Reportagens

Documentário relembra negligência de Jair Bolsonaro na Amazônia na pandemia

O filme “Quando falta o ar”, de Helena Petta, acompanhou o trabalho de agentes e médicos do SUS durante a crise da Covid-19; a médica Eli Baniwa esteve na linha de frente

Débora Pinto ·
28 de outubro de 2022 · 1 anos atrás

Durante a pandemia de Covid-19, que teve seus piores momentos entre abril de 2020 e dezembro de 2021, o território amazônico viu parte de sua população sufocar, tanto nas regiões urbanas quanto mata adentro. Pelos rios, embarcações levavam doentes de diferentes regiões para as capitais, em busca de tratamento. A importância do SUS (Sistema Único de Saúde) ficou explícita, ainda que as políticas públicas não tenham conseguido evitar os momentos de colapso e suas decorrentes milhares de mortes, como o ocorrido em Manaus, em janeiro de 2021, quando, literalmente, faltou ar na Amazônia.

Faltou ar em uma região considerada pulmão do mundo por muitos. Ainda que hoje se saiba que a Amazônia não é responsável pela maior parte de produção do oxigênio respirável do planeta – tarefa cumprida pelos seres dos oceanos -, a associação da maior floresta do mundo com o ato de respirar segue no imaginário. Um sinal simbólico já que sabemos que, ali, acontecem trocas ecossistêmicas fundamentais para a manutenção da vida do planeta.

A documentarista e médica infectologista Helena Petta acompanhou de perto parte desse momento histórico, como diretora do documentário “Quando falta o ar”, vencedor do Festival Internacional de Documentários “É Tudo Verdade”, de 2022. Em diferentes regiões do país, a produção acompanhou o trabalho realizado pelos profissionais de saúde da linha de frente do SUS durante a pandemia, em contextos que vão de comunidades ribeirinhas a presídios. 

Na Amazônia, o filme documentou as incursões de agentes de saúde da família na comunidade ribeirinha de Igarapé-Mirim, no nordeste do estado do Pará, e também, no município de Castanhal, próximo à capital Belém.

Para Helena, acompanhar esse trabalho ampliou o seu olhar sobre a complexidade da saúde na Amazônia, onde os conhecimentos ancestrais dos indígenas precisaram se somar à medicina tradicional no intuito de salvar vidas. “Eu percebi a importância da comunicação entre esses mundos a partir do trabalho que acompanhamos mais de perto em Castanhal, que foi o da médica Eli Baniwa, que é indígena”, explica. 

Após essa experiência, a documentarista afirma se sentir especialmente decepcionada com o massivo apoio da população amazônica a Jair Bolsonaro no primeiro turno das eleições. “O que nós vimos não foi o abandono do Estado durante a pandemia, mas uma política voltada para a devastação. Embora parte da população pareça ter consciência da necessidade de mudanças, ainda assim é muito importante esse resultado depois de tudo que aconteceu. Nós precisamos lembrar que faltou ar na Amazônia”, sentencia.

Povos indígenas foram sufocados pela Covid-19

A população indígena amazônica foi afetada de modo brutal pela pandemia, e segue sofrendo as consequências da doença. Além da lentidão no planejamento e consolidação de ações que pudessem atender a essas populações, o fato de Terras Indígenas contarem com invasores, como os garimpeiros ilegais, trouxe grandes dificuldades para que as comunidades conseguissem se manter longe do vírus. 

Com uma cultura marcada pelo convívio coletivo e diante da importância dos mais velhos para a manutenção das estruturas culturais, os povos precisaram lidar com uma situação alarmante sem políticas públicas capazes de minimizar esses efeitos.

Cena de “Quando falta o ar”, gravado na pandemia de Covid-19. Foto: Reprodução

Em abril de 2020, uma jovem  da etnia Kocama foi a primeira indígena aldeada confirmada com o vírus. Ela teria sido infectada após contato com um médico do SESAI (Secretaria Especial de Saúde Indígena) em Santo Antônio do Içá, no Amazonas. No mesmo mês foi registrada a morte de um jovem  indígena na TI Yanomami, em Roraima. Ainda neste período, em 22 de abril, a  Instrução Normativa da Funai 9/2020 alterou regras e permitiu que não indígenas permanecessem dentro de TIs com limites já conhecidos. 

Como o recebimento do auxílio emergencial podia ser realizado apenas via internet ou presencialmente, jovens indígenas passaram a sair das aldeias para buscar o recurso financeiro necessário para a manutenção de muitas comunidades. Ao retornarem, aqueles que se infectaram nas aglomerações e filas acabavam se transformando em fonte de contágio.

Em junho de 2020, quando o vírus já havia se espalhado por centenas de comunidades indígenas, a Funai (Fundação Nacional do Índio) havia gasto menos da metade (39%) dos 11 milhões de recursos emergenciais para a proteção dos povos originários.

Em janeiro de 2021, após já ter passado por uma recorde de mortes pela Covid-19 por conta da dificuldade de atendimento às populações indígenas e ribeirinhas que se deslocaram até a capital em busca de uma estrutura para tratamento a primeira onda da doença, a cidade de Manaus (AM), maior capital amazônica, vivenciou um dos momentos mais trágicos da pandemia no país, com um aumento vertiginoso de mortos e a falta de oxigênio impedindo que vidas fossem salvas em hospitais

Em março do mesmo ano, o STF (Superior Tribunal Federal) precisou intervir para que os indígenas em contexto urbano pudessem ter prioridade, assim como os aldeados, no processo de vacinação, mesmo diante da comprovada maior susceptibilidade dessas populações ao agravamento da doença. 

De acordo com dados compilados pelo Comitê Nacional de Vida e Memória Indígena da Apib (Associação dos Povos Indígenas do Brasil), 162 dos 305 povos indígenas brasileiros registraram casos da doença, com um total de 75668 contaminados. Os indígenas que morreram em decorrência da Covid-19, segundo o mesmo levantamento, somam 1324 vidas. Até  o dia 27 de outubro de 2022, conforme apontam os dados oficiais, 689.962 brasileiros morreram em decorrência da doença.

Área de garimpo ilegal dentro da Terra Indígena Munduruku, no Pará. Foto: Vinícius Mendonça/Ibama.

A pandemia não afetou, porém, a ação de garimpeiros, grileiros e madeireiros. Segundo levantamento realizado pelo Instituto Socioambiental (ISA), nas TIs Trincheira-Bacajá, Kayapó e Munduruku, no sudoeste do Pará, o desmatamento aumentou, respectivamente, 827%, 420% e 238%, entre março e julho de 2020. Essas áreas integram as sete terras homologadas (com demarcação concluída) mais invadidas da Amazônia Legal no período, somadas às TIs Karipuna e Uru-Eu-Wau-Wau (RO), Araribóia (MA) e Yanomami (AM/RR). No intercurso de chegada e crescimento da epidemia no país, foram destruídos 2,4 mil hectares de florestas nas sete áreas.

Ancestralidade e medicina

Hywyxy Baniwa, de nome não índigena Eliniete Fidelis e que se apresenta como Eli Baniwa, é proveniente do povo Baniwa do Rio Negro, no Amazonas. Médica especialista em Medicina da Família e da Comunidade, atua no Hospital de Emergência do município de Castanhal, no Pará. Ela foi uma das agentes de saúde retratadas e a protagonista do roteiro que acompanhou a linha de frente durante a pandemia na Amazônia no documentário “Quando falta o ar”.

“Quando realmente iniciei, eu, que era recém formada, mesmo rodeada de profissionais experientes, vivi um pesadelo que parecia não ter fim. Havia a sensação de impotência diante do desconhecido, vendo pessoas morrerem, famílias desesperadas e nós sem termos um direcionamento único para o enfrentamento de uma doença, da qual nós quase nada sabíamos.  Buscamos dar o nosso melhor mas tínhamos que improvisar pela falta de insumos. Mesmo sendo apenas eu e minhas duas filhas na selva de pedra, eu decidi não me isolar e assumi a minha responsabilidade, indo para a linha de frente”, explica em entrevista ao ((o)) eco.

“O pior para mim era, mesmo vivendo uma dor que era de tantos, ainda precisar lidar com o negacionismo em relação à vacina A minha luta não era só usando os conhecimentos médicos que eu tinha adquirido na faculdade mas, também, tratava-se de uma luta mental. E nessa hora, eu contei muito com a ajuda da minha ancestralidade”,

Eli Baniwa, médica e indígena

Eli perdeu o pai para a doença e relembra que o Natal de 2021 foi vivido de forma especialmente dolorosa. “O pior para mim era, mesmo vivendo uma dor que era de tantos, ainda precisar lidar com o negacionismo em relação à vacina A minha luta não era só usando os conhecimentos médicos que eu tinha adquirido na faculdade mas, também, tratava-se de uma luta mental. E nessa hora, eu contei muito com a ajuda da minha ancestralidade”, conta. Ela afirma que, em casa, além dos cuidados que sabia serem necessários para a prevenção à doença, tomava chás de ervas, preservando para si as práticas  de cura pertencentes à sua cultura.

Esse conhecimento foi fundamental para oferecer, segundo ela, um tratamento que levasse em conta as necessidades indígenas diante da doença.  Eram necessários os medicamentos alopáticos e tratamentos  da medicina ocidental sem ignorar as especificidades culturais e sagradas dos pacientes. 

Ela lembra, porém, a falta de uma política governamental consistente de apoio às populações indígenas e o trabalho realizado por organizações como a Apib e a Coiab, inclusive na distribuição de panfletos em línguas indígenas buscando ampliar a possibilidade de prevenção. No estado do Pará, a Secretaria de Saúde criou políticas específicas para assegurar leitos para os indígenas. Na guerra de narrativas, Eli aponta ter sentido uma especial dificuldade para lidar com o negacionismo proveniente das igrejas evangélicas apoiadoras do presidente Jair Bolsonaro (PL). 

Quando perguntada sobre o apoio recebido por Bolsonaro na Amazônia no primeiro turno das eleições presidenciais, a médica mostra-se especialmente indignada. “É triste e decepcionante ver pessoas apoiando Bolsonaro, um governo que é contra a população indígenas, muitas influenciados pelas igrejas e pelos seus patrões. Mas quando vejo pessoas estudadas e entendidas apoiando uma pessoa que fez brincadeira com a população de seu país, que apoia a morte, prefiro pedir ajuda aos ancestrais para me manter firme e saudável. Não consigo aceitar que alguns indígenas, mesmo com tudo o que aconteceu, ainda votem em Bolsonaro”, finaliza.

O filme “Quando falta o ar” segue sendo apresentado em festivais em todo o país, com programação que pode ser conferida na página do projeto no @quandofaltao ar no Instagram. Confira o trailer do filme.

  • Débora Pinto

    Jornalista pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero, atua há vinte anos na produção e pesquisa de conteúdo colaborando e coordenando projetos digitais, em mídias impressas e na pesquisa audiovisual

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