Reportagens

Dezessete anos de luta pela criação da Reserva Extrativista Rio Branco-Jauaperi

A saga pela decretação da área protegida chegou ao fim em junho deste ano, após anos de espera. Na semana em que se celebra a Amazônia, o fotógrafo Maurício de Paiva conta essa história

Maurício de Paiva ·
5 de setembro de 2018 · 6 anos atrás
Crianças observam o rio Jauaperi, onde a comunidade Xixuaú se estabeleceu. Foto: Maurício de Paiva.

No dia do Meio Ambiente, 05 de junho, o governo publicou um decreto criando a Reserva Extrativista Rio Branco-Jauaperi. A publicação no Diário Oficial deu fim a uma espera de 17 anos em que a comunidade de Xixuaú, através da Associação Amazônia, solicitou ao governo federal a criação de uma reserva extrativista, como forma de se defender da pesca de predação intensiva e à caça aos quelônios (ovos e carne de tartarugas e tracajás), que vinham comprometendo a vida da comunidade.

O conceito de “Resex” surgiu para assegurar e melhorar a permanência e a subsistência de populações tradicionais em suas regiões, transferindo o controle dos “patrões” para a condição jurídica de terra pertencente à União, formando uma “unidade de conservação” destinada ao usufruto exclusivo de seus moradores. Essa expressão, “populações tradicionais”, tornou-se corrente a partir das mobilizações de seringueiros e castanheiros, a exemplo do líder Chico Mendes. O termo “reserva” veio a público em 1985, em Brasília, lida por ele no encontro Nacional de Seringueiros, onde se propunha o direito de igualdade entre terra indígena e dos seringais.

Mapa da Resex Rio Branco-Jauaperi. Crédito: ISA.

Situada entre Rorainópolis (RR) e Novo Airão (AM), a área totaliza 581.173 hectares, no chamado CCA — Corredor Central da Amazônia. Dentro desse território, a reserva popular Xixuaú-Xiparinã, foi demarcada em 1997 pelos próprios ribeiros, e somava 179 mil hectares – ou 33 mil km2, formados por terra firme, igapós e campinas.

Em 2011, o fotógrafo Maurício de Paiva esteve em Xixuaú e documentou a vida dos moradores da comunidade, agora finalmente pertencente ao povo que ali escolher fincar raízes. Esse trabalho nunca foi publicado. No dia da Amazônia, 05 de setembro, decidimos publicar essa história, com pequenas modificações e atualizações.

Comunidade Xixuaú-Xiparinã

“Como todo ribeirinho na Amazônia, Nádia é um repositório de conhecimentos empíricos construídos na relação pragmática com a natureza, que são transmitidos oralmente através das gerações.”

Era hora do crepúsculo à beira do rio Jauaperi, afluente do Rio Negro, na fronteira de Roraima com Amazonas. Eu estava em Xixuaú, comunidade ribeirinha de cerca de 20 palafitas onde vive um povo tenaz que se diz “filho do rio” ou “filho do Jauaperi”. Chovia muito e eu sustentava-me de pé no jiral da casa de Carlito, caboclo morador dos mais antigo, uma das lideranças locais. Tinha sofrido uma queda no mato e a sensação era de agonia, com brutas dores no quadril direito. Sozinho, eu recebi a aparição de Nádia, morena forte e direta, uma das sete filhas de José Alves, espécie de Tuxaua local na coleta da castanha.

Ao saber do meu acidente, Nádia fez um diagnóstico baseado em pura sabedoria cabocla: “O senhor está é desmentido, com esse baque aí. Não é rasgadura, não. A mamãe faz um óleo quente pra massagem com a gordura da cobra sucurijú, mistura sebo de Holanda, semente de sucupira e gel da castanha com casca de mururé, da mata”.

Recostada ali, trançando o cabelo, vinda da casa de farinha, Nádia solidarizava-se com meu sofrimento. Afora o espírito amigável, sua força e benignidade me fizeram pensar nas lendárias guerreiras “amazonas”, aquelas que o explorador Francisco de Orellana, em 1541, julgou ver nas margens do grande rio, manejando flechas.

Como todo ribeirinho na Amazônia, Nádia é um repositório de conhecimentos empíricos construídos na relação pragmática com a natureza, que são transmitidos oralmente através das gerações. Ela poderia ter me receitado frasco de Andiroba ou Jamburandi. Os ribeirinhos possuem a singularidade no dialeto, ao qual já me habituei, após anos de viagens. A bióloga italiana Emanuela Evangelista, que viaja para a Amazônia desde 2000, acabou apreendendo o linguajar, conhecendo a mentalidade e rituais caboclos e adquiriu uma visão holística sobre a floresta e o bioma: enxerga a natureza como um “ser vivo (Gaia- Mãe terra), que tem sistema imunológico e cria suas defesas”. Emanuela veio fazer mestrado sobre ariranhas (pteronura brasiliensis), mamífero em risco de extinção, e acabou envolvendo-se na vida dos jauaperinos. Eles, sempre altivos, híbridos, emanam de sua aura algo como se a dignidade do simples ar do mundo tivesse acabado de nascer, ali.

Nádia, em pé, de vestido florido, é observada pela bióloga Emanuela Evangelista (sentada, de blusa preta) enquanto coloca um bracelete. Foto: Maurício de Paiva.

Uma noite cedo, Naísa, na época com 16 anos, irmã de Nádia, entrou em trabalho de parto. Do baixo igapó, Nádia embarcou na proa da canoa montaria e partiu em busca da italiana, que não era parteira nem sequer viu na vida prole nascer. Apesar de Evangelista dizer que não era mais esperta do que as caboclas de Xixuaú, Nádia insistiu em contar com seu auxílio. “Eu trouxe luvas, algodão, rede… mas foi trabalho inútil de gringa”, comentou a italiana, “porque o menino Mateus nasceu nos meus braços. Cortei o cordão umbilical dele!”. A bióloga de veia ambientalista, com a clorofila de “linfócito”, ajudou a defender e trazer ao mundo mais um filho do Jauaperi. Há 7 anos havia mais de 60 crianças, dos 130 que viviam em Xixuaú.

História de luta pela Reserva

Em Roraima há oito unidades de conservação: 3 parques nacionais, 2 estações ecológicas e 2 florestas nacionais. A reserva extrativista “Baixo Rio Branco/ Jauaperi” é a primeira no estado.

Em 1992, por um misto de nacionalidades, foi criada a Associação Amazônia (AA), com a participação dos moradores do rio (20 famílias fizeram abaixo- assinados), e de outros ativistas, como o escocês Christopher Clark, um cofundador da ONG e dos primeiros a entusiasmar a fusão de terras para se criar a reserva comunitária (popular). Em 2011, a resex possuía 179 mil hectares. Com o apoio da AA e de outras entidades na época, foi possível introduzir uma série de melhoramentos na comunidade: “No início, a nossa Associação, com a ajuda dos italianos, botou poço, caixa d’água, gerador e posto de saúde. Aqui nesse rio a gente sabe o que é viver isolado. Para preservar, a primeira coisa é a união de todos. Não almejo ir pra outro canto, aqui me sinto mais reconhecido. A gente tira pela nossa visão, tem que cuidar da mata, da água, do bicho”, diz Justino Marinho, ex-líder de Xixuaú. Hábil capitão de embarcação, Justino tem apelido “Tabaco” por ser fumante inveterado, cotidiano “sui generis” em seu caso, ele sonha que está a fumar.

O “Tabaco” fumando. Foto: Maurício de Paiva.

Em 2002, a Associação Amazônia instalou painéis de energia solar e a conexão à internet via satélite, alimentada pelo sol. Os moradores ainda são parcimoniosos no uso da internet, embora o acesso seja livre na casa de alvenaria, mas há poucos computadores disponíveis, os quais, aliás, têm vida curta na inclemente umidade amazônica. Esse projeto de vanguarda na Amazônia foi patrocinado pela Fundação Kleinwort Trust, de Londres, e implementado pela americana SELF — Solar Electrical Light Fund, que forneceu e instalou os painéis solares. Já os painéis menores de malocas destinadas ao ecoturismo, foram fornecidos pela BR Eletron, de Manaus. Cinco malocas de madeira estavam em construção desde 2008 para alojar ecoturistas, graças à doação de 75 mil euros feita pela ONG Trentino Insieme, de Trento, Itália. TI ganhou patrocínio por Edital público e escolheu a brasileira AA como ONG beneficiária. A Associação Amazônia foi incorporada, mais tarde, pela CoopXixuaú, que luta para tirar do papel o projeto de criação do Centro e Estação de Pesquisa da Universidade Estadual de Roraima, que seria alimentado com a energia limpa e renovável, abastecendo a comunidade Xixuaú.

Desde 2006, o projeto para a criação da resex estava em Brasília; foi recomendado por um estudo socioeconômico feito pelo IBAMA, pelo CNPT — Centro Nacional do Desenvolvimento Sustentado das Populações Tradicionais e pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA). Demorou 17 anos para o gabinete da Casa Civil aprová-la como a Resex “Baixo Rio Branco/Jauaperi” por decreto.

As áreas reservadas para o extrativismo somam 66 unidades na Amazônia. Somente na reserva de Xixuaú, vivem, ali, 42 espécies de mamíferos, 10 deles ameaçados de extinção, como a onça, o tamanduá, peixe-boi e o tatu, e as singulares ariranhas.

Thiago, o “Taco”, em meio as placas de geração de energia solar na comunidade de Xixuaú. Foto: Maurício de Paiva.

Patrimônio arqueológico

“A mandioca é o principal produto extrativista da região, praticamente o “pão do caboclo”. Uma lenda do povo aruaque, herdada pelos tupis, conta que essa planta de raiz amarga e miraculosa brotou do túmulo da jovem índia Mani, regado pelas lágrimas de sua mãe”.

Além da preservação ambiental e do manejo controlado dos recursos, há uma ligação antiga, antrópica. Em 2009, um relatório de arqueologia enviado ao IPHAN ressaltou a importância da preservação da área em vista do rico patrimônio arqueológico (18 sítios) prospectado ao curso do rio, ainda incipiente nos estudos. No que abrange a área da resex, no rio Jauaperi, há oito comunidades — Floresta, Tanauaú, Samaúma, Palestina, São Pedro, Itaquera e Xixuaú. No baixo rio Branco são duas as incluídas: Remanso e Vila Cota. Elas mostram vestígios de objetos pré-colombianos, como cerâmica, pontas de machado de pedra polida, gravuras rupestres e cerâmicas em “terra preta”, está, um substrato arqueológico anterior há 2.500 anos. Os sinais de ocupação humana milenar são evidentes e o povo abria clareiras a machado. No sítio rupestre “Pedra da Vovó” – termo elucidado pelos moradores, em Floresta, há cravado numa ponta de rocha um singular grafismo zoomórfico que ilustra um primata de cauda enrolada tocando flauta ou empunhando uma zarabatana. Conectando- se, de certa forma, o antigo artista indígena que gravou a imagem “reinventada” na pedra sonhava decerto com a perpetuação de seu modo de vida dilatado num reconhecimento cultural e na prática ambiental.     

Trabalhadores da floresta

A mandioca é o principal produto extrativista da região, praticamente o “pão do caboclo”. Uma lenda do povo aruaque, herdada pelos tupis, conta que essa planta de raiz amarga e miraculosa brotou do túmulo da jovem índia Mani, regado pelas lágrimas de sua mãe. A própria palavra “aruaque” significa “povo comedor de mandioca”, segundo o pesquisador Evaristo de Miranda, no livro Quando o Amazonas corria para o Pacífico.

Numa manhã árdua e trabalhosa, Nádia Alves era vida na casa de farinha, um dos símbolos típico agro ribeirinho. Torrando com pá de remo farinha e suando muito perto do forno de barro e ferro, Nádia morena ensinou-me segredos dessa tecnologia atemporal que permanece basicamente igual há quatro mil anos: “Se a mandioca for cevada por pouco tempo, após sair do tipiti, e depois torrada com pressa, embola. Se usar só farinha dura, ela fica bem seca; se usar só mole, ela amarga”. Dali, observo que, indo longe, as técnicas antigas domesticadas de subsistência conservam modos de criação e produção. Como legado.

Casa de farinha, um dos símbolos típico agro ribeirinho. Foto: Maurício de Paiva.

Em 2008 a comunidade escolheu uma área de roça de maniva para fazer malocas turísticas, já feita a coivara. Sem licença, sem uma cooperativa criada, sem assessoria jurídica e burocrática para regularizar a extração de madeira, autoridades de Roraima acharam o trabalho irregular e aplicaram multas exageradas. “Uma ONG não pode tirar madeira por causa do conceito de preservação. Hoje, o nome da Cooperativa autoriza; a multa foi injusta, mas parece que 8 m cúbicos de madeira apodreceram.”, diz Francilane Alves, professor e neto de Teodorico, o primeiro agricultor do Xixuaú, pai de Carlito.

“A lei ampara o extrativismo de sobrevivência deles, mesmo dentro de uma área de proteção, como uma APA”, se eriça Emanuela Evangelista. “Essa madeira é usada para a construção das malocas, que visa sim, neste caso, a uma atividade comercial, o ecoturismo, mas os ribeirinhos da cooperativa CoopXixuaú tem licença para esse uso da madeira.”

Dia sóbrio de clima nublado, Paulo, que estampava na moderna camiseta o dizer “Original”, escolheu um “cedrinho” (Scleronema micranthum) – espécie do DOF- Documento de Origem Florestal/Ibama, madeira preferida para tábuas, pranchas e forros de casa. Está entre as mais de 200 espécies comercializadas em São Paulo. Paulo ligou a motosserra e fez um entalhe geométrico no tronco, uma cava, definindo a direção da queda da árvore, mas a dinâmica no mato é imprecisa. Eu me aproximei dele para fotografá-los. Uma saraivada de lascas e pó de serragem rodopiou no ar, enquanto formigas e insetos em disparate escalavam minhas pernas. Quando a árvore estalou ainda alta, prestes a tombar magnânima, Paulo correu, e eu disparei atrás dele sem rumo com duas câmeras, afetado. Mas havia uma pedra no meio do caminho: tropecei aos cotovelos, caí e sofri uma torção violenta na perna direita, deslocando a boca do fêmur. Terminada a “tiração” de madeira, a tora não serviu; roliça, mas teve o ‘âmago’ (miolo mais escuro) de má qualidade. Hora do peixe moqueado, trazido de cuia na canoa e assado à grelha de graveto, e fogo, no famoso “avoado” – servido rapidamente, com meios limões e Chibé (farinha com água). Dobrado de dor no quadril- virilha, ainda liberando endorfina, eu esperava o avoado findar; de soslaio olhava os homens ali, divertidíssimos, coletivos no bem comum, tão acessíveis.

Saraivada de lascas. Foto: Maurício de Paiva.

A festa da coleta

Tirar açaí (Euterpe oleracea) é pegar a canoa e serpentear pelo caminho das águas nos igapós. É repetir ritualmente um ato praticado há milhares de anos pelos habitantes da Amazônia antiga. O fruto in natura compõe vitaminas A, B1, B2, C e E, Ferro, Cálcio, Fósforo, Potássio e Antocianina. Chegamos ao lugar onde um camarada escalará o açaízeiro de 20 metros de altura para debulhar o cacho de frutos. O guia, o jovem Tiago dos Santos Marinho, chamado “Taco”, é escalador consciente. Sobre seus pés, a envira, a “corda” para trepar na fina árvore, amarrada ali nos tornozelos, na hora, com fibra de palmeira. Sob os pés, a ‘terra preta’, e debaixo dela prováveis depósitos de cerâmica artística, ossos de peixes e de bichos misturados com caroços de açaí — desde a época de Cristo. Dentro da floresta, só podemos ter um sentimento de gratidão pelos ameríndios horticultores que domesticaram as plantas que hoje nos alimentam. Taco, de fortes traços indígenas, é um promissor botânico aprendiz, à frente do projeto de Botânica Comunitária de Xixuaú: herdou de seu pai, o curandeiro Manoel, um talento natural para identificar plantas e suas aplicações medicinais.

“Acho possível conseguir pela internet mais recursos e atenção para os nossos projetos”, diz ele, já ansioso por achar-se logado. “Quero ser especialista em plantas e fazer aqui um herbário em parceria com o pessoal de Manaus. “Transportar” o que sei pra fora, renovar, ter o meu computador.”

Artemízia, agente de saúde, atende Carlito no ambulatório. Foto: Maurício de Paiva.

O projeto ‘Botânica Comunitária Xixuaú-Xiparinã’ tem apoio da ONG Amazon Charitable Trust, de Londres, em parceria com o INPA — Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, de Manaus, uma referência na biologia tropical, e o Royal Botanic Gardens, de Londres. Taco, como um “botânico prático”, já sabe que a proteína da castanheira está sendo estudada em laboratório como agente na prevenção do câncer de próstata. Na Amazônia central existe um pico da riqueza vegetal, creem as pesquisas, e alguns extratos já mostraram hipóteses contra ao menos cinco tipos de câncer (mama, ovário, pulmão, leucemia).

Finda a coleta, Taco e Artemízia, a agente de saúde, vão debulhando os grandes cachos empilhados no chão, ajeitando no paneiro e na saca os frutos negros do açaí. Sentado em palmas da palmeira ubim — palha utilizada para cobrir casas —, eu sinto a floresta como um lugar sagrado, imemorial. Igualitário até. Em meio à zoada febril do bando de macacos guariba, percebo o quanto esse alimento (Açaí) representa um tempo mítico, ainda mais se bebido amassado com pilão, à moda tradicional. É prova estimulante que me aguça em usufruir a fruta sempre desse jeito, sem dissabor. Taco trabalha e vira e mexe se mancha na face como camuflagem, sem querer se pinta da tinta arroxeada do açaí, artesanalmente.

Mais tarde, em Xixuaú, as mulheres vão pilar o açaí coletado no flutuante da beira; o flutuante é um conjunto de toras armadas como “estrado” na margem do rio. Uma tora de cupiúba, já de rubro polida de tanto uso, servirá de pilão; de tão pesada, terá que ser manejada por uma mulher robusta. Com alarido, erguendo cantorias, elas se juntam em roda viva, labutando já ao crepúsculo. A meninada reboliça na água em algazarra, enquanto as mães alertam sobre um jacaré-açú, um rebojo n’água costumeiro ali.

Sabedoria amazônida

“A vida de caboclo ribeirinho que o filho reproduz teve sua origem à história colonial da Amazônia, mas foi a pulsão e demanda pelos excedentes da borracha que levou a migração de nordestinos desde o séc. 20. Como bom exemplo, a massa nordestina ajudou o Acre – onde está a primeva resex Alto Juruá – na conquista de ser território nacional.”.

Carlos Alberto Nascimento, o popular Carlito, famigerado pelas muitas malárias nas costas, é filho do velho patriarca Teodorico, enterrado na barranca junto ao rio nos anos 70. Respeitador, vê na lápide de madeira de seu pai, autenticidade. A vida de caboclo ribeirinho que o filho reproduz teve sua origem à história colonial da Amazônia, mas foi a pulsão e demanda pelos excedentes da borracha que levou a migração de nordestinos desde o séc. 20. Como bom exemplo, a massa nordestina ajudou o Acre – onde está a primeva resex Alto Juruá – na conquista de ser território nacional. Com o fim do ciclo da borracha, ficaram eles, nas calhas de rios e lagos, como novos, misturando-se aos descendentes de índios. Carlito cresceu no alto Jauaperi, acompanhando o pai na exploração da seringa e da castanha, e no plantio do cupuaçu e da andiroba. A família trabalhava num castanhal dentro do mato e vendia o produto para os regatões, os negociantes que sobem os rios para trocar mantimentos, vasculhantes. Aos nove anos, “que nem paramboléu” (na mão de uma ou de outro), Carlito já comandava a proa da montaria (canoa) ou uma rabetinha e se revelou prodígio pescador de pacus, piranha, tucunaré, pirarucu e dourada. Hoje, do alto de seus 66 anos, vislumbra um horizonte “sustentável” para Xixuaú: “Próprio morador daqui mesmo já me disse que hoje entende como uma onça viva vale muito mais do que uma morta”.

Carlito é atencioso no conhecimento do ambiente em que vive, e se adianta: “Esse ano (2011) não deu castanha, tava escasso. Quando vai dar, o ouriço (a casca invólucro que contém as castanhas) fica vermelhinho. Eu tô aqui de pescador oficial de vocês – TV RAI e eu, fotógrafo, posso garantir que trago qualquer peixe, todo dia, uns 60. Agora, colher castanha depende de muita coisa: se tiver muita arara, acaba estragando, porque arara come no ouriço, daí extravia; macaco-prego também se farta, então ajuda a falhar.”

Foto: Maurício de Paiva.

Quem vive da coleta e do extrativismo, como os catadores de fibras, os beneficiadores do cipó, seringueiros, artesãs e tecelões, sabe que tem de lidar com uma ocasional ou sazonal falta de recursos. Assim, o ecoturismo se projeta como perspectiva relativamente inescapável, tendo em vista a riqueza da biodiversidade: “A gorjeta que um visitante dá pra gente aqui pra ir ver uma onça é no mínimo 50 reais, então, onça viva vale mais! As pessoas só aceitam o jacaré aí na beirada das crianças porque os turistas querem ver.”

Essa consciência de que “onça viva é mais negócio” já se disseminou pelo Xixuaú, os mateiros e pescadores já estão naturalmente capacitados para serem guias dos ecoturistas. E sempre elucubram, “o guia é o remo do visitante”.

Reelaborando sua própria cultura, a sabedoria de Carlito não deixa de aparecer, sempre. No igarapé, preparando um peixe matrinxã (Brycon hilarii) à luz do candeeiro, enrolando sob espreita fumo de corda na barriga, surpreende: “Estás ouvindo? Presta atenção… é uma surucucu cantando”. Com Carlito se aprende que a floresta brada, e que até cobra canta. Depende de saber escutar. Esperar. Feixe de luz amarelado no rosto, quando ele reflete sobre seu passado no Xixuaú, olhando-se desajeitado medita: “Meu pai morreu, era ele o “esteio do meio” da família, dava conselho, ajeitava as ideias; dizia que uma anta ou uma lontra iam ficar mais longe se Xixuaú ficasse mais populoso, entende?”

Convívios das pessoas na beira de Xixuaú. Foto: Maurício de Paiva.

Escola do rio   

Uma das ameaças à pesca na reserva é a concorrência dos “geleiros” de rio, que pescam em abundância e estocam por dias os peixes com gelo, para levar às cidades. Em 2006, os pescadores artesanais jauaperinos e geleiros fecharam um acordo de ‘cessar pesca’, por três anos, para permitir a reprodução dos peixes no período de “defeso” (suspensão da pesca), que vai de outubro a março. Porém, a pesca de exploração predatória prosseguiu, o que ameaça a segurança alimentar das pessoas. E além, há os coletores de tartarugas e ovos, que agem à secura da noite, no período da seca, na praia. “Pimpim”, de Xixuaú, costuma sair de casquinho (canoa escavada em tronco), inscrito Deus da Paz, levando seu anzol, caniço, zagaia (arpão de três pontas) e a lanterna, feita por ele, de alumínio, fixada na cabeça como “coroa” de cipó. Filho de Carlito, Francisco Nascimento (Pimpim) aprecia levar seu filho de sete anos na pescaria de “fachear”; a lanterna é ligada por uma antiga bateria de carro, alimentada pelos painéis solares da vila. Sereno, de rosto vincado e magro transmite senso de realidade: “Vou sair pra dar uma pescada, fachear peixes pro almoço de amanhã. Eu saio na boca da noite pra não atrapalhar o serviço nas malocas, dos que vão pra roça, serrar pau, trabalhar na farinha e colher açaí.”

Em Terra Brasilis, na Amazônia em franca transformação que nosso tempo nos traça, a reserva é o futuro de salvaguarda. Suponho que a identidade de pescadores e coletores parece pedir certa orientação e proteção, o cotidiano tradicional voa de longe, a experiência ecológica e biodiversa atravessa gerações, de indígenas a quilombolas, de nordestinos a aldeões caboclos. Para estes, que alternativas restam para conquistar, afora a consciência ecológica e as incertezas?

PimPim no mato coletando e beneficiando folhas da Palmeira Ubim. Foto: Maurício de Paiva.

Ao lado do ecoturismo, de um “futurista” Centro de Pesquisa Científica, da botânica, o artesanato é um dos objetivos da cooperativa.  Na casa de Rosa, mulher de ‘Tabaco’, em meio ao pôster na parede desalinhado do político 45 e o chumaço do velho Bombril na antena da TV ou reunidas na “malocona” central, as mulheres furam sementes do cipó do tento ou utilizam caroços de açaí para fazer colares e braceletes, ou ainda juntam sementes de olho-de-boi, morototo e tucumã para criar novas bijuterias. Evangelista já prevê a construção de uma “Casa das Mulheres”, onde as artesãs poderão instalar uma creche, trabalhar e bem tagarelar.

Xixuaú conta com uma escola de madeira, cor ocre e vinho, construída em 2004, com subsídios municipais de Rorainópolis. Nas cerca de 20 carteiras azuis, ali, o professor Francilane Alves, 30 anos (em 2011), se dedica ao ensino multisseriado, das 1ª à 4ª séries. Ele já morou em Novo Airão. Além de trabalhar como carpinteiro na movelaria, Francilane também dá aulas à noite, sob luz mortiça, para o pessoal do EJA — Escola de Jovens e Adultos. “Quase uma obrigação o estrangeiro ser voluntário na comunidade, “ensinar” algo, que a dificuldade na língua não seja uma polêmica (!). Quer coisa mais democrática e mais acessível que a energia solar comunitária pra internet?”

Compromissado com o progresso geral, Francilane considera indispensável que os diretores da CoopXixuaú deixem o semi analfabetismo e se politizem para melhorar suas funções: “Sem educação e mais interesse não dá. ‘Bambo letras’, quem sabe lê vai direto, quem não sabe continua soletrando.”, conclui, ao exemplificar o que dita na sala de aula.

Ao pé da lousa, esforço idiossincrático e descontração: quatro alunos do EJA. Entre eles Elton da Encarnação, o Elinho. Enraizado à natureza que o circunda em Xixuaú, ele põe no quadro disformes sílabas e nomes de seu imaginário valoroso: Jabuti, Queixada, Fula (Piranha preta), “Irara é Rabuda”, Sabirá (Lontra pequena), Arari. Elinho foi eleito administrador da CoopXixuaú, no passado o seu pai foi mateiro e Regatão [ele continua membro ativo da CoopXixuáu, mas não é o atual administrador]  Elinho viveu em Manaus, no porto de palafitas Glória, ou o Igapó perigoso, e retornou a Xixuaú para se engajar na luta pela resex. A fundação da cooperativa, há dois anos, foi o meio de dar legitimidade ao extrativismo não madeireiro (vegetal) e legalidade econômica ao extrativismo madeireiro para a construção de casas destinadas ao ecoturismo.

Thiago, o “Taco”. Foto: Maurício de Paiva.

Empreendedor nato, Elinho sabe o valor da cooperação: “Meu incentivo pra voltar pra cá veio da vontade de querer ser livre, da independência de trabalhar pela preservação desse pedaço de floresta”, explica. “Fazer escoar a castanha, a andiroba e o açaí são as metas da CoopXixuaú, mas num ano de escassez o foco pode ser o turismo, a pesca esportiva, focagem de jacaré, trilha na floresta. Isso pode ser feito o ano inteiro!”

Ribeirinho adotivo, o ex-empresário escocês Christopher Clark mora na outra margem do Jauaperi, em companhia de sua filha Cathleen, de 21 anos. Cabeludo, poliglota e tradutor, Chris foi um viajor contumaz até que chegou a Manaus, da Toscana. Entusiasta dos estudos botânicos empreendidos pelo INPA, o escocês trabalha na internet do escritório da Cooperativa, planejando a logística das viagens dos grupos estrangeiros a Xixuaú. Foi através da internet que Chris consultou médicos em busca de orientações de primeiros socorros para cuidar do jovem Alessandro Horta, que, em 2007, havia se ferido com um tiro acidental de sua própria espingarda 20 de dentro da rabeta 15hp, caçando um pato do mato no lago, já que no dia estava panema (falho, escasso) de peixe. Hoje um autêntico amazônida, o escocês atravessa diariamente o rio num casco a remo. “Lembro-me bem do dia em que chegamos aqui, eu, o prático Baixote e Plínio. Desembarcamos e logo chamaram o Carlito, que veio nos receber. Carlito nos levou para ver as ariranhas, e foi uma visão surpreendente para um estrangeiro. Nesse dia, percebi que eu podia viver aqui.” Era apenas uma dezena o gentio que Chris e Plínio encontraram quando o barco atracou em Xixuaú.

Para Camilo Pedrollo, na época mestrando do INPA [Hoje Pedroso é Diretor-Executivo da Conquista Comunicação Socioambiental] que viaja ao Jauaperi, há muito que descobrir nessa “escola do rio”, mas faltam doutores suficientes para pesquisar as 40 mil espécies de plantas estimadas na Amazônia. Aluno de Mike Hopkins, botânico galês radicado em Manaus, Pedrollo afirma que os estudos Etnobotânicos vêm dando irrefutável prova de que os povos da Amazônia possuem profundo conhecimento de como manejar e extrair recursos da natureza, o que está aliando conservacionistas e populações tradicionais. No entanto, o bioma amazônico representa apenas 18% da pesquisa contínua, contra exemplares 38% na mata atlântica. E a região recebe apenas 3% dos investimentos federais em ciência e tecnologia. “Curandeiros tradicionais detém amplo repertório de plantas como a Paracanaúba, para o tratamento da malária, a Jurubeba, cura de fígado, e a Cuiarana, para coceiras. Pra nós, o uso de plantas pela experiência na floresta requer convivência qualitativa com os ribeirinhos.”, diz o pós-graduando.

Cacho de açaí nos arredores de Xixuaú. Foto: Maurício de Paiva.

Nos igarapés cristalinos do rio Xixuaú e do Xiparinã e em seus varadouros de seres encantados, a variedade de cardumes na água impressionou Jean Michel Cousteau, filho do legendário Jacques Cousteau. Jean rodou lá, em 2007, parte do documentário “Return to the Amazon”. Mítico e simbólico, o cenário flui nuances de boa visibilidade para mergulho há 8 metros sob floresta inundada. Jacundá, Peixe–agulha, Pirarara, Tucunaré, Surubim, tracajás… Peixes poucos ainda os que a equipe deparou-se, perante as sabidas 1.300 espécies da bacia hidrográfica do Amazonas e seus 25 mil km de afluentes. Um rebojo.

A voz do povo

Na condição de presidente do CNS — Conselho Nacional das Populações Extrativistas da Amazônia, o visionário Manoel Cunha era ativo em fóruns no Brasil e internacionais, e defensor convicto do modelo da resex do Alto Juruá (AC), a primeira do país com cinco mil km2, criada em 1990, após a morte de Chico Mendes (1988). Em documento conjunto do CNS e da SAE — Secretaria de Assuntos Estratégicos da República, Cunha propôs novas políticas de educação na floresta, para que as novas gerações sejam conscientizadas do processo histórico e da notável conquista social alcançada por seus pais.

Retrato de jovem adulto de Xixuaú: barqueiro, trabalha em serraria, estuda, mantém a religiosidade, transita entre a tradição e a modernidade, usa Blue Tooth, pode trabalhar como mateiro, identificar rastro de onça. Foto: Maurício de Paiva.

“Nas escolas ribeirinhas ainda não se aprende que os jovens devem assumir a responsabilidade de continuar valorando o saber tradicional como guardiões da floresta, desde curumins”, enfatiza. “Precisamos ter uma educação diferenciada, que dê importância fundamental à reserva, que esclareça como era nos tempos do ‘patrão de barracão’, e que demonstre claramente que hoje a nossa condição de vida é mais favorável.”

Para Manoel Cunha, há ausência de uma política educacional dirigida especialmente à população ribeirinha: “Nós não temos carência de comida, o extrativista tem seu teto, seu rancho, bebe açaí e cupuaçu, consome peixe e tucumã; o que falta é mais Política Pública e infraestrutura. É preciso apoiar a gestão do processo produtivo dentro da resex e beneficiar a mão-de-obra do coletor. O turismo por si não dá conta sozinho, o jovem fica mais ocioso.”

Quanto à necessidade de preservação ambiental, Manoel é taxativo: “Pensar no enfrentamento das mudanças climáticas sem incluir as populações da floresta é como fazer um filme sem ator principal. Criar uma resex dá autonomia para as comunidades, é processo deliberativo; por isso, é melhor para garantir a biodiversidade. Dotados de uma “preguiça vegetal”, os lúbricos, inconstantes, incrédulos e atavistas índios descritos na literatura jesuítica em 1549 foram refletidos e taxados, para os missionários “estrangeiros”, como difíceis de converter. A Terra indígena dos Waimiri- Atroari, de 2.2 milhões de hectares protegida pelos próprios, é vista com admiração pelos entes vizinhos Xixuauenses. Nada volúveis, sua determinação – não convertida – por preservar a reserva e suas vidas se expressa no brado de Plínio leite Encarnação, da Associação: “Se fala de internacionalização da Amazônia, mas é o mundo ser mais (amazonizado). Os melhores habitantes da Terra vivem neste lugar que nós temos!”

Alvorada, o dia era de partir. Seis horas de viagem no coloral rio Jauaperi, baldeando em Floresta e Itaquera para ainda negociar três sacas da farinha de Nádia, quase 100 quilos. Recém saltado do barco chamado ‘Certeza’, com o apoio do cajado de madeira que curumim me regalou. Desembarquei no entreposto fluvial de Moura (AM), já à esquina do rio Negro, acompanhado por Elinho e pela italiana Evangelista. Era madrugada estelar refletindo na lâmina d’água; um forte aguaceiro se anunciava, ventando na sua vanguarda um clarão de consciência.

Conversamos enquanto esperávamos o “recreio de linha”, o barco de Barcelos-Manaus. O caboclo e a europeia, claramente acreditando que convivência é que dá melhor percepção da realidade local, reafirmavam seu compromisso de permanecer juntos em defesa da eterna reserva Xixuaú – Xiparinã. Quanto a mim, após a “escola do rio”, já tinha uma certeza, legal. Sabia de que lado me prostrara nessa história: alinhado com a tenacidade dos filhos do rio. A favor da importância da resex Baixo rio Branco/Jauaperi, da conservação da floresta e de todas as suas formas de vida.

Baixo rio Branco/Jauaperi, da conservação da floresta e de todas as suas formas de vida. Foto: Maurício de Paiva.

 

 

 

Leia Também 

Povos amazônicos domesticaram plantas há 6 mil anos

Amazônia tem mesmos direitos que uma pessoa, decide STF colombiano

Lições das ocupações humanas no passado Amazônico

 

Leia também

Colunas
17 de abril de 2017

Lições das ocupações humanas no passado Amazônico

Até os mais românticos já se resignaram a admitir que a Amazônia foi ocupada, explorada e alterada pelos humanos, e que os europeus, embora eles não o soubessem, não acharam “nada virgem”

Notícias
5 de abril de 2018

Amazônia tem mesmos direitos que uma pessoa, decide STF colombiano

Em decisão inédita após ação movida por jovens, Corte Suprema determina ao governo que elabore em quatro meses um plano de desmatamento zero para o país

Notícias
25 de julho de 2018

Povos amazônicos domesticaram plantas há 6 mil anos

O Alto Rio Madeira foi um importante polo de domesticação de plantas, há milhares de anos, quando os homens começaram a transformar a paisagem amazônica

Mais de ((o))eco

Deixe uma resposta

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

Comentários 1

  1. celio diz: