Após 13 anos de tramitação no Congresso, a Lei que instituiu a Política Nacional de Pagamento por Serviços Ambientais (Lei nº 14.119) foi finalmente sancionada pela Presidência da República na última semana. Entretanto, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) vetou trechos inteiros do texto aprovado no Legislativo após um raro e difícil acordo entre os ambientalistas e o setor do agronegócio, sobretudo os que tratavam da situação fiscal desses pagamentos e os previam mecanismos de controle e fiscalização no uso de recursos públicos.
De maneira geral, a Lei 14.119 define conceitos, objetivos, ações e critérios de implantação da Política Nacional de Pagamentos por Serviços Ambientais (PNPSA). Ela também cria o Programa Federal de Pagamento por Serviços Ambientais (PFPSA), com o objetivo de efetivar a política no âmbito federal, sem impedir a existência e continuidade de iniciativas públicas e privadas supranacionais.
“A PNPSA dá as diretrizes gerais para os projetos no âmbito do poder público, e em alguma parte pelo setor privado, ao trazer definições como o que são os PSA, quem são os possíveis provedores, quem são os possíveis pagadores. Isso confere mais segurança jurídica aos programas e, nesse primeiro ponto, a Lei é bem sucedida, pois traz definições amplas o suficiente para não restringir ou inviabilizar a multiplicidade de projetos de PSA que já estão em andamento no país. Por outro lado, foram vetados pontos importantes”, diz a pesquisadora Biancca Scarpeline de Castro, professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, co-autora do livro “Quanto Vale o Verde” e de estudos que subsidiaram o Governo Federal na construção da Política Nacional de PSA.
Órgão Colegiado
O projeto aprovado pelo Congresso Nacional em 21 de dezembro do ano passado previa a existência de um comitê – formado por representantes da sociedade civil, setor produtivo e poder público – responsável por discutir prioridades e critérios de aplicação de recursos, monitorar a conformidade dos investimentos realizados e avaliar o Programa Federal, que será gerido pelo Ministério do Meio Ambiente, a cada quatro anos. A criação deste comitê foi inteiramente vetada por Bolsonaro (veto no § 8º do art. 6º e art. 15).
Segundo a organização não-governamental WWF, a inexistência do comitê aumenta a possibilidade de desvio de finalidade no uso dos aportes financeiros. “Sem o órgão colegiado […] ficará muito mais difícil evitar possíveis desvios de finalidade no uso de recursos, pois caberá apenas ao MMA definir, sozinho, quais os critérios adotados para a definição dos beneficiários”, diz nota publicada pela organização.
Cadastro Nacional
Outro trecho vetado por Bolsonaro é o que previa a criação do Cadastro Nacional de Pagamentos por Serviços Ambientais (veto nos arts. 13 e 16), no qual estariam registrados os contratos de PSA no âmbito do Programa Federal (PFPSA), tanto os que envolveriam agentes públicos quanto os privados.
O cadastro, de acesso público, garantiria a transparência dos registros das áreas potenciais e os respectivos serviços ambientais prestados, assim como traria informações sobres os planos e projetos que integram o Programa Federal. Além disso, o cadastro funcionaria como um sistema de integração dos dados de PSA nos diferentes níveis da federação (nacional, estadual, municipal).
Segundo Biancca Castro, o Cadastro também seria importante para a questão da valoração dos serviços ambientais prestados. Atualmente, existem várias metodologias de precificação e valoração desses serviços, como custo por oportunidade de terra, qualidade ambiental da área ou núcleo familiar que habita o local, por exemplo. O texto da Política Nacional do PSA publicado na última semana não trata do assunto. Ele diz somente que o órgão gestor da política, o MMA, será o responsável por apontar diretrizes para uma futura regulamentação sobre o tema.
“Esse cadastro seria super importante, porque iria registar todos os contratos de PSA, tanto no âmbito do programa federal quanto os outros programas já existentes no âmbito dos outros entes federativos, permitindo uma acessibilidade ao público não só das áreas, mas também as metodologias de cobrança, de valoração, formando uma base de dados”, diz a pesquisadora.
Segundo ela, no documento “Subsídios técnicos para a construção de uma Política Nacional de Pagamento por Serviços Ambientais”, enviado em 2016 ao Governo Federal, havia a sugestão de uma metodologia de valoração dos benefícios de um programa nacional de PSA, bem como de seus custos de implementação e manutenção, a partir do custo de oportunidade de terras. O estudo, produzido em conjunto com o Grupo de Pesquisa em Economia do Meio Ambiente (GEMA) da Universidade Federal do Rio de Janeiro, apresentava uma discussão sobre possíveis fontes de financiamento, mas que “provavelmente está engavetado”, diz a pesquisadora.
Incentivos tributários
O texto que havia sido aprovado no Congresso em dezembro passado previa benefícios fiscais e incentivos tributários a quem quisesse investir em programas de PSA, como dedução no Imposto de Renda, por exemplo. Ao vetar os artigos referentes ao tema (Arts. 17, 18 e 19), Bolsonaro, além de excluir esses benefícios, também eliminou a oportunidade de que o Poder Público pudesse estabelecer outros incentivos tributários, como créditos com juros diferenciados para atividades de recuperação de áreas degradadas e incentivos creditícios para o manejo sustentável da biodiversidade e demais recursos naturais.
“A questão dos incentivos foi retirada nos vetos com o argumento de que teria impacto financeiro e orçamentário. Só que isso fragiliza a Política, que já não tem orçamento para sua realização e agora não tem incentivos. A situação fiscal sobre o PSA, de uma maneira geral, não foi resolvida, e essa é uma grande limitação da Política Nacional, porque a gente não sabe como ela se enquadra no sistema tributário fiscal nacional”, diz Biancca.
Outros problemas da Lei
Para além dos vetos de Bolsonaro, o Programa Federal de Pagamento por Serviços Ambientais traz um grande gargalo, que é a origem dos recursos a serem investidos nos projetos de PSA. O texto diz apenas que, “Para o financiamento do PFPSA poderão ser captados recursos de pessoas físicas e de pessoas jurídicas de direito privado e perante as agências multilaterais e bilaterais de cooperação internacional, preferencialmente sob a forma de doações ou sem ônus para o Tesouro Nacional, exceto nos casos de contrapartidas de interesse das partes”. Em outras palavras: os recursos virão apenas de doações e não há previsão de aportes originários do orçamento da União.
Em entrevista à TV Brasil, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, disse que os recursos também poderiam vir do mercado de créditos de carbono. Desde o início do governo, o Ministério do Meio Ambiente e o Itamaraty acusam a comunidade internacional de não cumprir acordos de financiamento climático. Para pesquisadores, não existe obrigatoriedade de pagamento ao Brasil e, portanto, o país não tem créditos de carbono para receber.
Segundo Biancca Castro, o ideal seria que a PFPSA previsse um “pool” de fontes de recursos, que incluiria orçamento público, recursos de multas ambientais, doações e, principalmente, pagamento direto por aqueles que se utilizam dos serviços, como já acontece em alguns municípios no uso da água. “Você pautar uma política, seja ela nacional, estadual ou municipal, por recursos advindos apenas de doação é fragilizar demais essa política, porque ela não tem garantia de continuidade. O ideal seria que ela entrasse no orçamento público, o que daria uma prioridade para as questões ambientais, e que se considerasse esse pool de fontes de financiamento para a garantia de andamento dos projetos.”
Outro ponto importante da lei 14.119 é a autorização, dentro do Programa Federal, de Áreas de Proteção Permanente (APP) e Reserva Legal (RL) como áreas elegíveis para receber programas de PSA.
Na entrevista à TV Brasil, Salles informou que, na primeira fase do PFPSA, serão pagos R$ 250 por hectare de excedente de Reserva Legal e R$150/ha para áreas em recuperação. “Havendo recursos, o que queremos é remunerar a própria Reserva Legal, e não apenas o excedente”, disse o ministro. Esse ponto acendeu o alerta de ambientalistas porque as grandes propriedades tendem a se beneficiar da política simplesmente por cumprirem algo que a lei determina, que é a proteção de suas APPs e RLs, quando a ideia do PSA era justamente criar uma adicionalidade, incentivando a proteção de áreas para além daquelas previstas em lei. Portanto, nesse sentido, a lei não traz adicionalidade.
Possibilidade de derrubada dos vetos
Os vetos do presidente Jair Bolsonaro na Lei 14.119/2021 serão analisados novamente pelo Congresso. Várias organizações e coalizões já se manifestaram favoráveis à derrubada dos vetos, como a Coalizão Brasil Clima, Floresta e Agricultura, movimento composto por mais de 260 representantes do agronegócio, sociedade civil, setor financeiro e academia que participou ativamente da construção do texto da política.
“Em nome do amplo processo de diálogo que aconteceu nos últimos anos, solicitamos ao Congresso Nacional que os vetos sejam derrubados, pois eles fragilizam o trabalho que foi construído a tantas mãos e não estão alinhados com a visão de uma política pública participativa e transparente”, disse a Coalizão, em texto divulgado em suas redes.
A ((o))eco, Marcelo Elvira, analista de políticas públicas da WWF Brasil, disse que, devido à grande articulação entre diferentes setores no Congresso para a construção do texto da Política, é possível que os vetos caiam. No entanto, o cenário ainda é de incerteza, devido às mudanças que estão para acontecer nas presidências da Câmara e Senado.
“Numa escala de ‘chance remota’, ‘chance possível’ e ‘chance provável’, eu ficaria em ‘chance possível’, porque teve uma articulação importante com a bancada ruralista e pode ser que eles se movimentarem para derrubar os vetos. Mas é importante lembrar que, com a eleição dos dois novos presidentes [da Câmara e Senado] e a lista de vetos a serem analisados, que é bem grande, isso deve levar um tempo. Tem que ter uma articulação para isso acontecer e já tem bastante gente conversando sobre isso, mas com esse novo contexto político, sempre fica a dúvida”, disse.
O que é o PSA
O Pagamento por Serviços Ambientais (PSA) é um instrumento econômico baseado no princípio do “pagador” (usuário) / “recebedor” (provedor), no qual aqueles que se beneficiam dos serviços ambientais (como usuários de água limpa, por exemplo) devem pagar por tais serviços, e aquele que contribuem para a geração desses serviços (como os proprietários de terra com nascentes) devem ser compensados por proporcioná-los.
Dessa forma, essa ferramenta busca conservar e promover o manejo adequado do meio ambiente, por meio de atividades de proteção e de uso sustentável dos recursos.
Para entender o que são os serviços ambientais, é preciso antes entender o conceito de serviços ecossistêmicos, que nada mais são do que os benefícios que o ser humano obtém da natureza, derivados, direta ou indiretamente, do funcionamento dos ecossistemas.
Segundo a Plataforma Intergovernamental Sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos da ONU, existem quatro tipos de serviços ecossistêmicos:
1) os de Provisão – que fornecem bens ou produtos utilizados pelo ser humano, como água, alimentos, madeira, fibras, extratos;
2) os de Suporte – que mantém a perenidade de vida na Terra, como ciclagem de nutrientes, decomposição de resíduos, polinização, dispersão de sementes, proteção contra radiação solar ultravioleta, manutenção da biodiversidade e do patrimônio genético;
3) os de Regulação – que concorrem para manutenção da estabilidade dos processos ecossistêmicos, como sequestro de carbono, moderação de eventos climáticos extremos, manutenção de equilíbrio de ciclo hidrológico;
4) e os Culturais – que constituem benefícios não materiais providos pelos ecossistemas, por meio da recreação, turismo, identidade cultural, desenvolvimento intelectual, entre outros.
Os serviços ambientais seriam as atividades individuais ou coletivas que favorecem a manutenção, a recuperação ou a melhoria desses serviços ecossistêmicos.
Existem várias metodologias para definir quanto vale um serviço ecossistêmico, aplicadas de forma pulverizada nos vários projetos existentes no país. Por isso a necessidade de uma Política Nacional que também contemplasse o tema da valoração.
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Excelente a abordagem e explicação de vocês!!
Tem que parar de criar colegiado pra gerir esse tipo de coisa mesmo. Isso subverte totalmente a representação eleitoral. Um pequeno grupo de indicados tendo o privilégio de decidir coisas que podem ser contrárias ao que os representantes decidiram. E existem leis, regras, órgãos de controle que são legítimos pra fiscalizar e definir a aplicação.
Falta transparência. De novo, caixinha preta da VELHA POLÍTICA.