Reportagens

Esvaziamento e incógnita: o destino incerto da APA de Guapimirim e do Núcleo Teresópolis

Sociedade se mobiliza contra Núcleo de Gestão Integrada de Teresópolis enquanto permanece a incerteza de como será o funcionamento e gestão das unidades de conservação

Duda Menegassi ·
31 de maio de 2020 · 5 anos atrás
A APA Guapimirim protege o último manguezal preservado da Baía de Guanabara, na região metropolitana do Rio de Janeiro. Foto: Ricardo Gomes/Instituto Mar Urbano

Ao longo da última semana, a sociedade civil se mobilizou em defesa da Área de Proteção Ambiental (APA) de Guapimirim, localizada às margens da Baía de Guanabara, na região metropolitana do Rio de Janeiro. As manifestações, feitas por abaixo-assinado e campanha de vídeos, criticam a criação do Núcleo de Gestão Integrada (NGI) de Teresópolis, que centraliza a gestão de cinco unidades de conservação – entre elas a APA Guapimirim – e unifica a sede administrativa no município de Teresópolis, na região serrana do Rio. A criação do Núcleo, feita por Portaria do ICMBio, foi amplamente criticada pela falta de transparência e consulta às equipes das unidades, e por não levar em conta as diferenças geográficas e biológicas entre as áreas protegidas, tampouco as sedes já existentes nos territórios.

Além da APA Guapimirim, o Núcleo de Gestão Integrada de Teresópolis engloba a Estação Ecológica da Guanabara, o Parque Nacional da Serra dos Órgãos, a Reserva Biológica do Tinguá e a Área de Proteção Ambiental de Petrópolis, um total de quase 130 mil hectares de área protegida. A criação do NGI foi publicada no dia 13 de maio, no Diário Oficial da União (Portaria nº426/2020). Na véspera, já haviam sido publicadas as exonerações que deixaram 2 destas unidades sem chefia. Foram 16 dias sem chefia, com a suspeita de que todas as equipes sejam movidas para Teresópolis, onde ficariam sob chefia de Leandro Goulart, gestor do Parque Nacional da Serra dos Órgãos.

Parte da suspeita se confirmou, com a publicação nesta sexta-feira (29), da designação de Leandro como chefe do NGI e responsável por todas as 5 UCs. A surpresa, entretanto, foi a nomeação de Klinton Senra, então ex-gestor da Estação Ecológica da Guanabara, como “Chefe de Unidade de Conservação II”, conforme descrito no Diário Oficial da União. Também foi publicada a nomeação de Maurício Muniz, o ex-gestor da APA Guapimirim, como chefe-substituto no lugar de Klinton.

A dobradinha entre Klinton e Maurício repete uma parceria de gestão que existe entre a APA e a Estação Ecológica, unidades vizinhas que ajudam a proteger a única área de manguezal que restou no entorno da Baía de Guanabara. E as nomeações são um indício de que a sede que já existe e é compartilhada por ambas as unidades poderá ser mantida como base avançada, ainda que a sede principal do NGI siga sendo em Teresópolis, a cerca de 50 quilômetros de distância.

No mapa, a APA Guapimirim está destacada em vermelho em linha mais grossa, circunstrita a ela, também em vermelho, a Estação Ecológica da Guanabara. Nas outras cores, as demais UCs do NGI e suas sedes. Fonte: Google Earth

“Foi uma pressão da sociedade, dos parceiros que acionaram o Ministério Público Federal, fizeram questionamentos, e os antigos chefes acabaram sendo reconduzidos. A nomeação do Klinton como chefe indica que vai ter uma base avançada. Não está escrito em lugar nenhum que ele vai ser chefe da Estação Ecológica da Guanabara e da APA Guapimirim, mas como o próprio Maurício é o substituto, dá uma indicação de que seria para essa base avançada na sede das unidades, em Guapimirim. Não está escrito em nenhum lugar, mas é um bom indicativo. As outras sedes a gente não sabe como irão ficar”, explicou uma fonte do ICMBio que preferiu não se identificar. A Reserva Biológica do Tinguá e a APA Petrópolis também têm sedes próprias, localizadas a 80 e 43 quilômetros de Teresópolis.

“Nós sabemos só o que foi publicado nas Portarias, é muito pouco para entender o funcionamento exato desse NGI”, conta a fonte ouvida por ((o))eco. “Vão manter as equipes que já atuavam nesses territórios? Não sabemos”.

Ainda é incerto se as equipes poderão manter seu local de exercício ou se serão todos transferidos para Teresópolis. A mudança dos 21 servidores, referente a este Núcleo, custaria mais de 1 milhão de reais aos cofres públicos (R$1.124.283,30), de acordo com relatório produzido pelo Comitê de Apoio à Integração e Nucleação Gerencial do ICMBio. O valor inclui ajuda de custos para atender às despesas de viagem, mudança e instalação; transporte, preferencialmente por via aérea, inclusive para seus dependentes; e transporte de mobiliário e bagagem, inclusive de seus dependentes.

Uma das maiores preocupações com o esvaziamento das sedes é perder espaço no território e enfraquecer tanto a fiscalização quanto a relação construída com as comunidades no entorno dessas unidades. Presidente da Comissão Nacional de Fortalecimento das Reservas Extrativistas e Povos e Comunidades Tradicionais Extrativistas Marinhos e Costeiros (CONFREM) e membro do Conselho Gestor da APA Guapimirim, Flávio Lontro reforça a importância da sede e da presença do ICMBio no território.

“Se você tiver uma sede distante, você perde o tempo de resposta de uma denúncia por exemplo. Você perde o tempo de pegar o sujeito em flagrante delito. Quem assina qualquer coisa é o chefe da unidade, se ele estiver em outro lugar, em outra unidade do NGI, vai fazer como? O cara recebe a denúncia e aí tem que esperar o chefe voltar lá para autorizar uma vistoria ou uma ação de fiscalização, quanto tempo isso vai levar? Você fica sem poder de fogo”, explica Lontro.

Pescadores artesanais no rio Guaraí, um dos oito rios que desaguam na Baía de Guanabara passando pela APA Guapi-Mirim e pela ESEC Guanabara. Foto: Marcio Isensee

Morador e pescador da região, ele ressalta todo o trabalho de educação ambiental feito pela unidade de conservação junto às comunidades. “Durante muitos anos, as comunidades, pescadores principalmente, como é o meu caso, tiveram dificuldade em entender a finalidade da APA, a importância da preservação e da sustentabilidade dos recursos, e a importância das ações de fiscalização. Porque era um monte de gente que vinha pescar aqui que nem era daqui e a fiscalização acaba empoderando a comunidade em combate a esses caras todos que vêm de fora para degradar aqui”.

O ‘Conselhão’

A perspectiva social desse novo cenário criado pelo Núcleo de Gestão Integrado é agravada pelo rumor, ainda não confirmado, de que os Conselhos Gestores das unidades reunidas no NGI serão unificados em um só ‘Conselhão’. Por definição do próprio Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC, Lei 9.985/2000), toda unidade de conservação precisa ter um Conselho Gestor, que tem como função auxiliar o chefe da área protegida na sua gestão e integrá-la à população e às ações realizadas em seu entorno.

Conselho Gestor da APA Guapimirim. Foto: ICMBio/Divulgação

“Disseram que os conselhos serão reorganizados e a proposta é o que eles estão chamando de Conselhão do NGI, que seria composto pelos conselheiros dessas 5 unidades. Legalmente isso não é possível, porque o SNUC prevê que cada unidade tenha o seu conselho instituído. Existem várias unidades de conservação no Brasil que não tem Plano de Manejo, mas têm Conselho, porque é o que dá gestão à unidade, independente da categoria. Estão querendo tirar a participação social da gestão da unidade. É todo um desmantelamento de uma coisa que levou 35 anos para ser construída. É difícil de aceitar isso”, critica Lontro.

A fonte do ICMBio ouvida por ((o))eco confirma que não houve uma definição de como ficará o Conselho, mas que a informação até o momento é de que será de fato um único Conselho Gestor para todo o Núcleo de Gestão Integrada.

“A APA Guapimirim e a Estação Ecológica sempre atuaram juntas e tem o mesmo conselho, porque é o mesmo território, os mesmos atores sociais. Agora, ter um Conselho único que inclui desde a APA Guapimirim até a Reserva Biológica do Tinguá é outra coisa. E juntar esses conselhos já instituídos, que já têm suas instituições locais, significa excluir instituições desse processo participativo. Muitas das entidades que frequentam hoje o Conselho da APA não vão ter condições de ir para Teresópolis, por exemplo, se esse for o caso. Além disso, dificilmente haverá vagas para que todas essas instituições locais participem. É uma perda gigante de participação social e de planejamento com os atores, mas é isso que eles querem né? Nesse projeto político parece que quanto menos participação melhor”, lamenta.

O último mangue preservado da Guanabara

Criada em 1984, a Área de Proteção Ambiental de Guapimirim pode ser uma unidade de conservação pouco conhecida, mas está diretamente ligada a saúde de um dos maiores símbolos fluminenses: a Baía de Guanabara. Com um território distribuído em quatro municípios (Magé, Itaboraí, São Gonçalo e Guapimirim), a APA protege a última área de mangue remanescente do entorno da Baía e os únicos cinco rios limpos que deságuam nas águas da Guanabara. Em 2006, foi criada a área protegida vizinha, Estação Ecológica da Guanabara, que passou a funcionar de forma integrada com a APA. Juntas, as unidades protegem quase 14 mil hectares e compartilham a mesma sede, localizada entre os municípios de Magé e Guapimirim, a 50 quilômetros de distância de Teresópolis.

“A APA funciona como se fosse o berçário da Baía de Guanabara porque é a última área de mangue preservada da baía, lar para dezenas de espécies de peixes, aves e mamíferos”, reforça Ricardo Gomes, diretor do Instituto Mar Urbano, que criou a campanha “Salve a APA”, com vídeos que apresentam a APA Guapimirim e sua importância para a Baía de Guanabara, é preciso conscientizar as pessoas sobre o papel da área protegida e o risco que ela corre com a reestruturação de gestão feita pelo ICMBio.

“Eu sou da política de que em time que está ganhando a gente não deve mexer. A APA vem funcionando há muitos anos com uma equipe que escuta a comunidade local, onde os pescadores artesanais têm voz ativa, a fiscalização é bem feita e há um excelente trabalho de educação ambiental desenvolvido pelas ONGs e pela gestão atual da APA. Perder esse trabalho será uma perda grande para as comunidades locais e para sociedade de uma maneira geral. A Baía de Guanabara é icônica, não só para o Rio de Janeiro, é um símbolo mundial”.

Um abaixo-assinado também foi articulado pela retirada das duas unidades – a APA e a Estação Ecológica – do NGI. Até o momento de fechamento desta reportagem, a petição pública contava com 3.300 assinaturas. “São inúmeros prejuízos. É um trabalho interrompido e uma possibilidade de ineficácia de fiscalização. Até ter o mesmo grau de rendimento que essa gestão tem, a gente pode passar por um período de aumento nas atividades ilegais, como a caça e a pesca irregular”, analisa Ricardo.

Entre os problemas enfrentados no território da APA e da Estação Ecológica estão as pressões de ocupação, por se tratar da última grande área pouco ocupada na região metropolitana do Rio de Janeiro. “A ocupação irregular, com corte de manguezal e aterramento, também é um problema. Uma menor presença no território acarretaria num aumento dessa pressão e um agravamento dessas situações, sem dúvida”, diz a fonte do ICMBio ouvida por ((o))eco. Outros ilícitos ambientais são a pesca irregular, principalmente de grandes embarcações vindas de fora, a caça ilegal, e a poluição, tanto industrial quanto doméstica.

“É uma economia burra, porque o governo pode gastar menos inicialmente, mas há um custo para sociedade que vai ser muito maior. Todo o problema da Baía de Guanabara – que é o cartão-postal do Rio de Janeiro – e um dos principais pontos de manutenção da vida na Baía de Guanabara são os manguezais que estão na APA de Guapimirim. Se essa condição ambiental for piorada, é economicamente ruim. Tanto pela questão da pesca, pois são milhares de pescadores na Baía de Guanabara, quanto pelo turismo local”, completa.

Na Baía de Guanabara, as áreas protegidas APA GuapiMirim e ESEC Guanabara são o último grande remanescente de manguezal. Foto: Marcio Isensee

MPF se posiciona sobre Reserva Biológica do Tinguá

Além das duas unidades de conservação localizadas na Baía de Guanabara, a inclusão da Reserva Biológica do Tinguá no NGI de Teresópolis gerou críticas e um posicionamento do Ministério Público Federal (MPF) do Rio de Janeiro contrário ao Núcleo. O MPF recomendou ao ICMBio que “declare a nulidade da Portaria nº426/2020 e exclua a Reserva Biológica (Rebio) do Tinguá do Núcleo de Gestão Integrada de Teresópolis”.

A recomendação, assinada pelo procurador da República Julio Araújo, declara que “atualmente a Rebio do Tinguá já exerce com dificuldade sua atribuição fiscalizatória, ante o baixo número de servidores no local em contraste com os 24 mil hectares a serem protegidos. A criação do NGI ICMBio Teresópolis, nos moldes propostos, não contribui para a conservação da biodiversidade e representa um grande retrocesso na política de conservação do Rio de Janeiro”.

Além disso, o MPF argumenta que o custo de manutenção da sede é baixo frente à área fiscalizada, na qual estão 84 espécies de vertebrados e plantas ameaçadas de extinção, entre elas a jacutinga e o muriqui.

 

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  • Duda Menegassi

    Jornalista ambiental especializada em unidades de conservação, montanhismo e divulgação científica.

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Comentários 3

  1. Rosane Silva diz:

    Quando o capital e a política falam mais alto do que todos os benefícios da conservação e cuidados ambientais. Nós somos os nossos maiores destruidores." O homem é o lobo do homem"


  2. Flavio Santos diz:

    "É uma economia burra, porque o governo pode gastar menos inicialmente, mas há um custo para sociedade que vai ser muito maior."
    Não sei porque esse cidadão não jogou ainda na mega sena, deveria estar rico sabendo o futuro assim.


    1. Antonio Cabral diz:

      E eu não sei o porque de um comentário tão débil como o seu. Com certeza é falta do que fazer ou talvez um déficit de atenção. Felizmente é apenas mais um amargo derrotado pela onda crescente de conscientização humana.