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Governo gaúcho quer alterar Lei Estadual de Agrotóxicos

Governador quer permitir o uso de agrotóxicos proibidos no país onde o produto foi fabricado. A atual lei está em vigor desde 1982. Oposição é contra mudança

Mathias Boni ·
15 de fevereiro de 2021 · 4 anos atrás
Governador Eduardo Leite durante a Abertura do Ano Legislativo da Assembleia Legislativa. Fotos: Felipe Dalla Valle/ Palácio Piratini.

Após modificar em tempo recorde o Código Ambiental para o Rio Grande do Sul, o governador Eduardo Leite (PSDB-RS) propôs um projeto de lei (PL 260/2020) para alterar a Lei Estadual dos Agrotóxicos, que está em vigor desde 1982. A lei que regula o uso de agrotóxicos no Rio Grande do Sul é considerada pelos ambientalistas uma referência nacional, pois é a única no Brasil que proíbe a utilização de agrotóxicos que estão proibidos no país onde foi fabricado. É justamente essa vedação que o governador pretende alterar. 

“A lei estadual dos agrotóxicos representa um extraordinário avanço de proteção ao meio ambiente e à saúde das pessoas aqui no Rio Grande do Sul. Sem isso, abrir a possibilidade de aqui utilizar venenos proibidos nos países onde são fabricados, é sim um risco a mais para a saúde da população”, diz o deputado Edegar Pretto (PT-RS), um dos líderes da oposição a esse projeto na assembleia gaúcha. “Infelizmente a gente vê estados, municípios e governantes se associarem a essa postura irresponsável do governo federal, simbolizada por aquela famosa fala do ministro Salles, ‘vamos aproveitar a pandemia para passar a boiada’, justamente flexibilizando a legislação. Aqui no Rio Grande do Sul, infelizmente, a boiada está passando, com o aumento dos projetos de mineração e de leis que flexibilizam a proteção ao meio ambiente. E nós precisamos de uma ampla mobilização para impedir que retrocessos tão significativos como esses que estão na ordem do dia se concretizem”, denuncia.

Logo quando o PL 260/2020 foi proposto, 189 entidades que atuam na preservação ambiental e na produção de alimentos saudáveis se reuniram para elaborar uma carta de repúdio ao projeto, citando o direito à alimentação adequada como um direito humano fundamental garantido pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU para o futuro e a própria Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (Lei n. 11.346 de 2006).

Atualmente, a Lei Estadual dos Agrotóxicos permite o uso no Rio Grande do Sul de produtos agrotóxicos e biocidas que sejam registrados na Anvisa, como é no resto do país, e adicionalmente proíbe o uso e comercialização de produtos que tenham seu uso banido no seu país de origem. Se um produto produzido pela Bayer é proibido de ser usado na Alemanha, por exemplo, não necessariamente tem o seu uso restrito no Brasil, que tem uma lei mais flexível, mas tem seu uso obrigatoriamente proibido no Rio Grande do Sul, graças à Lei Estadual dos Agrotóxicos de 1982. O novo projeto do governo estadual, contudo, quer liberar o uso de todos os produtos agrotóxicos que sejam apenas registrados na Anvisa, independentemente de proibições em seus países de produção. 

“Mesmo com as restrições já existentes na presente lei, ainda há muitos registros de intoxicações de trabalhadores que aplicam agrotóxicos nas lavouras gaúchas, e liberar ainda mais agrotóxicos, já proibidos no país de origem em razão da periculosidade, é um equívoco e um tremendo retrocesso. O Rio Grande do Sul não tem nenhuma condição de flexibilizar ainda mais o uso de agrotóxicos, sob pena de adoecer mais a sua população”, explica a deputada estadual Sofia Cavedon (PT-RS), uma das lideranças contra a aprovação do PL 260/2020. Mesmo com uma lei eficiente como a atual, o Rio Grande do Sul é um dos estados com maior taxa de mortalidade por câncer do Brasil, muito em razão do uso dos agrotóxicos já liberados na agricultura do estado. 

Para o Secretário Adjunto da Agricultura do Rio Grande do Sul, Luiz Fernando Rodriguez Junior, a atual Lei de Agrotóxicos do Estado é anterior à Constituição de 1988 e ao Marco Regulatório dos Agrotóxicos, de 1989, que estabeleceu que os órgãos federais (Mapa, Anvisa e Ibama) são competentes para registrar o agrotóxico em todo o país. “Uma lei estadual não pode reduzir a eficácia da lei federal”, defendeu ele. “O Ministério da Agricultura avalia a relevância agronômica, o Ibama determina a adequação ambiental e a Anvisa avalia os impactos na saúde. Uma vez aprovado nestas três instâncias federais, o agrotóxico está apto a ser utilizado. Mas compete à lei estadual cadastrar os aplicadores do produto autorizado pelos órgãos federais”, disse.

Governo tinha pressa em aprovar alteração, mas voltou atrás

Parlamentares e entidades pedem a retirada do Projeto de Lei dos agrotóxicos. Foto: Divulgação | Gab. Dep. Zé Nunes.

O PL 260/2020, assim como a mudança do código ambiental estadual, foi proposto pelo governo estadual no fim do ano em regime de urgência. Para o deputado estadual Edegar Pretto (PT-RS), não há motivo para aprovar uma alteração dessa natureza sem envolver a sociedade em um amplo debate. “(…) a gente não compreende o fato do governo encaminhar um projeto desses em regime de urgência, que vai modificar tanto a vida das pessoas e que vai trazer risco ao meio ambiente, sem nem possibilitar debate com a sociedade”, diz. 

Por falta de tempo hábil para votar antes do recesso parlamentar, a Assembleia retirou o regime de urgência do projeto na última sessão em 2020 e a votação do PL 260/2020 foi temporariamente adiada. Nesta quarta-feira (10), em visita à Alers, o governador Eduardo Leite prometeu que o projeto não será discutido em regime de urgência. 

A promessa ocorreu após representantes da Frente Parlamentar Gaúcha em Defesa da Alimentação Saudável e dos Conselhos Estadual de Direitos Humanos, de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável e Estadual de Saúde entregarem um documento solicitando a medida e um amplo debate sobre o assunto. Mais de 230 entidades assinam o documento com a solicitação.

“Neste momento deveríamos estar recrudescendo e proibindo o uso de agrotóxicos, e o governo está querendo liberar ainda mais, inclusive alguns dos quais já estamos há 40 anos livres. Muitas pessoas estão vivas hoje, por causa da Lei de agrotóxicos do Rio Grande do Sul. Então, é de uma irresponsabilidade com o presente, e com o futuro, inacreditável”, afirma o ambientalista Francisco Milanez,  presidente da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan). 

  • Mathias Boni

    Jornalista e Advogado, com especialização em Direito Internacional e Mestrado em Direito dos Refugiados e Migração Internacional. Escreve principalmente sobre Migração, Política Internacional e Meio Ambiente.

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