O Parque Nacional da Chapada dos Guimarães é uma das áreas mais sensíveis para o fogo no Brasil. Encravado no coração do Cerrado, a unidade abriga a vegetação considerada hoje como sendo a mais propensa a incêndios da Terra. Em nível global, as savanas, entre os demais ecossistemas do planeta, respondem atualmente pela maior parte da área queimada global e pelas emissões de carbono associadas.
Em 2023, no entanto, o Parna da Chapada dos Guimarães teve apenas três hectares atingidos por incêndios, algo que só foi possível com uma mudança de paradigma na relação entre homem-fogo. Essa tranformação, que acontece a passos largos no âmbito internacional, no entanto, ainda engatinha no país.
Fogo frio
Antes de 2017, quando a unidade começou a manejar o fogo para fins de redução da matéria orgânica disponível no solo, os incêndios chegaram a queimar mais de 14 mil hectares de uma só vez.
Com as queimas controladas, a área atingida pelos incêndios de grandes proporções foi reduzindo gradualmente. O último grande incêndio registrado foi em 2019, ano de influência do El Niño e quando 6,7 mil hectares foram queimados. Em 2020 foram 42 hectares e, em 2023, apenas três.
Ao contrário do incêndio, que acontece a qualquer tempo, invade todos os espaços, destruindo a fauna e a flora que encontra pela frente, e representa um alto custo no combate, as queimas prescritas têm dia, hora e condições específicas para acontecer.
Elas são realizadas sempre em pequenas extensões, quando a umidade do solo ainda é relativamente alta, no início da estação seca, em área controlada e sob condições atmosféricas previamente estudadas, para que não haja perigo de espalhar.
Dessa forma, o fogo passa rápido sobre a área, afetando apenas a camada mais superficial do solo, o que reduz a matéria orgânica presente, mas não afeta as raízes e dá à vegetação a chance de se recuperar de forma mais rápida. Os animais também contam com rotas de fuga para escape.
Além disso, a fumaça que esse “fogo frio” emite é branca, com alta concentração de vapor d´água e baixa emissão de gases estufa.
“Vivemos uma nova fase, um outro período no Parque Nacional da Chapada. A abordagem tem nos ajudado muito no controle dos grandes incêndios, que foram frequentes na história da unidade. A cada dois ou três anos, no máximo, tínhamos acúmulo de combustível suficiente para tudo se tornar uma bomba. Com as queimas prescritas, encontramos uma forma muito eficaz de controlar esse acúmulo. Então, passamos a investir mais em prevenção e a diminuir os gastos com combates, o que é ótimo para todos”, explica Luiz Gustavo Gonçalves, analista do ICMBio, responsável pelo programa de prevenção e combate a incêndios do PNCG.
Pioneirismo Tocantinense
Até 2012, a política de proibição total do fogo imperou no Brasil, mesmo em ecossistemas adaptados à passagem das chamas, como é o caso do Cerrado. Com isso, os riscos e perigos de grandes incêndios eram uma realidade constante para o país.
Com foco inicial na manutenção da biodiversidade, a partir daquele ano, instituições governamentais e de pesquisa, apoiadas pelo governo Alemão, começaram a discutir o Manejo Integrado do Fogo (MIF) como uma abordagem de gestão ambiental possível, dentro do chamado Projeto Cerrado-Jalapão.
A partir de 2014, diferentes áreas protegidas no Cerrado começaram a implementar os elementos técnicos, ecológicos e socioeconômicos do MIF para gerenciar e proteger a biodiversidade, além de melhorar os meios de subsistência de comunidades tradicionais inseridas no bioma.
Manejo Integrado do Fogo (MIF)
A “queima prescrita” ou queima controlada é apenas uma das técnicas usadas dentro do Manejo Integrado do Fogo. A prática também envolve controle de incêndios, preparação, recuperação e reabilitação pós-incêndio e envolvimento comunitário para reduzir os riscos de incêndios florestais não controlados.
De acordo com a proposta de Política do Manejo Integrado do Fogo, ainda em discussão no Congresso Nacional, o MIF é descrito como o “modelo de planejamento e gestão que associa aspectos ecológicos, culturais, socioeconômicos e técnicos na execução, na integração, no monitoramento, na avaliação e na adaptação de ações relacionadas com o uso de queimas prescritas e controladas e a prevenção e o combate aos incêndios florestais, com vistas à redução de emissões de material particulado e gases de efeito estufa, à conservação da biodiversidade e à redução da severidade dos incêndios florestais, respeitado o uso tradicional e adaptativo do fogo”.
A Estação Ecológica Serra Geral do Tocantins, localizada no sudeste do estado, na divisa com a Bahia, foi uma das primeiras unidades de conservação do país a implementar a técnica do MIF.
Por lá, a política de “fogo zero” havia provocado incêndios florestais de proporções gigantescas, além de conflitos com a comunidade tradicional local.
“Grandes incêndios eram recorrentes na Serra Geral do Tocantins. A cada dois anos, sempre no auge da estação seca, havia grandes incêndios que queimavam 80 mil, 100 mil hectares num evento só. A partir do processo de mudança de paradigma, de implementação no MIF enquanto abordagem de gestão, a gente vê a paisagem se transformar. Simplesmente não existem mais grandes, médios incêndios. Isso desde dois anos depois que a gente começou a implementar as estratégias de MIF, a gente para de ter mega eventos de incêndio”, disse a ((o))eco a pesquisadora Ana Carolina Barradas, analista ambiental do ICMBio que atuou no processo de implementação do MIF na ESEC Serra Geral do Tocantins.
Com o manejo integrado, a Estação Ecológica viu a sazonalidade do fogo mudar: de grandes incêndios no auge da estação seca, para pequenos e controladas queimadas, com baixa emissão de carbono, no início da estação seca.
Estudo publicado em fevereiro deste ano sobre o potencial de abatimento de emissões na Serra Geral do Tocantins mostrou que a introdução do MIF conseguiu reduzir em 62% a extensão das queimadas, entre 2014 e 2019, em áreas com uso da técnica, em comparação a áreas sem manejo algum.
Ao aplicar a mudança na sazonalidade do fogo e o efeito da redução da área queimada a todas as áreas protegidas do Cerrado, os pesquisadores responsáveis pelo estudo – entre eles Ana Carolina Barradas – estimam o potencial de redução de emissões como sendo da ordem de cerca de 1 milhão de toneladas de CO2 equivalente por ano.
“Nós fomos pilotos nessa proposta e havia muita resistência institucional de mudar a abordagem, que era simplesmente apagar o fogo, para fazer manejo com uso do fogo. Mas daí veio a redução dos grandes incêndios, que também significou reduzir gastos, e começaram a olhar para o que estávamos fazendo”, diz Carolina Barradas.
Exemplos internacionais
O que o Brasil começou a implementar em 2014, Estados Unidos e Austrália já desenvolvem há décadas. Nos EUA, o manejo do fogo começou a ser implementado experimentalmente em unidades de conservação na década de 1950, no Parque Nacional de Everglades.
Na Austrália, o manejo do fogo ganhou escala no final da década de 1990 e hoje o país é referência no uso do MIF para abatimento de emissões de carbono.
As savanas australianas abrangem 1,9 milhões de km² e representam 26% da área terrestre da Austrália. A maior parte do bioma – 1,2 km² – está concentrada ao norte do país, onde também há grande presença de povos tradicionais.
Assim como no Brasil, o país vivenciou durante muitos anos a política do “fogo zero”, com o consequente acúmulo de matéria orgânica, grandes incêndios e conflitos com as comunidades que tradicionalmente faziam o manejo do fogo.
Em 1997, essa realidade mudou. Naquele ano, as queimas controladas em savanas foram consideradas no Protocolo de Kyoto – o primeiro tratado mundial de redução de emissões de gases estufa – como ferramenta para controle da quantidade de gases estufa lançados na atmosfera e geração de créditos de carbono.
Segundo Jeremy Russel-Smith, diretor de pesquisa do Centro Darwin para Pesquisa de Incêndios Florestais que há mais de 35 anos estuda a ecologia de incêndios em savanas, mercado de carbono e serviços ecossistêmicos, a Austrália viu naquele momento uma grande oportunidade não só de resolver problemas ambientais que enfrentava, mas também um problema social.
“Na ausência de um mercado de carbono, o governo australiano ou os governos provinciais locais nunca iriam fazer nada. Foi apenas quando um mercado foi introduzido e realmente incentivou financeiramente as atividades das pessoas que toda a situação mudou e o ambiente político também mudou drasticamente, passando de políticas de supressão de incêndios tácitas para abraçar abertamente formas tradicionais de manejo do fogo”, explicou o pesquisador, em entrevista a ((o))eco.
Ao longo das últimas décadas, a Austrália desenvolveu substancialmente os métodos de contabilidade de emissões de queima em savanas. Atualmente, 25% dos 1,2 milhões de km² da região de savana ao norte do país estão dentro de algum projeto certificado de geração de créditos de carbono.
“Desde o início as atividades de manejo do fogo têm sido consideradas uma história de sucesso, que aliviaram um grande problema, no qual o governo australiano realmente não teve que fazer nada além de apoiar o marco regulatório”, explicou Russel-Smith.
No Brasil, desde 2018 tramita no Congresso Nacional o projeto de lei que visa à instituição da Política Nacional de Manejo do Fogo. A proposta – originalmente da Câmara dos Deputados – recebeu uma série de emendas quando chegou ao Senado, tendo seu texto original totalmente desfigurado.
“O projeto está hoje travado, com 12 propostas de emendas, 11 delas colocadas pelos Corpos de Bombeiros de vários estados, através da Ligabom [Conselho Nacional dos Corpos de Bombeiros Militares do Brasil]. Existe hoje uma discussão para alinhar pontos divergentes, mas não sabemos como isso vai findar”, disse o coordenador de Manejo Integrado do fogo do ICMBio, João Paulo Morita, em evento sobre o assunto realizado final de abril em Cuiabá.
Transformação de mentalidade
As pesquisas sobre o potencial de abatimento de emissões com manejo do fogo vêm crescendo ao longo dos últimos anos em todo o mundo. Um estudo realizado pela organização The Nature Conservancy Austrália, publicado em 2018 na revista Nature Communications, mostrou que as técnicas de MIF em savanas ao redor do globo poderiam evitar a emissão de até 89 milhões de toneladas de CO2 equivalente por ano.
Mas os benefícios vão além das emissões. Segundo Luiz Gustavo Gonçalves, do Parque Nacional da Chapada dos Guimarães, a implantação do MIF possibilitou, sobretudo, o conhecimento do território e das características e respostas do Cerrado ao fogo. Isso sem falar na relação com as comunidades que já ocupavam a região bem antes de o parque existir.
“Um outro conhecimento foi aberto para a equipe do Parque Nacional, possivelmente um outro patrimônio que só agora conseguimos reconhecer de verdade, que é o patrimônio cultural dessa população em sua convivência com o Cerrado”, disse.
A importância da integração do conhecimento ecológico das comunidades locais também foi citada por Ana Carolina Barradas e por Jeremy Russel-Smith. Mas estes e outros potenciais benefícios do MIF ainda não foram totalmente internalizados por gestores e pela população em geral no país.
Tanto é que, no final de abril de 2024, ICMBio e Serviço Florestal dos Estados Unidos (USFS), com quem o órgão ambiental mantém parceria, promoveram uma oficina de Manejo Integrado do Fogo para jornalistas, para tentar preencher algumas destas lacunas.
A parceria entre governo brasileiro e USFS já dura 30 anos e visa o compartilhamento de experiências sobre prevenção de incêndios, gestão de áreas protegidas e recursos naturais. No Parque Nacional da Chapada dos Guimarães, as atividades também contam com o apoio da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID).
“Conectar o público com a floresta traz benefícios não só de conservação de biodiversidade, mas também para o bem-estar da sociedade. A nossa parceria busca testar, demonstrar e monitorar ferramentas e metodologias para fortalecer o manejo integrado do fogo, a segurança do turismo aliada à educação ambiental para melhorar a experiência do visitante em áreas protegidas”, disse Jayleen Vera, coordenadora geral do Serviço Florestal dos Estados Unidos (USFS) no Brasil.
Foi um importante passo na disseminação da prática. Mas para que ela seja disseminada e alcance os potenciais de preservação da biodiversidade, abatimento de emissões e respeito às práticas culturais, o Brasil precisa acelerar o passo.
“Meu conselho para colegas brasileiros tem sido: escolham uma ou duas áreas de projeto que sejam propícias [à introdução do MIF], façam funcionar e o resto seguirá. Foi isso que aconteceu na Austrália. O projeto inicial de combate a incêndios em grande escala foi um sucesso tão grande que todos tiveram que prestar atenção. Então não vejo nenhum problema [para a implementação no Brasil], além de superar suas aversões regulatórias”, disse Russel-Smith.
*A repórter Cristiane Prizibisczki viajou à Chapada dos Guimarães no final de abril de 2024 a convite do Serviço Florestal dos Estados Unidos
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