Brasília, 21 de novembro de 2018. Em uma mesma mesa, diante de uma plateia de cerca de 70 pessoas, estão representantes dos Ministérios do Meio Ambiente (MMA) e da Agricultura (Mapa), da Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carne (Abiec) e da Associação Brasileira de Supermercados (Abras). Apesar da representatividade dos atores presentes na abertura do “Seminário Sistemas Integrados para a Cadeia Produtiva da Pecuária”, ninguém parecia ter muito a dizer.
A abertura do evento deveria ser marcada pela assinatura de dois documentos: o Acordo de Cooperação Técnica e o Acordo de Intenções com o Setor. A cerimônia estava prevista na programação inicial enviada aos participantes semanas antes do seminário. Mas, à última hora, o setor privado deu para trás.
As negociações vinham acontecendo dentro de um grupo de trabalho criado no início do ano passado pelo MMA. Juliana Simões, secretária de Extrativismo e Desenvolvimento Rural Sustentável, não quis dar detalhes do acordo construído junto às três maiores empresas da indústria de carne bovina (JBS, Marfrig e Minerva) e às quatro maiores redes de supermercado em atuação no Brasil (GPA, Carrefour, Walmart e Cencosud), mas confirmou que o documento visava ao cumprimento do Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) firmado com o Ministério Público Federal (MPF) e ampliar o Compromisso com a Pecuária Sustentável, firmado com o Greenpeace.
Pela primeira vez, o varejo assumiria metas e prazos no sentido de forçar toda a cadeia da pecuária a se regularizar em termos sociais, fundiários e ambientais. A ampliação também seria geográfica, com a inclusão do bioma Cerrado no objetivo do desmatamento zero.
A justificativa oficial das empresas para adiarem a assinatura é de que ainda não existe uma plataforma que centralize todas as informações acerca das propriedades rurais fornecedoras de gado (a base de dados deve ficar pronta em 2 anos). Mas nos bastidores o que se dizia é que dois outros fatores pesaram decisivamente para o adiamento: a incerteza sobre qual seria a posição do governo de Jair Bolsonaro em relação ao assunto e a inclusão do Cerrado no escopo das exigências ambientais.
Acordos ambiciosos, resultados frustrantes
Para entender o tamanho da frustração que marcou o seminário em Brasília, realizado no apagar das luzes do governo Michel Temer, é preciso voltar alguns anos no tempo. Em 2009, o Ministério Público Federal (MPF) e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) processaram frigoríficos no estado do Pará que compravam gado de fazendas embargadas por desmatamento.
O MPF também ameaçou processar os varejistas que continuassem a comprar desses frigoríficos. Pouco depois, o Greenpeace divulgou o relatório “A Farra do Boi na Amazônia”, que prejudicou ainda mais a imagem do setor dentro e fora do país.
Os primeiros na linha de tiro da opinião pública também foram os primeiros a se mexerem. Diversos frigoríficos, primeiro no Pará, depois em outros estados da Amazônia Legal, passaram a assinar TACs com o MPF em que se comprometeram a comprar gado apenas de áreas livres de desmatamento, fora da lista de trabalho análogo a escravo, registradas no Cadastro Ambiental Rural (CAR) e fora de Áreas Protegidas.
As gigantes da indústria da carne – JBS, Marfrig e Minerva – assumiram com o Greenpeace o Compromisso Público com a Pecuária, em que se comprometeram com o desmatamento zero na Amazônia. Ainda em 2009, foi criado o Grupo de Trabalho Pecuária Sustentável (GTPS), que reúne representantes de produtores, indústria da carne, varejo, sociedade civil e instituições financeiras.
Nove anos depois, em março de 2018, o MPF divulgou as primeiras auditorias a fim de comprovar se os frigoríficos estavam cumprindo as regras do TAC firmado no Pará. No caso da JBS, líder do setor de alimentos, verificou-se que 19% das compras apresentavam algum nível de irregularidade.
Outras empresas apresentaram inconformidades em mais de metade das compras auditadas, como os frigoríficos Ribeiro (79%), Altamira (72%) e Aliança (69%). Já o grupo Minerva teve 0,1% de inconformidade. A Marfrig, que aderiu ao Compromisso Público do Greenpeace mas não assinou o TAC no Pará, não se submeteu às auditorias.
O MPF decidiu considerar satisfatórios os resultados das empresas que tiveram até 30% de irregularidades, e lhes concedeu o direito de, no ano seguinte, fazerem apenas auditorias por amostragem. Os frigoríficos que tiveram acima de 30% de irregularidades tiveram como única punição ter que fazer nova auditoria completa no ano seguinte.
Assim que foram divulgados os resultados das auditorias, o procurador da República Daniel Azeredo foi questionado sobre por que o MPF não aplicou as sanções previstas no acordo judicial. A resposta foi de que caberia ao varejo e aos consumidores a tarefa de eliminar os maus cumpridores do TAC: “Nossa ideia é deixar essa valoração para o mercado, para a imprensa, para a sociedade civil”.
A essa altura, as empresas de varejo já tinha começado a se mexer. Mais uma vez, movidas pela pressão do Greenpeace. Se em 2009 “A Farra do Boi na Amazônia” foi responsável por tirar os frigoríficos da zona de conforto, em novembro de 2015 o relatório “Carne ao Molho Madeira” exerceu o mesmo papel junto às grandes redes de supermercados.
O Greenpeace avaliou o que cada rede de varejo estava fazendo para eliminar fornecedores associados ao desmatamento ilegal. Das sete empresas pesquisadas, três não responderam. Das que responderam, apenas o Walmart (dona do 3° maior faturamento segundo ranking Abras 2017) tinha uma política de compra de carne bovina implementada.
O relatório provocou a reação dos consumidores, que passaram a questionar os supermercados sobre a origem da carne bovina. Uma petição que exigia um produto seguro e livre de violações socioambientais angariou 29 mil assinaturas. Era o que faltava para que as líderes de faturamento do varejo – Carrefour e GPA – também tomassem medidas efetivas para controlar a origem da carne vendida em suas gôndolas.
Assim como o Walmart, Carrefour e GPA passaram a cobrar de seus fornecedores a implementação de sistemas de monitoramento por GPS e a recusar lotes de carne que tivessem origem em fazendas com irregularidades socioambientais.
Sistemas têm limites, dizem redes
Apesar dos avanços, as três empresas admitem que seus sistemas de controle têm um limite. Chegam àquela fazenda que vende diretamente para o frigorífico, mas não conseguem controlar as outras propriedades por onde o gado passou, nas fases de cria e recria.
As grandes varejistas tampouco eliminaram de sua lista de fornecedores os frigoríficos pior avaliados na auditoria do MPF. O GPA argumenta que não houve consenso quanto aos critérios da auditoria. Já o Carrefour afirma que intensificou a fiscalização sobre estes fornecedores, e que não encontrou nenhuma irregularidade nos lotes de carne vendidos aos supermercados do grupo.
Ao longo dos últimos anos, o Greenpeace foi o mais eficaz agente de pressão sobre a cadeia da pecuária no Brasil. Em junho de 2017, no entanto, a organização decidiu abandonar os foros de discussão do Compromisso Público com a Pecuária. A decisão foi tomada em função dos escândalos de corrupção envolvendo executivos da JBS e dos desdobramentos da Operação Carne Fria, deflagrada meses antes pelo Ibama.
A operação aplicou R$ 294 milhões em multas e o levou ao fechamento de 15 frigoríficos acusados de comprar quase 59 mil cabeças de gado de 24 fazendas embargadas no Pará. O sucesso da investigação, no entanto, foi restringido pela reação do Judiciário – que autorizou a reabertura de dois frigoríficos – e do próprio governo federal.
O então ministro do Meio Ambiente, Zequinha Sarney (PV-MA), disse que a operação do Ibama foi inoportuna e pediu desculpas aos produtores rurais. O superintendente interino do Ibama no Pará, que participou da preparação da operação Carne Fria, foi destituído do cargo.
Um mês depois de o Greenpeace abandonar a mesa de negociações, o presidente Michel Temer sancionou uma medida provisória que anistiou invasores de terras públicas. Na Amazônia Legal, foram cerca de 27 mil títulos de posse concedidos.
Em fevereiro de 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) deu mais uma boa notícia a quem cometeu irregularidades, ao decidir manter a anistia concedida pelo novo Código Florestal a donos de terra que desmataram além do permitido até 22 de julho de 2008.
Enquanto isso, no MPF, o controle da cadeia da pecuária também segue em marcha lenta. O Pará segue sendo o único estado em que os frigoríficos signatários do TAC foram auditados e tiveram estas auditorias divulgadas. Apesar dos altos índices de inconformidade de algumas empresas, o MPF segue firme na decisão de não aplicar as sanções previstas no acordo judicial.
Ao invés disso, em maio do ano passado, a instituição decidiu cobrar que o Ibama fiscalize 47 frigoríficos que atuam na Amazônia Legal e não firmaram TAC. O MPF deu dois meses para que o Ibama concluísse as fiscalizações. O Instituto alegou que não tinha como fiscalizar sem ter acesso às Guias de Transporte Animal (GTA), documento exigido pelas agências de sanidade animal e que mostra a origem de cada lote de gado.
As GTAs são blindados pelos órgãos estaduais e pelo Ministério da Agricultura, apesar dos reiterados pedidos do MPF para que sejam repassados ao Ibama. “O Ibama só tem acesso às GTAs do estado do Pará e via MPF”, afirma Renê Luiz de Oliveira, Coordenador-Geral de Fiscalização Ambiental do Ibama.
Além do acesso às GTAs, o MPF cobra desde 2014 a vinculação deste documento ao CAR (Cadastro Ambiental Rural), de forma a facilitar a fiscalização e garantir que apenas fazendas com regularização ambiental possam comercializar gado.
Depois de quatro anos de tentativas sabotadas pelos pecuaristas e pelos próprios órgãos públicos, o governo do Pará garante que a obrigatoriedade da vinculação dos dois documentos está finalmente em vigor. Lembrando que estamos falando simplesmente de escrever o número do CAR no campo “Observações” da GTA.
Para Paulo Barreto, pesquisador-sênior do Instituto Amazônico do Homem e Meio Ambiente (Imazon), a única maneira de exercer controle efetivo sobre a pecuária seria o rastreamento de todo o rebanho bovino, animal por animal, através de sistemas de microchipagem ou brincagem (brincos).
A tecnologia já está disponível e é utilizada pelas fazendas que exportam para o mercado europeu, que exige a rastreabilidade completa do gado. Outros países, como a Austrália, Uruguai e Canadá, já adotaram estes sistemas para todo o rebanho.
Mas, no Brasil, nem o governo federal nem o setor privado parecem dispostos a comprar esta briga com os produtores rurais e exigir o rastreamento dos rebanhos. Em 2009 o BNDES incluiu o rastreamento individual, do nascimento ao abate, entre as exigências de financiamento para frigoríficos. A diretriz deveria ter entrado em vigor em 2016, o que nunca aconteceu.
E agora Greenpeace?
Se depender de uma nova chacoalhada do Greenpeace, todos podem esperar sentados. A porta-voz Adriana Charoux afirma que no momento não há nenhuma possibilidade de que a organização volte à mesa de negociação.
Apesar de destacar avanços ocorridos desde 2009, Charoux afirma que as empresas que assumiram compromissos públicos com o desmatamento zero na Amazônia falham ao cumprir suas obrigações.
“Prometem mas não entregam”, resume a porta-voz do Greenpeace.
No caso dos frigoríficos, ela afirma que o nível de transparência ainda não é o suficiente para que de fato se possa punir os fornecedores ilegais. Em relação ao varejo, Charoux critica o excesso de boa-vontade para com os fornecedores que descumprem as regras:
“Não podem apenas contar com o processo de engajamento dos produtores, não pode ser apenas inclusivo. Isso gera muita conversa mas pouca mudança. Realmente precisa tirar da cadeia produtiva os que estão irregulares, até que se regularizem”.
Para a porta-voz, a adequação da cadeia da pecuária depende da capacidade de mobilizar o maior número possível de atores: “As empresas se movem pelo medo da pressão do mercado, pelo medo de arranhar a imagem, e isso acontece quando somos muitos falando sobre isso. Precisa ir além do Greenpeace”.
Adriana Charoux lembra que as principais empresas do mundo (cuja receita somada é duas vezes maior que o PIB do Brasil), têm como meta não comprar commodities de áreas desmatadas de florestas tropicais a partir de 2020. O compromisso foi assumido pelo Consumer Goods Forum, uma aliança que inclui, por exemplo, o GPA, o Carrefour e o Walmart. “2020 está aí. As empresas não podem mais adiar, elas têm essa responsabilidade e não podem falhar”, afirma a porta-voz.
Desmatamento zero em looping
Brasília, 21 de novembro. O Seminário chega ao seu final, e a mediadora do evento pede ao que restou da plateia que escreva sugestões para os próximos passos a serem dados. Enquanto todas as ideias são condensadas em um único documento, Caio Penido pede a palavra.
Penido é diretor do Instituto Mato Grossense da Carne (Imac), herdeiro do grupo Roncador (um dos principais grupos agropecuários do Brasil) e o novo presidente do GTPS, cargo que ocupará pelos próximos três anos. Também é um dos fundadores da Liga do Araguaia, movimento de produtores rurais do Médio Araguaia (MT) que desenvolve um modelo sustentável de pecuária de corte da região.
Ele discorda que o documento final do evento proponha a busca do desmatamento zero na Amazônia, termo que, segundo ele, gera grande desconforto entre os produtores rurais. Para Penido, o compromisso tem que ser com o Código Florestal, e não com o desmatamento zero.
Juliana Simões, do MMA, argumenta que essa discussão foi encerrada há 9 anos, quando os frigoríficos se comprometeram com o desmatamento zero junto ao MPF e ao Greenpeace. Para Penido, no entanto, aquele acordo fora feito sob a pressão do Greenpeace e do MPF. Ele pede a construção de um novo acordo, genuíno e espontâneo.
Todos concordam em discutir a sugestão em um próximo encontro.
No dia seguinte, o governo federal divulgou os dados do Prodes (Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite), que mostraram um aumento de 13,7% no desmatamento da Amazônia entre 2017 e 2018, na comparação com o ano anterior. É o maior patamar da última década, com 7.900 mil km² de floresta derrubados.
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Sobrou, uma ação civil pública ou popular (ver o critério) dos advogados da entidade contra MPF, União, estados, Ibama, Icmbio e abatedouros/frigorificos. Chamando cada uma para as suas responsabilidades. Sem conversinha, é no prego. Sem chororo.