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INCRA possui apenas 216 funcionários para regularização fundiária na Amazônia

Em Altamira, sede do INCRA foi ocupada por famílias atingidas por Belo Monte que há 10 anos aguardam reassentamento. Déficit de funcionários é apenas um dos problemas

Cristiane Prizibisczki ·
6 de dezembro de 2023

INCRA possui apenas 216 funcionários para regularização fundiária na Amazônia

Em Altamira, sede do INCRA foi ocupada por famílias atingidas por Belo Monte que há 10 anos aguardam reassentamento. Déficit de funcionários é apenas um dos problemas

Por Cristiane Prizibisczki

Por 40 dias, entre 10 de outubro e 20 de novembro de 2023, a sede do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) em Altamira (PA), maior município do país, permaneceu fechada. A falta de conclusão no processo de reassentamento das famílias atingidas pela construção da Usina de Belo Monte gerou revolta e um grupo de representantes dos atingidos invadiu o local. Há uma década eles aguardam seu pedaço de terra.

A desocupação só aconteceu após uma decisão da Justiça do Pará, que obrigou a União, o INCRA e a Norte Energia, responsável pela obra de Belo Monte, a realizarem uma audiência de conciliação com os afetados e seus representantes, a fim de encontrar soluções definitivas para o problema.

Segundo Franklin Rúsivel, membro da comunidade afetada e representante do grupo que ocupou a sede do INCRA, ao longo da última década, o órgão fundiário nacional apresentou várias justificativas para a falta de conclusão da processo de reassentamento, entre elas, o déficit de funcionários.

A falta de mão de obra para a área do ordenamento territorial no órgão fundiário nacional, no entanto, não é exclusividade de Altamira. Em toda a Amazônia, o INCRA possui apenas 216 funcionários, entre concursados e contratados, atuando na Divisão de Governança Fundiária das Superintendências Regionais da Autarquia e em sua sede, no Distrito Federal. O número foi obtido por ((o))eco via Lei de Acesso à Informação (LAI).

A quantidade de gente trabalhando no INCRA é baixa, mas esse é apenas um dos muitos problemas que os responsáveis pelo ordenamento territorial na maior floresta tropical do planeta enfrentam.

Foto: Jaime Souzza

Entendendo o problema

O complexo processo de colonização da Amazônia – retratada na primeira matéria desta série –, a importância da proteção das florestas e a necessidade de manutenção dos direitos de povos originários e quilombolas fizeram do solo amazônico um mosaico de dominialidades.

São 115 milhões de hectares cobertos por terras indígenas (23%), 92 milhões de hectares cobertos por Unidades de Conservação (18,5%), 39 milhões de hectares, por projetos de assentamento (8%), 2,6 milhões de hectares, por áreas militares (0,5%), 2 milhões de hectares, por territórios quilombolas (0,2%), além de outros 105 milhões de hectares cobertos por imóveis privados (21%).

Cada uma dessas áreas é gerida por um órgão diferente do governo, como a FUNAI, para Terras Indígenas, e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), no caso das unidades de conservação, por exemplo.

Como mostramos na primeira matéria desta série, no entanto, o território da Amazônia Legal também é composto por 143,6 milhões de hectares de áreas não destinadas ou sem informação de destinação.

Elas são áreas da União ou dos Estados para as quais ainda não foi definido um uso: se serão transformadas em áreas protegidas, projetos de assentamento ou se serão privatizadas (vendidas a um particular).

Lógica da privatização

Durante os últimos quatro anos, o governo do então presidente Jair Bolsonaro tentou, a seu modo, colocar um ponto final nesse problema da falta de ordenamento. As tentativas vieram na forma de mudanças nas leis e criação de programas de titulação.

Com mentoria do secretário de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, Nabhan Garcia, o Executivo propôs a famosa Medida Provisória 910/2019. Pecuarista e agricultor, com fazendas em São Paulo e Mato Grosso do Sul, Garcia se declarava inimigo da reforma agrária e da delimitação de terras indígenas, e tentou trazer uma lógica da privatização ao ordenamento territorial brasileiro.

Uma terra de ninguém é de todo mundo

Ane Alencar, diretora de Ciência do Instituto de Pesquisas da Amazônia (IPAM)

A proposta da MP era que áreas da União com ocupação consolidada pudessem ser transferidas, sem custo ou a preços módicos, a posseiros. Além disso, a Medida abria possibilidade de titulação sem vistoria a áreas maiores do que as previstas na norma anterior: propriedades de até 2.500 hectares – o tamanho da ilha de Fernando de Noronha – podiam ser tituladas sem licitação e com descontos de 90% concedidos pelo governo. Além disso, a norma também estendia para 2018 a data-limite para uma ocupação ser passível de regularização.

Tais mudanças impulsionam ainda mais as ocupações irregulares, escalonando o problema da regularização. “O governo Bolsonaro deu sinais claros que, ‘olha, podem ocupar, vocês vão fazer dinheiro com isso, negócio puro, a baixo risco, vocês não vão perder o investimento e ainda vão ganhar essa terra no futuro’”, disse Ane Alencar, diretora de Ciência do Instituto de Pesquisas da Amazônia (IPAM).

Terra pública disponível é o oxigênio da grilagem, reforça a pesquisadora: “Uma terra de ninguém é de todo mundo”.

A MP caducou, mas seu conteúdo foi transformado, com algumas modificações, no Projeto de Lei 2.633 que ainda está em tramitação no Congresso. 

O governo Bolsonaro também criou, em 2020, o Programa Titula Brasil, que tirou do colo do governo federal parte do dever sobre o ordenamento de áreas públicas rurais da União e do INCRA, passando a responsabilidade para os municípios. Mesmo com a mudança de governo, em janeiro de 2023, o programa continuou em vigor.

Destinação para usos coletivos 

Apesar da lógica bolsonarista de ordenamento territorial, dar um destino aos milhões de hectares de terras públicas da Amazônia não é só transferir terra para o agricultor, por meio de venda.

Regularizar significa também criar unidades de conservação e demarcar terras indígenas e territórios quilombolas, significa criar assentamentos da reforma agrária e reassentar pessoas forçadamente deslocadas, assim como esperam as famílias de Volta Grande do Xingu que ocuparam a sede do INCRA em Altamira.

Segundo levantamento do Imazon, 43% do território sem definição fundiária na Amazônia possui prioridade para conservação. É uma área enorme, equivalente ao território da Espanha.

No início de setembro de 2023, o governo Lula trouxe importantes mudanças nas normas fundiárias do Brasil, com o intuito de mudar a lógica da privatização.

O Decreto nº 11.688/2023 mudou a composição e as funções da Câmara Técnica de Destinação e Regularização Fundiária de Terras Públicas Federais Rurais, colegiado formado por diferentes ministérios e que tem a função de decidir, tecnicamente, o que deve ser feito com as áreas federais ainda sem destinação.

“Anteriormente, a Câmara Técnica tinha uma questão que era problemática, que era a lógica da preferência ser a regularização fundiária [privatização de terras, em detrimento da criação de áreas protegidas]. Esse era sempre o ponto de partida, a não ser que algum órgão se manifestasse com outro interesse”, explica Brenda Brito, pesquisadora associada do Imazon.

Segundo ela, no entanto, essa manifestação de órgãos voltados para a criação de Unidades de Conservação, Terras Indígenas ou quilombolas não acontecia com muita frequência.

“Então eles acabavam destinando a maior parte das áreas, mesmo sendo de floresta pública, para regularização, justamente por essa ausência de manifestação dos outros”, diz.

Com as mudanças trazidas por Lula, a Câmara Técnica ganhou novos membros –  como o Ministérios do Povos Indígenas – e aprimorou procedimentos, deixando clara a política que o colegiado deve seguir: priorização de criação de áreas protegidas, terras indígenas e territórios quilombolas, criação de territórios para outros povos e comunidades tradicionais, reforma agrária, concessão florestal e outros usos que atendam às políticas públicas de prevenção e controle do desmatamento.

Além disso, o decreto trouxe a menção explícita dos destinos possíveis que áreas de florestas públicas podem ter, todas voltadas para os “usos coletivos”. A norma anterior não trazia essa especificação, o que abria possibilidade para privatização.

“Esse é o principal ponto do decreto, que é dizer: ‘se for floresta pública, só pode ser feito isso daqui’, e aí ele lista o que pode ser feito. Isso é importante porque as restrições já estavam previstas em lei, inclusive na Constituição, mas de forma dispersa. Faltava juntar esses fios soltos num só local”, explica Brenda Brito.

Foto: Jaime Souzza

E as terras estaduais?

Até agora, a gente falou de como as terras públicas federais são destinadas. Mas e as estaduais? Como vimos na primeira reportagem desta série, os estados da Amazônia Legal são os principais responsáveis pela área sem definição fundiária na Amazônia.

Segundo levantamento exclusivo feito para ((o))eco pelo Centro para Análise de Crimes Climáticos (CCCA – Center for Climate Crime Analysis), 60% das áreas não destinadas estão nas mãos dos governos estaduais. Isso significa uma área de 862 mil km², o equivalente aos territórios da Itália, Reino Unido e Polônia somados.

O problema é que cada um dos nove estados possui normas e procedimentos próprios para a destinação de terras.

Segundo estudo realizado pelo Imazon, em 2021 havia pelo menos 22 órgãos com atribuição para algum tipo de regularização fundiária na Amazônia. 

Além disso, a análise do instituto mostrou que a desorganização das bases de dados fundiários e a baixa adoção de tecnologia dificultavam a organização de um cadastro de terras único ou compartilhado, e que a maioria das leis estaduais incentivava a contínua invasão de terras públicas.

“Nenhum estado proíbe a titulação de áreas desmatadas ilegalmente e a maioria não exige compromisso de recuperação de passivo antes da titulação”, complementam os pesquisadores do Imazon, em outro trecho do estudo.

Para tentar resolver o problema, os institutos de terras dos nove estados da Amazônia Legal se reuniram, no âmbito do Consórcio de Governadores da Amazônia Legal, para tentar achar soluções comuns para seus problemas.

Em 2023 já foram realizados três encontros, dois virtuais e um presencial, em Cuiabá, em junho passado.

“Foi a primeira vez que os nove estados conseguiram sentar na mesa para debater sobre o que está acontecendo em cada estado, os desafios, as dificuldades. Foi uma oportunidade de nos conhecermos e nos aproximarmos”, disse Bruno Kono, presidente do Instituto de Terras do Pará e também presidente do Fórum de Institutos de Terras da Amazônia.

Segundo ele, algumas demandas comuns foram identificadas, como necessidade de melhorias na infraestrutura dos órgãos, capacitação de pessoal e aumento no número de servidores.

“Precisa de equipamentos, softwares, hardwares, infraestrutura lógica. A gente sente muito também a deficiência de mão de obra. Inclusive um dos encaminhamentos que fizemos foi a criação de um curso técnico de regularização fundiária”, disse o presidente do Iterpa.

De acordo com ele, os órgãos de terra dos estados também levantaram a necessidade da atualização de normativas, dos fluxos de processos e de gestão de pessoas. 

Além disso, eles pedem maior interação com o órgão de terras federal. “A gente precisa definir com o INCRA as bases cartográficas do que é do estado, do que é da União, para tirar as sobreposições, pra saber o que já está certificado ou não”.

No início de novembro, a criação de uma Câmara Técnica Setorial de Regularização Fundiária foi formalizada. Com isso, os órgãos de terra esperam ter maior interação com projetos desenvolvidos no âmbito do Consórcio de Governadores.

A instituição da Câmara Técnica é um importante passo. Mas depois deste, muitos precisam ainda vir. Segundo análise do Imazon, a falta de planejamento para controle e destinação de todo esse território estadual ainda é a realidade que impera nos estados da Amazônia Legal.

Somente no Pará, por exemplo, existe a previsão legal de uma Câmara Técnica de Destinação de Terras, que é aquele colegiado que tem por função definir o futuro das terras devolutas. Apesar de existir a previsão, essa Câmara nunca funcionou de fato.

*Ilustração da capa: Gabriela Güllich

  • Cristiane Prizibisczki

    Cristiane Prizibisczki é Alumni do Wolfson College – Universidade de Cambridge (Reino Unido), onde participou do Press Fellow...

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