As gigantes da indústria da carne JBS, Marfrig e Minerva apresentam inconformidades com a lei europeia anti-desmatamento, o que pode comprometer a exportação de produtos de origem bovina do Brasil para o mercado europeu. A conclusão é de um estudo conduzido pela organização internacional Chain Reaction Research, divulgado alguns dias antes da aprovação da norma europeia, ocorrida na madrugada desta quarta-feira (6), depois de acaloradas discussões no Conselho e Parlamento Europeus.
Apesar das lacunas eu seu texto final (leia mais abaixo), a Lei proíbe a entrada no mercado europeu de commodities produzidas em áreas desmatadas – legal ou ilegalmente – após 31 de dezembro de 2020. Ela foi aprovada na expectativa que a regulação desestimule o desmatamento em áreas florestais ao redor do mundo, inclusive no Brasil.
O estudo da Chain Reaction Research, no entanto, mostrou que 72.663 hectares – área equivalente a metade da cidade de São Paulo – foram desmatados após a data de corte em propriedades de fornecedores diretos e indiretos dos três maiores frigoríficos brasileiros.
Segundo o documento – que aplicou dados de alerta de desmatamento (Deter/INPE) a uma amostra de 39 mil fornecedores diretos e indiretos da Marfrig, JBS e Minerva – foram 65.969 hectares de áreas desmatadas na Amazônia e 6.694 hectares no Cerrado.
“Esses frigoríficos dominam a pecuária brasileira e são importantes exportadores de carne bovina congelada e produtos de couro para a União Européia. Para exportar para a UE, suas cadeias diretas e indiretas de abastecimento de gado não podem ser associadas desmatamento legal ou ilegal, após a data-limite de dezembro de 2020”, reforça o estudo.
Fornecedores indiretos
A Chain Reaction Research, um think-thank que realiza pesquisas sobre commodities relacionadas ao desmatamento, analisou uma amostra de 12.461 fornecedores diretos e 26.572 fornecedores indiretos desses três principais frigoríficos.
Segundo o documento, o desmatamento ligado a fornecedores indiretos é altamente prevalente. Na amostra, os alertas de desmatamento são pelo menos quatro vezes maiores na base de fornecedores indiretos dos três frigoríficos combinados (65.712 hectares), em comparação com os fornecedores diretos (15.470 ha).
“Os fornecedores indiretos são um risco, uma vez que os frigoríficos que monitoram sua cadeia de fornecedores indiretos apresentam lacunas e atrasos e é improvável que estejam prontas para a implementação prevista da Legislação da União Europeia a partir de 2023”, diz o trabalho.
Monitorar os fornecedores indiretos tem sido a grande pedra no sapato da indústria da carne. As grandes empresas dizem não ser possível rastrear todos os pontos da sua cadeia de suprimentos ou alegam que os dados de Guia de Trânsito Animal (GTA), base para esse rastreio, são protegidas por lei de proteção de dados. Os autores do estudo americano, no entanto, discordam.
“Eles sempre dizem que não é legalmente permitido utilizar [os dados de GTA]. Mas eles podem definitivamente usá-las para seus próprios monitoramentos internos. Estou absolutamente segura sobre isso […] Se nós, que somos uma organização pequena, conseguimos fazer isso, por que uma empresa com o tamanho da JBS, por exemplo, não consegue?”, disse, em entrevista a ((o))eco, Sarah Drost, consultora da AidEnvironment e uma das autoras do estudo.
A holandesa AidEnvironment, junto com as organizações Profundo (Holanda) e Climate Advisers (EUA), integra a Chain Reaction Research. As organizações também são responsáveis por um estudo publicado em novembro passado mostrando que a rastreabilidade da cadeia de suprimento da carne e da soja é possível no Brasil.
A rastreabilidade total é um dos pontos centrais da regulamentação europeia para commodities e produtos listados como tendo risco de desmatamento, como a carne e o couro. A lei não exige que o nome dos fornecedores seja indicado, apenas a localização, um outro ponto que derruba o argumento dos grandes frigoríficos de que os dados pessoais dos fornecedores são protegidos por lei interna.
“Eles só precisam saber a geolocalização do terreno. Eles podem manter os nomes dos agricultores para si, não precisam compartilhar esse dado sob esta lei de desmatamento da UE”, reforça Sarah Drost.
Em resposta ao relatório, a Minerva disse que monitora o desmatamento ilegal em 100% dos seus fornecedores e reafirmou sua conformidade com as regulamentações ambientais brasileiras. No entanto, o posicionamento da empresa não atende às restrições de importação da União Europeia, que proíbe o desmatamento tanto ilegal quanto legal.
A JBS informou que havia comprometido a atingir o desmatamento ilegal zero em 2030 e, ano passado, adiantou a meta para 2025, mas apenas para desmates ilegais.
A Marfrig se disse comprometida com o desmatamento zero até 2025 para a Amazônia e até 2030 para o Cerrado, tanto para o desmatamento legal quanto para o ilegal. No entanto, atualmente, a incapacidade da Marfrig de monitorar todos os seus fornecedores indiretos mostra uma lacuna no cumprimento dos requisitos do regulamento europeu.
Para a autora do estudo, as datas limites dos compromissos de desmatamento zero das empresas e as metodologias aplicadas por elas para rastrear suas cadeias estão fora de sintonia com a lei europeia.
“Até que os prazos sejam atingidos, muita vegetação já vai ter ido embora […] Como eles vão cumprir esta lei? Para nós isso é um mistério”.
Os resultados do trabalho, salienta Drost, não indicam que as práticas dos fornecedores são todas ilegais, já que parte do desmatamento ocorrido nos biomas brasileiros se dá com autorização dos órgãos ambientais. “Nós não acusamos nenhuma das empresas de comportamento ilegal, estamos apenas dizendo que, com base nesses resultados, é muito improvável que elas cumpram com a lei europeia, que trata de desmatamento ilegal e legal”, ressalta a autora.
Em 2021, 52% da carne bovina congelada, 28% da carne curtida, pele ou couro cru e 30% da importação total de couro preparado que entrou o mercado europeu era proveniente do Brasil. JBS, Marfrig e Minerva são os maiores exportadores brasileiros para este mercado.
Lei anti-desmatamento
Após horas de negociação, às 4 da madrugada desta quarta-feira, a União Europeia aprovou sua regulação anti-desmatamento. Embora contenha uma série de falhas, o novo regulamento representa um marco histórico para as florestas: pela primeira vez, os compradores de commodities poderão auditar os vendedores e rejeitar carne, soja, madeira, borracha, cacau, café e óleo de dendê proveniente de propriedades com desmatamento ou degradação, legal ou ilegal, a partir de 31 de dezembro de 2020.
A Europa é o segundo maior mercado consumidor de commodities do Brasil. Segundo organizações ambientalistas brasileiras, um regulamento rígido sobre desmatamento por parte do bloco tende a ser usado como referência pelos outros importadores, como China e Estados Unidos.
“A legislação europeia está longe de ser perfeita, mas ela dá um sinal importantíssimo para o mundo inteiro: o desmatamento não deve mais ser tolerado”, diz Marcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima. “Daqui para a frente, os mercados se fecharão a quem destruir ou degradar florestas. Quem apostou na passagem da boiada durante o governo Bolsonaro e achou que poderia devastar impunemente, quebrou a cara. Felizmente, essa parcela do agronegócio, embora barulhenta, é minoritária.”
O texto do regulamento foi aprovado pela Comissão Europeia, o Conselho Europeu (representação dos Estados-Membro) e o Parlamento Europeu. A redação final tem muitos avanços sobre florestas, mas falha com os demais biomas. A menção a “outras áreas florestadas” (other wooded land), que estava no rascunho inicial, caiu no texto final.
Com isso, 74% do Cerrado brasileiro fica desprotegido, o que é especialmente grave porque o bioma é o local de produção da maior parte das commodities exportadas para a União Europeia, a exemplo da soja.
Para organizações brasileiras, ao restringir a produção com desmatamento na Amazônia, na Mata Atlântica e no Chaco, os biomas mais tipicamente florestais da América do Sul, a nova regulação pode causar “vazamento” do desmatamento para o Cerrado, ampliando sua destruição.
“A normativa deve servir de anteparo, um tipo de salvaguarda ambiental, para destravar o acordo UE-Mercosul. E o resultado disso para o Cerrado será uma maior aceleração do desmatamento e violação de direitos de povos e comunidades tradicionais”, observa Guilherme Eidt, assessor de Políticas Públicas do ISPN (Instituto Sociedade, População e Natureza). “Mais uma vez o Cerrado é colocado como bioma de sacrifício. Os europeus deram uma sinalização importante para o mundo, mas perderam a oportunidade de fazer uma lei efetiva. O Cerrado é a principal fonte de desmatamento importado pela Europa hoje. Para nós, aumenta o risco do esgarçamento dos recursos hídricos, crise de abastecimento d’água e energética para os maiores centros urbanos do país, e o acirramento da violência no campo.”
A norma europeia entra em vigor no início de 2023 e tem prazo de um ano e meio para sua implementação total. O texto aprovado nesta quarta promete revisar os critérios da lei um ano após sua entrada em vigor, o que significa uma nova chance das “outras áreas florestadas” entrarem no jogo.
Também ficou para revisão a responsabilização de bancos e outras instituições que financiam o desmatamento. Somente entre 2016 e 2020, os bancos europeus lucraram € 401 milhões em negócios com empresas que desmatam florestas tropicais.
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