Todo mundo, alguma vez na vida, já se deparou com um animal silvestre em apuros. Seja um filhote perdido, seja um adulto doente ou ferido. O nobre ato de ajudar nem sempre é tarefa fácil, pois o socorro especializado pode estar inacessível ou até inexistir na região. Aos que optam por resgatar e cuidar por si mesmos, resta buscar orientações confiáveis e torcer para que autoridades não batam à sua porta, já que é considerado crime manter o animal em casa ou transportá-lo sem autorização.
A discussão sobre a guarda doméstica de animais silvestres é bastante controversa. Uns defendem que indivíduos mantidos em cativeiro doméstico, além de terem sua saúde e comportamento prejudicados, estão impedidos de cumprir seu papel na natureza e podem trazer riscos aos cuidadores, devendo ser encaminhados para centros especializados. Outros acreditam que os animais estariam melhor cuidados por voluntários do que sob a tutela do Estado em locais que, muitas vezes, encontram-se sobrecarregados ou têm atuação limitada.
Além dessas duas visões, o tema também é carregado de nuances. No caso de indivíduos impossibilitados de serem reabilitados e devolvidos à natureza, por exemplo, algumas iniciativas têm surgido para possibilitar a guarda voluntária.
Centros especializados
O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) orienta que o resgate de animais silvestres seja efetuado pelo órgão ambiental responsável na região e que o transporte seja solicitado previamente ao Instituto. A destinação obrigatória são os Centros de Triagem e Reabilitação de Animais Silvestres (Cetas, Cetras ou Cras) administrados pelo Ibama ou por órgãos estaduais, municipais, universidades e instituições privadas. Nestes locais, os animais serão avaliados e, se possível, reabilitados e devolvidos à natureza.
Contudo, há somente 24 Cetas geridos pelo Ibama e cerca de 40 Cetras, Cras ou unidades especializadas geridas por outros órgãos, totalizando aproximadamente 64 Centros especializados em triagem, reabilitação e manejo de fauna silvestre no Brasil. Manejar pessoal e recursos para o resgate e encaminhamento de animais silvestres até esses centros pode ser inviável em alguns casos.
O ativista ambiental José Truda Palazzo Jr., que já resgatou e cuidou de gambás (Didelphis spp., também conhecidos como timbus, saruês ou sariguês), acredita ser absurdo exigir que animais silvestres comuns em áreas urbanas, quando resgatados, passem por um Cetas antes que se possa cuidar voluntariamente. “Os Cetas são pouquíssimos frente à extensão do território e à multitude de resgates que acontecem em cidades longe deles. Dados oficiais mostram que esses centros, apesar da dedicação de seus funcionários, são mal equipados e não conseguem cuidar adequadamente ou salvar a vida da maioria dos gambás resgatados, principalmente dos neonatos: quase 70% morrem nos Cetas”.
No caso específico dos gambás, o ativista esclarece que eles são confundidos com ratos (quando na verdade são marsupiais) e por isso são muito comuns os casos de agressões a gambás por pessoas. “Alguns são mortos a pauladas ou até queimados vivos. E isso acontece muito com fêmeas com a bolsa cheia de filhotes, que ficam mais lentas e vulneráveis quando saem em busca de comida”.
Truda relata que resgatou duas filhotes recém nascidas, que necessitaram de alimentação especial e massagem abdominal a cada duas horas por várias semanas. “Elas não são ‘pets’, são animais abrigados. Se habituaram à presença humana e, por isso, corriam o risco de serem mortas caso fossem soltas. A decisão de mantê-las seguiu também a árvore de decisão sobre soltura recomendada pela Associação Brasileira de Veterinários de Animais Silvestres (Abravas)”.
Apesar dos esforços para resgatá-las e de um requerimento de concessão de um Termo de Guarda de Animal Silvestre (TGAS) ao Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema) da Bahia em março deste ano ⎼ que não foi respondido ⎼, no fim de setembro o ativista, que estava em viagem a trabalho, foi procurado em sua residência pela fiscalização ambiental do órgão. Ao ser questionado pela reportagem, o Inema não se manifestou.
O que diz a legislação
A Resolução nº 457/2013 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), que dispõe sobre o depósito e a guarda provisórios de animais silvestres, traz as figuras do guardião ou depositário de fauna silvestre quando houver a impossibilidade de destinação para centros especializados.
Após a passagem da gestão de fauna do Ibama para os Órgãos Estaduais de Meio Ambiente (OEMAs) em 2011, alguns deles adotaram procedimentos semelhantes, como o Instituto de Meio Ambiente e Recursos Hídricos da Bahia (Inema), que publicou a Portaria nº 22.129/2021 que regulamenta a guarda provisória mediante TGAS até que o animal possa ser destinado a criadouros científicos ou conservacionistas, mantenedouros de fauna silvestre ou jardins zoológicos, devidamente licenciados e autorizados.
Contudo, para obter um TGAS ou a guarda de algum animal silvestre, é necessário que o animal passe por um centro especializado ou provenha dele. Além disso, o resgatista voluntário permaneceria legalmente irregular ao transportá-lo ou ao manter o animal sob seus cuidados.
Em um artigo jurídico onde analisa a jurisprudência sobre a fauna silvestre abrigada por voluntários, Truda argumenta que o resgatista não pode ser penalizado administrativa ou criminalmente pelo agente público, já que resgate e abrigo não constituem conduta tipificada na lei de crimes contra a fauna. No seu entendimento, seriam serviços de utilidade pública prestados por quem os pratica, dedicando tempo e recursos próprios.
Proposta de Regulamentação
O Instituto Brasileiro de Conservação da Natureza (Ibracon) e a Comissão de Proteção e Defesa dos Animais da OAB Nacional propuseram, no fim de setembro de 2021, uma Instrução Normativa específica ao Ibama para reconhecer e regularizar o resgate e os cuidados de gambás por voluntários privados, permitindo o registro dos animais resgatados no SisFauna.
O objetivo da IN seria dar segurança jurídica aos resgatistas, controle sobre a atividade à autoridade ambiental e ser uma ferramenta para monitorar o tema de forma direta, gerando dados regulares sobre distribuição e natureza dos eventos de resgate e da presença de gambás no meio urbano através de um cadastro nacional de resgatistas e animais resgatados. Contudo, após um ano sem tramitação do processo, o Ibama arquivou a proposta sem um parecer final.
“Não faz qualquer sentido ter de dar entrada em gambás resgatados nos Cetas se um simples registro formal dos resgatistas pode dar ao Estado o conhecimento sobre quem, onde e quantos animais estão sendo resgatados, reabilitados e/ou abrigados. A proposta tinha a intenção de deixar expresso em norma federal algo que a jurisprudência nos tribunais já confirma sobre a interpretação das leis ambientais: que resgatar e abrigar os gambás nas nossas cidades não é infração ambiental’, defendeu Truda, um dos principais articuladores da regulamentação.
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