Muito ágil e de hábitos noturnos, o animal já prejudica a agricultura nas regiões Sul, Sudeste, Centro-oeste e Nordeste. Seus impactos econômicos e ambientais precisam ser estudados a fundo. A espécie europeia avança no Brasil e outros países vizinhos desde o Uruguai, onde chegou há 140 anos.
O fim do dia se tornou um momento de tensão para produtores brasileiros, pois à noite o lebrão se torna mais ativo e devora lavouras comerciais e caseiras. No sul de Santa Catarina, fruticultores de municípios como Meleiro, Sombrio e Santa Rosa do Sul perderam safras inteiras este ano.
Com um hectare produzindo maracujás vendidos para São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo, Marlon Schuvartz viu 800 de 2,4 mil pés da fruta serem destruídos pelo animal. “Esse ano foi fora do comum. Praticamente todos os produtores de maracujá, feijão e milho foram afetados”, conta.
Ao contrário de outros agricultores, Schuvartz conseguiu investir R$ 4 mil num cercado para conter os ataques da voraz espécie. “Desistir não adianta, se não plantar não colhe”, diz. Novas mudas foram cultivadas em seguida. “Mas mudar o período de safra reduz o valor de venda da produção”, relata.
Dispersão facilitada
A realidade de pequenos agricultores catarinenses ecoa em toda a Região Sul e nos estados de São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Goiás e Bahia, relata Clarissa da Rosa, pesquisadora no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) que há mais de uma década acompanha invasões biológicas.
Ela conta que até 9 filhotes podem nascer nas duas gestações anuais da espécie. “A espécie se reproduz ‘que nem coelho’”, diz a doutora em Ecologia pela Universidade Federal de Lavras (UFLA). Mas outros fatores facilitam sua dispersão, em cerca de 45 km anuais no país.
O nome científico do lebrão, Lepus europaeus, remete sua origem à Europa, onde ocupa campos naturais. Isso explica sua adaptação ao Pampa, bioma onde predominam pastagens nativas. Algo diferente do tapiti (Sylvilagus brasiliensis), coelho nativo que prefere florestas, do Brasil ao México.
“A lebre-europeia vem subindo pelo Brasil acompanhando o desmate da Mata Atlântica e do Cerrado para formar pastagens para gado e lavouras”, revela Clarissa da Rosa, do Inpa. “Esses ambientes favorecem sua dispersão. Ela se dá bem inclusive em lavouras de soja”, reforça a pesquisadora.
Na Região Sul o lebrão se dispersou há décadas e já é capturado por animais selvagens como onça-parda e gato-do-mato. “Mas essas capturas eventuais não dão conta de controlar as populações crescentes da espécie exótica”, detalha Clarissa da Rosa.
Com pernas longas, capazes de longos saltos e chegando a 60 km/h, lebres adultas dão um sufoco na grande maioria dos carnívoros brasileiros. Na Europa, a espécie é predada por animais como lobo-cinzento (Canis lupus) e lince (Lynx lynx), cujas números encolhem pela caça.
Mãos quase atadas
Mesmo pipocando no país, os prejuízos da lebre-europeia ainda não receberam a devida atenção. “Sem investir em pesquisa é mais difícil controlar sua dispersão”, ressalta Clarissa da Rosa. “A lebre pode inclusive espalhar doenças para animais nativos”, lembra a pesquisadora.
Enquanto isso, produtores tentam de tudo para reduzir os danos gerados pelo lebrão. No sul de Santa Catarina, todavia, cercas elétricas, arapucas com itens como batata-doce e cenoura, luzes automáticas, criolina, ciprestes e naftalina – que exalam forte cheiro – não deram conta do recado.
“Em poucos dias chovia [lavando os químicos] ou o lebrão se adaptava e voltava às lavouras”, conta o agricultor Marlon Schuvartz, em Meleiro (SC). “Isso é uma grande preocupação para quem trabalha na roça, além do clima que vem mudando e afetando a produção”, destaca.
Vice-presidente da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de Santa Catarina (FETAESC), Luiz Sartor avalia que as medidas usadas pelos produtores atenuam apenas temporariamente os estragos. “Faltam soluções efetivas para os problemas causados pelo lebrão”, reclama. A Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) não atendeu aos nossos pedidos de entrevista até o fechamento da reportagem.
Podendo ser liberado por projetos de lei tramitando no Congresso Nacional, o abate de lebres a tiros é uma aposta de caçadores para controlar os números da espécie no Brasil, assim como é permitido para o javali, também europeu. Contudo, cientistas avisam que os riscos à fauna nativa seriam ainda maiores. O porte das armas para abater o lebrão é menor do que o usado para o javali, permitindo matar inúmeras espécies brasileiras. “Regulamentar a caça da lebre não é uma alternativa”, diz Clarissa da Rosa, do Inpa.
“A melhor forma de controle da lebre-europeia é parar de desmatar e recuperar florestas. Isso vale para essa e outras espécies adaptadas a ambientes campestres”, lembra a cientista.
Invasora transatlântica
O “lebrão” chegou à América do Sul em 1884, quando colonos alemães – saudosos de sua carne – passaram a criá-los em jaulas numa fazenda no estado uruguaio de Flores, conta uma reportagem do site independente La Diaria. Poucos anos depois, teriam fugido por tocas cavadas por tatus-peba (Euphractus sexcinctus). O animal então se reproduziu velozmente nos ambientes pampeanos do país vizinho, de onde não tem hora para sair.
Até 60 mil desses rápidos mamíferos são abatidos dentro e fora das temporadas anuais de caça autorizada, de 15 de abril a 15 de agosto. Frigoríficos também emitem permissões de 90 dias para caçadas comerciais. Carne e peles do animal são exportadas e consumidas pelos uruguaios.
“Espécies nativas de perdizes, patos e pombas também são abatidas por períodos anuais. Já exóticas invasoras como javalis e cervos axis [natural da Ásia] podem ser caçadas praticamente o ano inteiro”, conta Hugo Coitiño, do Comitê de Espécies Exóticas Invasoras do Ministério do Ambiente do Uruguai.
Mas assim como no Brasil, a Ciência do país vizinho segue caolha para os impactos generalizados do lebrão, sobretudo em parques e outras unidades de conservação. Ao mesmo tempo, o governo começa a se movimentar para reconhecer e fazer frente aos prejuízos.
“O governo está trabalhando para listar as espécies invasoras de alto risco para o país e traçar ações para seu controle”, revela Coitiño, também pesquisador junto ao Departamento de Biologia Animal da Universidade de Salamanca (Espanha).
Balanço nacional
Como mostrou ((o))eco em setembro passado, espécies invasoras causam prejuízos econômicos anuais globais somando mais de US$ 423 bilhões, ou cerca de RS 2,1 trilhões. Esses custos quadruplicaram desde os anos 1970 e o problema influencia 60% das extinções mundiais de plantas e de animais.
Já no Brasil, os estragos gerados por 476 espécies exóticas invasoras chegam a US$ 3 bilhões ao ano, ou quase R$ 15 bilhões, revela um relatório inédito assinado por 73 pesquisadores mobilizados pela Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (BPBES).
“A ideia é prover informações objetivas pensando em sua aplicação na construção e implantação de políticas públicas e privadas, assim como de iniciativas de manejo”, diz a pesquisadora Michele de Sá Dechoum, professora adjunta da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e uma das coordenadoras do trabalho.
Do quase meio milhão de espécies exóticas invasoras no Brasil, 268 são animais e 208 são plantas e algas. A grande maioria veio da África, da Europa e da Ásia. Elas aqui chegaram e seguem se dispersando sobretudo pelo comércio desregrado de animais de estimação e de plantas ornamentais.
A publicação lembra que invasões de mosquitos causadores de doenças como dengue, zika, chikungunya e febre amarela ameaçam especialmente a saúde dos brasileiros. No entanto, há no país muitas lacunas de avaliação e de valoração dos impactos de espécies exóticas invasoras.
Os autores do estudo advertem igualmente que instrumentos jurídicos para frear a dispersão de espécies invasoras não são aproveitados e que ações de controle ocorrem de maneira desarticulada e pulverizada pela falta de uma política nacional para fazer frente ao problema.
“Existem incentivos ao uso de espécies notoriamente invasoras e de alto impacto, como a tilápia e o pínus, que exercem uma dominância nos ambientes e ameaçam a permanência das espécies nativas”, destaca o biólogo Mário Luis Orsi, professor da Universidade Estadual de Londrina (UEL) e também coordenador do estudo.
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