemos isso principalmente em áreas com populações menores como o norte da Califórnia. E às vezes os nossos voluntários viajam para esses locais, tanto por dedicação ao voluntariado, quanto pelo interesse de conhecer e trabalhar em outras partes da trilha.

Existe ainda a demanda extra causada por desastres naturais que afetam a trilha, como incêndios. Neste verão nós tivemos quase 500 quilômetros de trilha fechadas por causa do fogo, tanto natural quanto causado pelo homem. Todo ano temos incêndios na trilha e precisamos atuar para restaurar as áreas atingidas, cortar os troncos caídos, coisas que exigem grande esforço. E nós temos ainda deslizamentos, tempestades e alagamentos que também afetam a manutenção da trilha. Ao mesmo tempo precisamos pensar em alternativas para tornar o traçado mais sustentável e cênico. É duro.

Qual a estratégia para tentar conseguir mais voluntários?

Essa é uma pergunta difícil. Nós usamos muito e-mails, mídias sociais, eventos de divulgação onde montamos uma mesa com informações sobre a PCTA. Quando alguém que está trilhando encontra um voluntário, ele recebe um cartão e um convite para se juntar ao voluntariado. Nós também colocamos matérias em jornais sobre projetos de voluntariado. Existem diferentes estratégias para atrair mais voluntários e esse ainda é um desafio.

Quais as áreas com maior concentração no voluntariado?

A maioria dos voluntários são oriundos de locais onde há muito tempo existem grupos de apoio à trilha. Houve um “thru-hiker” (expressão que denomina os caminhantes que completam uma longa trilha em uma empreitada contínua), que depois de percorrer a PCT inteira, iniciou um grupo em Portland, Oregon. Lá eles conseguem acessar as seções da trilha com facilidade e assim são capazes de envolver grupos grandes nas ações de voluntariado. No sul da Califórnia também. Onde há maiores concentrações populacionais, a tendência é termos mais facilidade para conseguir fazer o manejo da trilha. Assim como nos locais onde temos membros da nossa equipe responsáveis pelo programa de voluntariado, que podem liderar os voluntários.

Qual o tamanho da equipe da Pacific Crest Trail Association?

Somos apenas 31 funcionários.

Mais de 2 mil voluntários são muitas pessoas para gerir. Como vocês fazem isso?

Nós temos o apoio de parceiros, outras ONGs que atuam na PCT para nos ajudar com essa logística. Mas, principalmente, nós treinamos os voluntários para eles próprios serem líderes e guiarem outros voluntários. Se você tem um voluntário recorrente que já conhece os trâmites, as normas de segurança e as técnicas necessárias, então nós o capacitamos para liderar outras pessoas. Dessa forma, nós multiplicamos os nossos esforços e a nossa capacidade de gestão. Nem sempre são membros da equipe que estão na liderança. O que queremos são voluntários guiando voluntários.

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Paisagem em um dos trechos da Pacific Crest Trail. Foto: Eduardo Pegurier


Como é a parceria da Pacific Crest Trail Association com o governo americano?

O governo americano é responsável por um terço dos nossos fundos, os outros dois terços advêm de doações. Mas, tudo que fazemos é em parceria com o governo federal. Trabalhamos muito próximo deles, até porque não podemos fazer o nosso trabalho sem eles. Essa parceria existe desde os primórdios da trilha, já está bem estabelecida e possui o respaldo legal do National Trail System Act (Lei do Sistema Nacional de Trilhas), decretado em 1968.

Você teve a chance de trilhar um pouco na Trilha Transcarioca, como foi a experiência?

Sim, eu percorri dois trechos, um no Parque Estadual da Pedra Branca e outro no  Parque Nacional da Tijuca. Eu achei lindo, consegui ver paisagens incríveis e conhecer alguns dos voluntários apaixonados da trilha. Conhecer os voluntários para mim foi um dos destaques, porque adoro trabalhar com eles.. A trilha estava bem sinalizada, eu sabia que não ficaria perdida se estivesse sozinha. Há algumas diferenças com relação à Pacific Crest Trail, principalmente com relação à adequação da trilha para o uso de cavalos, o que é permitido na PCT. Houve trechos íngremes ou em que era necessário passar por cima de troncos, coisas que nós não podemos ter na PCT para que os cavalos possam transitar. Trilhas diferentes possuem modos diferentes de operação e públicos diferentes. Então, isso não foi um problema, pelo contrário, gostei muito da experiência.

  • Duda Menegassi

    Jornalista ambiental especializada em unidades de conservação, montanhismo e divulgação científica.

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Comentários 1

  1. Excelente matéria, estive presente na palestra, foi muito esclarecedora. Parabéns pela bela matéria.