Reportagens

Especialistas criam sistema para ajudar na redução de invasões biológicas

A ferramenta digital vai indicar aos gestores de unidades de conservação as prioridades no manejo de plantas e animais não-nativos

Marcos Furtado ·
25 de novembro de 2020 · 3 anos atrás
Pico das Agulhas Negras, no Parque Nacional do Itatiaia. Pesquisa na unidade resultou na criação da ferramenta. Foto: Wikiparques.

A competição com espécies nativas e os danos causados aos ecossistemas fazem com que invasões biológicas estejam entre as maiores causas de perda de biodiversidade no mundo. Com o objetivo de diminuir esses danos, um grupo de especialistas está desenvolvendo o Sistema de Gerenciamento de Espécies Exóticas Invasoras em Unidades de Conservação (Sigeei) para aumentar a eficiência na transferência de plantas e de animais não-nativos em unidades de conservação. Resultado de pesquisas realizadas pela Universidade Federal de Lavras (UFLA), Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e pelo Instituto Hórus, a ferramenta digital vai indicar quais espécies invasoras devem ser manejadas com prioridade. A previsão de lançamento é para o início de 2021.

A demanda para a criação de uma ferramenta que ajudasse no controle de invasões biológicas é antiga. Em 2007, Sílvia Ziller, fundadora e diretora-executiva do Instituto Hórus, começou a construir planilhas com informações coletadas em campo para dar uma visão completa aos gestores de unidades de conservação com grande número de espécies exóticas.

A prioridade para o manejo de plantas e animais não-nativos é definida nesse método a partir do cruzamento de informações sobre a quantidade da população, o nível de reprodução, a localização e a ameaça de invasão. Os resultados são organizados, levando em consideração o tamanho de cada unidade de conservação. “A gente organiza isso com os gestores para ficar com uma logística boa de movimentação dentro da unidade de conservação”, conta Sílvia.

A Dra. Michele Dechoum, professora de ecologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e colaboradora do Instituto Hórus, compara a metodologia de controle de espécies exóticas e invasoras com a de combate a incêndios que começa pelos menores pontos de fogo. “A lógica de controle de invasor é uma lógica muito parecida com a de combate ao fogo. Ao invés de começar por núcleos muito grandes, onde as invasões são muito avançadas, a lógica é de começar pelos focos iniciais. As vezes onde o invasor acabou de chegar. No caso de plantas, ela nem está reproduzindo ainda e você acaba com esses focos iniciais de invasão e parte para os problemas mais graves depois” explica.

A transformação desse método em uma ferramenta digital aconteceu por meio de uma pesquisa feita no Parque Nacional do Itatiaia (PNI), localizado entre os estados do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Alunos do curso de pós-graduação de ecologia da UFLA, de Minas Gerais, aplicaram o método para definir a ordem de prioridade no manejo de 50 espécies exóticas (seis animais e 44 plantas), encontradas em quatro pontos diferentes de Itatiaia. Com relação à fauna, o trabalho identificou a invasão de lobo (Canis Lupus), de lebre-europeia (Lepus europaeus) e de javali (Sus scrofa). Na flora, a jiboia (Epipremnum aureum), a maria-sem-vergonha (Impatiens walleriana) e o capim-mombaça (Megathyrsus maximus) foram algumas das espécies não-nativas destacadas no estudo.

“Esse esquema dá a visão de que você pode escolher algumas prioridades e com isso ter uma melhor efetividade em seu manejo, tanto em termos de recursos como em termos de resultado e de restauração de áreas naturais que ficam livres dessas espécies”, analisa Sílvia.

A espécie invasora Pinus elliottii, nativa do Hemisfério Norte, atrapalha a paisagem do Parque Natural Municipal das Dunas da Lagoa da Conceição. Foto: Rafael Barbizan.

Além de aumentar a eficiência do trabalho de gestores em unidades de conservação, esse método reduz os gastos com manejo de plantas e de animais invasores. De acordo com dados publicados na Estratégia Nacional sobre Espécies Exóticas e Invasoras, do Ministério do Meio Ambiente, estima-se que a invasão biológica gera mundialmente um gasto anual médio de  US$ 1,4 trilhão, quase o PIB brasileiro registrado em 2019.

Com o aumento das mudanças climáticas e a degradação de ecossistemas, a tendência é que mais invasões biológicas aconteçam. Rafael Zenni, professor de ecologia da UFLA, considera que os dois elementos, juntos, incentivam a criação de ambientes propícios para a reprodução dessas espécies que já invadiram e maiores oportunidades para a introdução bem-sucedida de novos animais e plantas não-nativos.

“Essas sinergias são bem importantes porque a gente tem duas situações principais ocorrendo. Uma é que com mudanças climáticas e com a simplificações do ecossistema a gente tem uma facilitação no estabelecimento de (novas) espécies exóticas. A outra coisa é que essas mudanças causadas nos ecossistemas também facilitam a proliferação daquelas que já estão aqui e talvez não tinham as condições necessárias para conseguir se dispersar”, afirma.

Cerca de 200 unidades de conservação federal apresentaram em seus planos de manejo disponíveis no site do ICMBio, em 2018, a presença de alguma espécie invasora. Este levantamento se encontra no artigo “Invasive species and the Global Strategy for Plant Conservation: how close has Brazil come to achieving Target 10?” (Espécies invasoras e a Estratégia Global para Conservação de Plantas: quão perto está o Brasil de atingir a Meta 10?, em tradução livre), realizado por Rafael Zenni, Michele Dechoum e outros pesquisadores.

Javali (Sus scrofa) registrado em armadilha fotográfica. A única espécie animal cuja caça é permitida por lei hoje no Brasil. Foto: Clarissa Rosa.

Observando a demanda por soluções para este problema, Rafael teve a ideia de criar um software para tornar o serviço de priorização para a remoção de espécies exóticas e invasoras disponível para todas as unidades de conservação.

“A ideia do nosso sistema de priorização e de gerenciamento é poder dar esse subsídio técnico e científico para que os gestores saibam onde fazer o controle de espécies exóticas e invasoras que tenha maior chance de sucesso, com os recursos que eles têm disponíveis”, afirma Rafael.

Para usar o sistema, o gestor vai precisar preencher uma série de tabelas com informações sobre as espécies não-nativas coletadas nas unidades de conservação. A partir da leitura dos dados, a ferramenta vai apresentar uma lista da maior a menor prioridade para executar o manejo.

O professor destaca que o objetivo é tornar essa ferramenta uma referência para a consulta de forma fácil de informações sobre espécies exóticas e invasoras. Para pesquisar informações sobre uma espécie, “o gestor não precisa passar muito tempo coletando ou analisando dados. Ele precisa simplesmente da identidade da espécie e de algumas observações rápidas de campo. É um sistema bastante simples e prático de usar e que pode ajudar bastante na otimização da gestão das unidades de conservação”, explica.

Capacitações e tutoriais para ensinar gestores a usar o Sigeei estão sendo desenvolvidos, mas por causa da pandemia ainda não há uma previsão de quando estarão disponíveis.

Nativas do Oceano Pacífico, o coral-sol se estabeleceu na costa do estado do Rio. Espécie invasora ameaça a biodiversidade da região de Ilha Grande, no município de Angra dos Reis. Foto: Wikipédia.

O sistema ainda contará com dois mecanismos de avaliação de dados. Esta função vai impedir que eventuais informações incorretas sejam propagadas na plataforma. “Toda informação que entra no Sigeei será avaliada por pelo menos dois especialistas. Então é uma maneira que a gente tem de minimizar esses riscos, mas a gente também vai sugerir nos nossos tutoriais outros mecanismos, como a consulta a especialistas em taxonomia e pesquisadores para a confirmação da identidade da espécie ou situação populacional”, conta Rafael.

A ferramenta digital, no entanto, não minimiza os cuidados que a população precisa ter para evitar a introdução de novas espécies exóticas e invasoras. Muitas vezes sem perceber, as pessoas levam sementes de plantas na roupa ou em equipamentos para um habitat diferente da sua origem. A invasão também é muito facilitada quando animais domésticos não-nativos são soltos na natureza. O tráfico ilegal de animais selvagens é outro fator que dificulta a prevenção de invasão biológica.

A cultura brasileira de valorizar o que vem de outros países é um dos motivos que mais contribui para a proliferação de fauna e flora estrangeira por aqui. “Tem muito essa questão cultural no Brasil das pessoas valorizarem aquilo que é de fora. E a gente está em um momento que precisamos valorizar e cuidar do que é nosso. É a nossa biodiversidade que vai fazer a gente funcionar melhor em termos dos serviços ambientais, de ter água, de ter o melhor clima, de ter melhor resistência contra toda essa mudança climática que está acontecendo”, alerta Sílvia.

 

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  • Marcos Furtado

    Escreveu para ((o))eco, Estadão, Folha de SP, Colabora. Ganhou o Prêmio Santander Jovem Jornalista e teve o 3º lugar em concurso do ICFJ

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