Na última semana, a Secretaria de Estado do Ambiente e Sustentabilidade do Rio de Janeiro (SEAS) suspendeu abruptamente o contrato do Programa Estadual de RPPNs – as Reservas Particulares do Patrimônio Natural. A decisão, feita sem maiores justificativas pelo órgão, rompeu um contrato já em execução, com previsão de término para janeiro de 2021, e uma iniciativa que começou em 2008 e já apoiou a criação e manutenção de 91 RPPNs no estado do Rio, responsáveis pela proteção integral de mais de 8 mil hectares de Mata Atlântica. Pressionado pela sociedade e pelos próprios proprietários de RPPN, ontem (04/04) o Secretário de Ambiente e Sustentabilidade, Altineu Côrtes, mudou o tom e passou a alegar, em conversa com o deputado estadual Carlos Minc (PSB/RJ), que haveria apenas uma redução de 25% do orçamento do projeto. Não foi feito, entretanto, nenhum comunicado oficial sobre a nova decisão.
O Programa é financiado por recursos de compensação ambiental através do Fundo da Mata Atlântica (FMA) e por isso precisa ser previamente aprovados pela Câmara de Compensação Ambiental, um colegiado com participação de representantes de órgãos federais, estaduais, municipais e instituições da sociedade civil. No começo de março, o governador do Estado do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, submeteu o Projeto de Lei Nº 2203/2020 que pedia o redirecionamento temporário “da totalidade dos recursos existentes no Fundo da Mata Atlântica do Rio de Janeiro (FMA-RJ), para a implementação de medidas urgentes de prevenção e combate ao Coronavírus”, mas o PL foi vetado pela Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) antes mesmo da votação, que seria na última quarta-feira (01/04).
O não andamento do Projeto de Lei, que encerraria a fonte de recursos do Programa de RPPNs – e outros projetos ambientais no estado – levanta o questionamento sobre o real motivo do fim do programa pela Secretaria. “Eu entendo que essa desmobilização do projeto é irregular porque quem decide o destino dos recursos da compensação ambiental não é o Secretário [de Ambiente e Sustentabilidade] ou o presidente do Inea [Instituto Estadual do Ambiente], quem legalmente decide o destino desse recurso é a Câmara de Compensação Ambiental”, analisa o ex-diretor de Biodiversidade e Áreas Protegidas do Inea, André Ilha. Do ponto de vista jurídico, mesmo a redução orçamentária proposta pelo Secretário precisaria passar pelo colegiado do Fundo da Mata Atlântica.
André explica que foi pego de surpresa pela notícia do encerramento do programa, uma vez que o projeto – que está na sua Fase 5 – havia sido aprovado pela Câmara, o edital feito e a empresa ganhadora já estava em operação desde janeiro de 2019. ”As pessoas já trabalhando e veio a notícia de que isso seria desmobilizado”, conta André, que atualmente é diretor do Grupo Ação Ecológica (GAE), entidade que ocupa um dos assentos na Câmara de Compensação Ambiental, na vaga da rede de ONGs da Mata Atlântica. “Além da possível e provável ilegalidade da decisão, há o fato de que vai prejudicar o esforço de compensação ambiental que deve ser comum a todos os entes públicos e a sociedade como um todo”, acrescenta.
Em resposta à reportagem de ((o))eco, a Assessoria de Imprensa do Instituto Estadual do Ambiente (Inea) informou por e-mail na sexta-feira (03) que “o Programa de incentivo à criação de Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPNs) encontra-se em plena execução e, no momento, passa por uma readequação. O órgão ambiental estadual reitera que apoia essa iniciativa, que é fundamental para a proteção da Mata Atlântica”.
Um integrante da equipe do programa, que pediu para não ser identificado, rebate a afirmação: “o projeto estava em execução desde janeiro de 2019 e o contrato era de 24 meses, iria até janeiro de 2021 e do nada veio a ordem direta da SEAS para cancelar o contrato do programa de RPPN e fazer a rescisão antecipada. Nossos produtos estão entregues e aprovados, não é uma questão técnica, simplesmente cortaram o projeto”. Após a mudança no posicionamento da SEAS, ((o))eco voltou a entrar em contato com o integrante, que reforçou que “a única ordem oficial que tivemos, até o momento, é de cancelamento. Toda a equipe está de aviso prévio”, sobre a redução, replicou “não entendo como o projeto irá encarar a redução de 25% do orçamento, já que a maior parte do recurso é para pagar serviços técnicos especializados”.
A destinação dos recursos de compensação ambiental do Fundo da Mata Atlântica não cabe à Secretaria, o que levanta dúvidas sobre a legalidade da decisão e também sobre os objetivos por trás dela, uma vez que esses recursos de compensação ambiental não passam pelo orçamento da Secretaria, nem mesmo do Governo do Estado. Do ponto de vista jurídico, a rescisão pode ser revertida até o dia 10 de abril, depois disso, somente com um novo processo seletivo através da Câmara de Compensação Ambiental – o que pode demorar mais de 6 meses.
Desde que surgiu, há 12 anos, o Programa Estadual de RPPNs opera com recursos de compensação ambiental para contratar as equipes técnicas que apoiam a criação de RPPNs, como uma forma de suprir a própria carência de recursos humanos do Inea para atender a essa demanda.
De acordo com dados disponibilizados no site do Fundo da Mata Atlântica, a Fase 5 do Projeto de RPPNs foi contratada por um valor de R$ 2.453.448 e menos de 40% (R$ 809.638) desse orçamento teria sido executado até o momento. Esse montante ajudaria na criação de 24 novas RPPNs e a elaboração de 8 planos de manejo de RPPNs já criadas. O programa estava em execução há 9 meses e teria ainda até janeiro de 2021 para desenvolver as ações planejadas.
André Ilha conta que o Núcleo de RPPNs nasceu em 2008, quando ele ainda era presidente do antigo Instituto Estadual de Florestas, órgão que depois virou o Inea. “Na época, nós percebemos uma demanda reprimida de pessoas no Rio de Janeiro querendo criar RPPNs nas suas propriedades ou em parte dela e, na época, o processo era exclusivamente em âmbito federal e era extremamente lento”, lembra. “Quando nós criamos o núcleo, alocamos profissionais e equipamentos para que, quem entrasse com um pedido de criação de RPPN no estado fosse bem atendido e o processo corresse da forma mais rápida possível para que a gente tivesse aquele pedacinho de terra preservado para perpetuidade. E foi um sucesso absoluto. O serviço apoiou a criação de 91 RPPNs”, comemora André.
O proprietário César Raibert está na etapa final do processo de criação da sua RPPN e conta que foi “pego de surpresa, assim como todos os outros rppnistas” – como são apelidados os donos das reservas particulares. “Estou na etapa final, da averbação da escritura, os próximos passos seriam o reconhecimento do Inea através de um Decreto Oficial e com isso daríamos início à elaboração do Plano de Manejo da reserva, que é um trabalho denso e essencial que eles fazem com a gente para nós entendermos como iremos gerenciar aquela área protegida. Essa etapa está interrompida. Fomos pegos de surpresa. E agora estou perdido porque quem sempre ajudou, orientou e praticamente liderou todo o processo para criação da reserva foi essa equipe e hoje eu não sei pra onde ir. Fico desorientado como rppnista”, conta César, que planeja uma parceria da sua futura RPPN com a Área de Proteção Ambiental de Macaé de Cima (RJ) para ações de educação ambiental com as escolas da região de Lumiar, na serra fluminense, onde fica localizada sua reserva.
Os relatos dos proprietários comprovam que a ajuda da equipe do Programa Estadual de RPPNs é essencial para que os interessados consigam de fato implementar suas reservas. “Eu não sabia que era tão difícil criar uma RPPN. Foi através do Inea e do Programa que eu recebi ajuda nesse processo, que já tem 2 anos. Eles ajudaram com os documentos, com o mapeamento e com os custos do georreferenciamento”, detalha César.
O proprietário Vicente Bastos possui 5 RPPNs no município de Nova Friburgo que somam 76 hectares de proteção à Mata Atlântica e reforça a dificuldade de fazer o processo por conta própria “Não é fácil preencher todos os requisitos para criação de uma RPPN, se eu estivesse sozinho nessa, não vou dizer que não faria nenhuma, mas com certeza não faria cinco”, brinca. “Ter todo um escritório do Inea voltado para esse tema é fundamental. É muito difícil você imaginar que forças autônomas do mercado vão gerar RPPNs, porque os proprietários vão estar mal assistidos e sozinho é difícil de fazer”, pondera Vicente.
“Criar uma RPPN não gera rendimento nenhum, pelo contrário, é um grande risco porque você assume o compromisso de preservar aquele espaço e isso implica em vigilância porque ainda há gente que caça, ocorrem incêndios, naturais e artificiais, não é fácil. O programa não ajuda apenas na criação de novas RPPNs, mas também na preservação das existentes”, acrescenta. Vicente cita ainda o exemplo do Plano de Manejo, documento norteador de gestão para qualquer unidade de conservação, que inclui o zoneamento da área, o levantamento de fauna e flora, além das diretrizes sobre o que pode ou não ser feito na unidade. “Isso exige recurso. Sem o apoio do Programa de RPPNs a maioria dos proprietários não consegue fazer e não adianta só criar as RPPNs e não estruturá-las”, ressalta o proprietário.
Além de todo o apoio técnico, o Programa de RPPNs atua na sensibilização de donos de terra, com uma mobilização itinerante que percorre cidades para conscientizar as pessoas sobre o que é e qual a importância de uma RPPN e faz o Cadastro Ambiental Rural (CAR) de todas as reservas reconhecidas pelo Inea.
As Reservas Particulares do Patrimônio Natural são unidades de conservação de gestão privada, criadas, portanto, a partir do interesse dos próprios donos das terras e mantidas pelos mesmos. O título de RPPN é perpétuo, ou seja, uma vez reconhecida como reserva, a propriedade passa a ser uma área de proteção ambiental permanentemente, mesmo que seja vendida ou doada. A estratégia de investir na criação de RPPNs se provou peça-chave na preservação da Mata Atlântica, onde cerca de 80% do bioma se encontra em terras privadas.
A meu ver eles teriam que incrementar o programa e não eliminá-lo. As RPPNs são instrumentos excepcionais para pensar na venda de crédito de carbono, por exemplo, e outros serviços ecossistêmicos, porque são reservas permanentes de proteção integral. E você poderia avançar esse programa no sentido de torná-lo uma fonte de serviços ambientais, algo que está sendo cada vez mais valorizado no mundo”, analisa Vicente.
Diante de todo sucesso do programa, que é referência nacional, André Ilha questiona: “Nós temos os proprietários interessados em colaborar, nós temos o serviço implantado e funcionando, e, de repente, nada disso vale e desfaz tudo? Por que razão? Com que argumento?”. E completa, “eu espero que o Secretário Altineu Côrtes e o presidente do Inea revejam imediatamente essa posição e deem o devido valor a esse serviço que tão bons frutos gerou ao longo de sua existência e que, pelo contrário, deem mais força aos proprietários no estado do Rio de Janeiro para que sigam motivados a preservar as suas propriedades para o bem da conservação da Mata Atlântica para todo sempre”.
Em sua conversa com o Secretário de Ambiente e Sustentabilidade, Altineu Côrtes, o deputado estadual Carlos Minc também defendeu a continuidade do Programa Estadual de RPPNs. “O programa está vinculado ao Fundo da Mata Atlântica e como o governo ia liquidar esse fundo, o dinheiro ia pro espaço. Como conseguimos reverter isso, argumentei com o Secretário que como salvamos o fundo, não poderíamos penalizar as RPPNs”. O deputado reiterou ainda a posição estratégica das reservas particulares para conservação da natureza, “é a coisa mais barata para o governo porque é o proprietário que cuida e assume os custos da reserva. O Programa é para facilitar e apoiar, mas comparado com os custos das unidades de conservação públicas, o governo não gasta quase nada. É um programa que custa pouco e dá muito resultado”.
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Miopia é o que define a visão de nossos governantes.
Desmobilizar o programa das RPPNs sem ter nenhum argumento justificável, enfatiza políticas degenerativas.
O propósito de políticas como está é vender e, ou, lotear nossas florestas a preço de banana.
Em dados de pesquisa no Atlas das UCs sobre área degradadas e área protegidas no estado do RJ, de 13%, conseguimos chegar em 17% de áreas protegidas de um total de 100%. Acredito que o programa RPPN contribuí para elevar e tornar estás áreas mais verdes. Sem falar nos projetos sociais levando a sério a educação ambiental, reintrodução de animais silvestres. Pude participar e vi o sucesso de proprietários construindo o turismo ecológico de ponta. Convites e representatividades em projetos com a IDA – NASA de observatório (Dark Sky Park).
Triste constatação, uma vez que o Programa visa facilitar e apoiar o trabalho referente à biodiversidade e desenvolvimento ambiental e comparado com os custos das unidades de conservação públicas, o governo não gasta quase nada. É um programa que custa pouco e dá muito resultado.
Num momento onde se deveria privilegiar o cuidado com a preservação ambiental, isso parece « um verdadeiro tiro no pé »😥😥
Triste constatação, uma vez que o Programa visa facilitar e apoiar o trabalho referente à biodiversidade e desenvolvimento ambiental e comparado com os custos das unidades de conservação públicas, o governo não gasta quase nada. É um programa que custa pouco e dá muito resultado.
Num momento onde se deveria privilegiar o cuidado com a preservação ambiental, isso parece « um verdadeiro tiro no pé »😥😥