O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (Ibama) mudou mais uma regra para aplicação e apuração de multas ambientais, tornando o processo ainda mais complexo, segundo especialistas. Trata-se de um despacho publicado na última quinta-feira (14) determinando que, a partir de agora, para responsabilizar e punir o infrator, além da comprovação do dano – desmatamento ilegal, por exemplo –, os fiscais do órgão terão que comprovar que este infrator teve a intenção deliberada de provocá-lo.
O despacho é assinado pelo presidente do órgão, Eduardo Bim, e segue um parecer jurídico de 2020 da Procuradoria Federal Especializada (PFE) junto ao Ibama. Este parecer estabelece que os processos administrativos de aplicação de multa deverão seguir o “caráter subjetivo” de responsabilização. Isto é, os fiscais terão que implementar novos métodos de comprovação de dolo – o responsável sabia dos resultados e assumiu os riscos de produzi-lo, ou culpa, a infração foi causada por imprudência, negligência ou imperícia.
Até então, havia o entendimento pacífico nas normas que regiam os processos administrativos do Ibama de que, para punir o infrator, era necessária apenas a comprovação do dano – chamado de “caráter objetivo” nos termos jurídicos.
“Normalmente o que os órgãos ambientais registram é o dano ambiental, a situação objetiva. A ligação entre esse objeto e o sujeito é feita através principalmente do CAR [Cadastro Ambiental Rural], dos dados do INCRA, de informações coletadas localmente. Agora, no relatório [da sanção ambiental] o agente tem que não só dizer qual é o dano e que fulano é o responsável legal, mas também tem que provar que esse fulano é que provocou mesmo o ilícito e que ele quis fazer isso”, explicou a ((o))eco o professor de Gestão Ambiental da Universidade Estadual de Minas Gerais, Raoni Rajão.
Rajão lembra que o registro no Cadastro Ambiental Rural é uma declaração de posse. Segundo ele, existem decisões na justiça pacificando o entendimento de que, se o dano aconteceu dentro de uma área declarada como propriedade privada, já considera-se que houve omissão ativa – culpa – pois este proprietário ou deixou que o dano acontecesse, ou ele mesmo o provocou.
“Antes, quem fez não era importante, o importante era o que foi feito e que foi feito na terra de alguém. Agora, o ‘se quis fazer’ se tornou relevante. É claro que [o órgão ambiental] pode ganhar ou perder e existem elementos que dizem que ele pode ganhar, mas o fato é que o Ibama agora precisa encarar uma briga que não era necessária antes”, diz.
Segundo a especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima, Suely Araújo, o “caráter objetivo” ou o “caráter subjetivo” da responsabilidade administrativa ambiental são teses jurídicas, ambas com respaldo na jurisprudência. Mas, para ela, é preciso ir além da discussão teórica.
“Do ponto de vista jurídico, você vai achar argumentação para os dois lados. Agora, a questão vai além do debate jurídico ou filosófico de direitos pessoais. Você tem que analisar o quanto isso pode dificultar a punição de quem comete a infração, analisando os impactos para a própria fiscalização ambiental”, defende.
Possíveis consequências da medida
O novo entendimento do Ibama já está sendo aplicado pelo órgão desde a publicação do despacho, na última quinta-feira.
Segundo Fábio Ishisaki, advogado especialista em ciências ambientais pela USP e analista da organização Política por Inteiro, esta mudança torna a punição de infratores ambientais ainda mais difícil no país.
Isso porque, no limite, será necessário que os agentes ambientais instaurem praticamente um inquérito ou uma investigação para cada infração, a fim de apurar se houve de fato dolo ou culpa por parte do infrator. Considerando o baixíssimo quadro de servidores – o déficit é de mais de 2 mil servidores no Ibama – a mudança pode significar uma possível paralisação nas autuações ambientais.
“O start da autuação ficou mais difícil, as responsabilizações podem ser dificultadas, então, no final das contas, isso dificulta a atuação do agente ambiental”, diz ele.
Outro aspecto relevante levantado pelo professor Raoni Rajão é em relação às autuações feitas com base em imagens de satélites. Havendo somente a necessidade de comprovação do dano, a fiscalização remota é viabilizada, o que poderia, potencialmente, reduzir a zero a impunidade dos produtores registrados nos sistemas de CAR.
“Com a operação ‘Controle Remoto’, do Ibama, e ações dos estados (principalmente Mato Grosso) já foram feitas milhares de multas com base somente nas imagens de satélite e registro do CAR, com decisões judiciais favoráveis. Para universalizar a abordagem bastaria vontade política”, defendeu Rajão em sua conta no Twitter, no dia da publicação do despacho.
Além disso, Rajão explicou a ((o))eco que é muito difícil provar a culpa, o que explicaria a quase inexistência de condenações com base nessa premissa. “A pessoa pode inventar qualquer desculpa onde ela se remove enquanto sujeito da ação. O Ibama até consegue ver com imagens de satélite que houve desmatamento e, pelos registros, de quem é a posse, mas a imagem de satélite não pega a pessoa com a motosserra na mão”, diz.
Soma-se a isso o fato de que, segundo o professor da UFMG, o novo entendimento pode dar um “grande instrumento jurídico” em defesa dos infratores, que podem requerer a anulação não só os autos de infração atuais, mas também os passados, aumentando ainda mais a impunidade. “Eles podem simplesmente argumentar que não foram eles. Podem dizer: ‘a terra é minha, mas não fui eu, alguém entrou lá e desmatou, plantou pasto, mas não é explorado por mim’”, defende Rajão.
Suely Araújo levanta outra consequência negativa do novo entendimento: a inviabilidade de operações de rastreamento de cadeias produtivas, como a Operação Shoyo que, em 2018, levou à aplicação de R$ 105,7 milhões em multas a companhias de grãos e agricultores por plantio ilegal de grãos. Na época, Suely era presidente do Ibama.
“Nessas operações, você tem que analisar vários elos da cadeia e é muita gente. [Com o novo entendimento] você vai ter que introduzir no processo elementos de culpa em todo mundo, o que pode complicar, tirar agilidade do processo administrativo gerado por essas operações que, para mim, são super importantes. O futuro da fiscalização são as operações de rastreamento da cadeia produtiva”, defende.
Por que mudar?
Assim como explicou Suely Araújo, a tese defendida pela Procuradoria Federal Especializada em 2020, e agora referendada por Eduardo Bim, encontra respaldo em entendimentos jurídicos anteriores.
Mas esta mudança não configura fato isolado. Ela vem na esteira de uma série de alterações feitas pelo Governo Bolsonaro na forma como as multas ambientais são aplicadas e apuradas no Brasil.
“É um combo, tem várias decisões que têm levado a um enfraquecimento do processo sancionador, é um conjunto, uma soma”, diz Suely Araújo.
Ela e os demais pesquisadores entrevistados para esta reportagem lembram que, logo no início do governo Bolsonaro, em abril de 2019, foi criada a figura da “Audiência de Conciliação” que, na prática, paralisou o processo.
Levantamento realizado pelo Observatório do Clima em outubro de 2020 mostrou que o Ibama havia realizado apenas cinco audiências de um total de 7.025 agendadas, entre outubro de 2019, quando o decreto entrou em vigor, e agosto de 2020.
Em 2021, foram introduzidas novas mudanças, como a necessidade de análises dos autos de infração por autoridade superior – a multa aplicada por um fiscal tem que ser aprovada pelo seu chefe para seguir em frente –, centralização do processo em uma única equipe nacional, prazos inexequíveis para a finalização do processo e possibilidade de punição a servidores.
Em março de 2022, mais uma mudança foi introduzida. Desta vez, Eduardo Bim publicou um despacho determinando que a intimação do infrator para apresentar as alegações finais – parte do processo administrativo em que o autuado faz sua defesa – não seria mais feita por edital, mas sim pessoalmente.
A decisão do presidente do Ibama poderá impactar 60% dos cerca de 70 mil processos lavrados entre 2008 e 2019, nos quais os infratores foram notificados para alegações finais via edital. Isto significa que 42 mil multas poderão simplesmente ser anuladas. O número foi informado pelo próprio Ibama, em resposta a um questionamento feito pelo deputado Rodrigo Agostinho (PSB-SP) ao órgão em junho passado.
Para Raoni Rajão, a causa de tais mudanças resume-se em uma frase: “A motivação é criar mais anistia, cancelar um número maior de multas”, diz.
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