Reportagens

Monitores da biodiversidade compartilham suas experiências

Seminário promovido pelo ICMBio e pelo Ipê reúne histórias de quem trabalha e vive os desafios de trabalhar diretamente com conservação

Daniele Bragança ·
1 de julho de 2019 · 5 anos atrás
Raimunda de Jesus Soares relata sua história no II Seminário de Construção Coletiva de Aprendizados e Conhecimentos. Foto: PCAB/Flickr.

Raimunda de Jesus Soares foi a primeira mulher a trabalhar como monitora de biodiversidade dentro da Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns, no Pará. A novidade movimentou a fofoca entre os moradores. “Tem gente que não entende uma mulher estar no meio de tantos homens”, disse, provocando a curiosidade da plateia que participou do II Seminário de Construção Coletiva de Aprendizados e Conhecimentos, promovido pelo Instituto Ipê e ICMBio na semana do meio ambiente. 

A história de Raimunda – que faz parte do monitoramento e cuida das fichas das casas, onde aplica os questionários para saber o que a população local anda caçando –, é uma de pelo menos uma dúzia de monitores que saíram de suas comunidades localizadas na Amazônia, dentro ou fora de unidades de conservação (UCs), para relatar suas experiências na capital do país. 

Acostumados desde sempre a andar no mato, conhecedores como poucos do próprio território, treinados por pesquisadores e gestores para preencher fichas, catalogar espécies, medir troncos de árvores ou cuidar das armadilhas fotográficas, os monitores que participam do Projeto de Monitoramento Participativo da Biodiversidade, iniciativa do ICMBio – em conjunto com o Instituto Ipê –, lidam diariamente com os desafios de fazer parte do grupo “da conservação”, sendo do “time dos moradores”. Os dois chapéus não são incompatíveis, relatam os monitores, se a pessoa passar por cima dos próprios preconceitos. 

“Eu era muito machista na época, para mim mexer com borboleta, mexer com bichinho era coisa de baitola. Passou um tempo e um amigo me chamou para fazer um curso de brigadista e eu topei. Entrei e aí fiz o curso de monitor de borboleta, de mamífero… No fim não tinha nada a ver o que eu estava pensando. O monitoramento é para quebrar preconceitos”, diz Bruno Basílio Zenke, morador da Floresta Nacional de Jamari, em Rondônia.

“Se você chegar em todo local vai ter um preconceito da própria comunidade em si. Pra que proteger isso aqui? pra quê? qual a necessidade? Então, se a gente não acordar agora e proteger agora, futuramente nossos netos, nossos bisnetos não vão ter aquilo ali. Se a gente não fizer agora, amanhã não tem”, afirma Bruno. 

Monitor da biodiversidade na Reserva Extrativista do Cazumbá-Iracema, no Acre. Foto: PCAB/Flickr.

Mas o maior preconceito que os monitores sofrem é a tendência de serem confundidos com os servidores do órgão ambiental. Por mais que a gestão baseada apenas no comando e controle tenha mudado, principalmente dentro das UCs de uso sustentável, o órgão ambiental ainda é o Estado dentro do território, controlando, com multas e restrições, os maus usos. Nesse contexto, os monitores são vistos como “vira-casacas”. 

“O ICMBio vai para unidade para fazer a fiscalização. Quando o monitor vai fazer o monitoramento, a população não nos vê como monitores, mas como funcionários do ICMBio”, diz Jackiel Cássio, monitor no Parque Nacional do Tumucumaque, no Amapá, onde trabalha desde 2014. A unidade é o maior parque do país, com 38.651,885 km². 

“Os monitores do Tumucumaque inibem a entrada de pessoas no parque devido ao medo de ser preso e tudo mais. E eu acho ainda bem que eles estão pensando isso, porque para chegar no Tumucumaque são 4 horas e meia de voadeira com o motor 40 e três horas de motor 60 (…). Às vezes a gente sobe com algum funcionário antigo ou fiscal, nem todos têm arma. Ainda bem que eles [os caçadores] pensam que a gente tem o poder de fiscalização, porque se eles soubessem que a gente está lá desarmado a 84 km do município de Serra do Navio… vocês já sabem como é, tem gente que é ignorante”, diz Jackiel, que mora no entorno da unidade.

Monitor não é fiscal

A segurança dos monitores é um problema comum das comunidades que moram dentro e fora de unidades de conservação. A orientação é não reagir. 

“Eu só quero dizer que um cara me parou. Eu acho que ele estava com vontade de acabar comigo, mas eu não liguei para o que ele estava falando e ele disse ‘Vai pra lá, seus escravos do ICMBio, vocês trabalham como escravos, se você fosse ao menos pago para trabalhar, poderia exigir alguma coisa’. Eu perguntei para ele: ‘Meu amigo, você compra o que é seu?’ ‘Não’. ‘Então como é que você quer que o ICMBio pague, se eu estou cuidando do que é meu? Eles não têm o direito de pagar, porque se eu estou cuidando do que é meu, é meu, não é do ICMBio. Então, graças a Deus, o ICMBio ainda está ajudando a proteger, se não fosse isso já tinha acabado. Lembre-se de que você vai ser pai, vai ter uma família. Você vai se lembrar daquela palavra que você falou para mim, ‘vai, escravo do ICMBio’. No dia em que eu for embora daqui, você vai falar, tinha um abestado e hoje eu vou comer daquilo que ele trabalhou e deixou’. Eu disse, ‘vai, não vou denunciar você, se eu fosse denunciar, eu tinha prova para denunciar’, peguei o celular e fotografei. Quando ele viu o celular, ele ficou com medo e saiu. Graças a Deus o celular foi a arma que fez ele correr”, relatou Manuel dos Santos, seu Socó, morador da comunidade Nova Esperança, na Reserva Biológica do Rio Trombetas, em Oriximiná, Pará. 

Crianças quilombolas da Reserva Biológica do Rio Trombetas participam da cerimônia de soltura da tartaruga-da-Amazônia. Foto: Marcio Isensee e Sá.

Socó é monitor de ninhos de tartarugas desde 2003. Entre setembro e janeiro, se muda para as praias formadas com a baixa do rio para proteger os ninhos de tartaruga-da-Amazônia (Podocnemis expansa), do tracajá (Podocnemis unifilis) e do pitiú (Podocnemis sextuberculata). Em janeiro de 2019, a reportagem de ((o))eco esteve na região, acompanhando o final da desova das tartarugas. Os monitores do Projeto Quelônios do Rio Trombetas (PQT) não recebem salário, só uma ajuda de custo com gasolina, equipamento e uma cesta básica completa por mês pelo trabalho voluntário. Daí a crítica do outro morador ao seu Socó. 

As dificuldades no monitoramento de espécies que não são usadas para a produção humana advém do desafio de demonstrar qual a importância de proteger aquilo. Há um mito compartilhado da natureza inesgotável. Se Deus deu, não vai acabar, então pra quê proteger? Para espécies que são comercializadas, como a pesca ou produtos florestais não-madeireiros – borracha, a castanha-do-Brasil, açaí, etc. – a melhoria no manejo aumenta a produção e diminui perdas. O ganho econômico dilui as resistências. 

“Ainda bem que o nosso trabalho mostra o resultado muito rápido. Então a gente cala a boca de quem nos critica. Vou dar o exemplo da castanha. Quando começamos, as pessoas perguntavam o porquê. Agora elas já estão interessadas. O resultado vem rápido”, diz Raimundo Nonato Soares, morador da Reserva Extrativista do Cazumbá-Iracema, no Acre. Além de castanha, Nonato trabalha no monitoramento de borboletas e mamíferos.  

As UCs estão cumprindo seu papel?

O monitoramento participativo é um tronco dentro de um projeto maior, o MONITORA, que visa coletar dados para responder se aquela unidade está realmente protegendo o que deveria proteger. Atualmente, cerca de 90 unidades de conservação federais promovem algum tipo de monitoramento da biodiversidade. Desse total, 17 realizam o participativo. 

“O monitoramento é um mote. Ele faz as pessoas se sentarem em volta da mesa e conversarem. Temos tido discussões muito ricas com ele,  desde decisões sobre manejo melhores, adoção de boas práticas (…). Mesmo que os dados ainda não indiquem algo, as pessoas já sabem o que tem que fazer”, diz Kátia Torres, Coordenadora-Geral de Pesquisa e Monitoramento da Biodiversidade do Instituto Chico Mendes (ICMBio). 

O ICMBio não separa o monitoramento realizado por pesquisadores do que é realizado pelos comunitários de dentro ou do entorno. Todos são participativo, o grau de envolvimento é o que muda. 

O Instituto Ipê ajudou o ICMBio ao testar novos procedimentos e ferramentas para tornar o monitoramento aplicável, ao mesmo tempo que respeita as realidades locais. O grande desafio era como esses dados, gerados localmente, poderiam ser avaliados conjuntamente com outros dados. Após 6 anos de trabalho, tanto o ICMBio quanto o Instituto Ipê consideram que chegaram ao termo satisfatório. Os monitores sabem como coletar as informações, o armazenamento já existe, e os resultados, em algumas UCs, já foram copilados. 

“Nas reservas extrativistas, mesmo aquelas que têm muitas famílias, há populações muito boas de espécies de mamíferos. É o que mostram os dados. Essa é uma informação super importante para proteger o Sistema de Unidades de Conservação. E essa informação é importante, inclusive, dentro dos meios conservacionistas, que muitas vezes têm uma alta restrição em relação as unidades de uso sustentável”, diz Kátia. 

Participantes do II Seminário de Construção Coletiva de Aprendizados e Conhecimentos. Foto: Daniele Bragança.

“As unidades de conservação de uso sustentável protegem biodiversidade, inclusive espécies ameaçadas e espécies cinegéticas. Essa informação serve inclusive para quem tem a concessão de direito real de uso das terras, que são as comunidades tradicionais, dizerem: “sim, nós prestamos um serviço de conservação, por isso que a gente tem a concessão do direito real de uso”. Essa é uma informação que tem um valor político também”, finaliza.

Para Suzana Pádua, presidente do Instituto de Pesquisas Ecológica (IPÊ), os dados em si do monitoramento não são o aspecto mais importante, mas sim o de empoderar o indivíduo no processo de proteção da área. “A tendência sempre foi de alijar o ser humano do processo da proteção dessas áreas. ‘Ah, ser humano quando entra estraga tudo’. O que nós estamos mostrando é o inverso. É que o ser humano, se entrar de uma forma bem construída e que ele faça parte, vai ser o primeiro a querer proteger. Ele vai ser um protagonista dessa conservação”. 

A percepção de Suzana é compartilhada por frases ditas pelos monitores ao longo de três dias de encontro. “Eu não sabia o quanto isso era importante” ou “Eu não sabia que eu era importante” e suas variáveis fizeram parte dessa troca de experiência. 

Como Raimunda de Jesus Soares, da Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns, no Pará, personagem que abriu essa matéria. “Eu sou a pessoa mais feliz do mundo porque eu nunca pensei eu ser importante. Para mim era só importante eu ser mãe”, disse.

 

 

Leia Também 

Soltura de filhotes marca esforço para conter a extinção da Tartaruga-da-Amazônia

Castanheiros atuam como guardiões da floresta amazônica no Amapá

Dezessete anos de luta pela criação da Reserva Extrativista Rio Branco-Jauaperi

 

  • Daniele Bragança

    Repórter e editora do site ((o))eco, especializada na cobertura de legislação e política ambiental.

Leia também

Reportagens
5 de setembro de 2018

Dezessete anos de luta pela criação da Reserva Extrativista Rio Branco-Jauaperi

A saga pela decretação da área protegida chegou ao fim em junho deste ano, após anos de espera. Na semana em que se celebra a Amazônia, o fotógrafo Maurício de Paiva conta essa história

Reportagens
11 de junho de 2019

Castanheiros atuam como guardiões da floresta amazônica no Amapá

A rotina dos extrativistas do rio Iratapuru na época da colheita é de longas viagens e meses de trabalho em campo. Especialistas enfatizam a importância da atividade para conservação da floresta

Reportagens
11 de fevereiro de 2019

Soltura de filhotes marca esforço para conter a extinção da Tartaruga-da-Amazônia

((o))eco acompanha a luta pela preservação da Tartaruga-da-Amazônia, criticamente ameaçada de extinção no rio Trombetas. Comércio ilegal empurra a espécie para o desaparecimento

Mais de ((o))eco

Deixe uma resposta

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.