Reportagens

Mudanças climáticas interferem no trabalho de campo de pesquisadores e conservacionistas

Secas e a imprevisibilidade das chuvas estão dificultando expedições de campo, comprometendo dados de monitoramento e ameaçando a qualidade da pesquisa de cientistas em diferentes regiões do país

Bernardo Araujo ·
16 de setembro de 2024

Já é ponto pacífico entre a grande maioria dos biólogos e outros cientistas envolvidos com a conservação da vida selvagem que mudanças climáticas são uma ameaça à sobrevivência de muitas espécies no planeta. De vindouras e anunciadas calamidades na escala ecossistêmica a problemas populacionais que já podem estar passando despercebidos em vários lugares, todos os grupos de vertebrados – peixes, répteis, anfíbios, aves e mamíferos – são e serão, ao menos em parte, afetados pelas alterações no clima.

Mas além dos impactos diretos que podem acometer diferentes espécies, as mudanças climáticas interferem diretamente na atividade dos próprios profissionais que buscam pesquisar e proteger esses animais. A tendência à seca e a imprevisibilidade de chuvas, em particular, tem trazido problemas para cientistas.

“A gente perdeu um pouco da previsibilidade que tínhamos anos atrás, décadas atrás”, diz Fábio Origuela, membro do Plano de Ação Nacional (PAN) para a conservação de Rivulídeos.

Rivulídeos são uma família de peixes continentais comumente conhecidos peixes anuais, ou, talvez mais apropriadamente, peixes das nuvens. Eles habitam brejos e poças d’água temporárias – pequenos ambientes aquáticos que desaparecem em períodos secos, e que voltam à vida quando preenchidos por uma quantidade suficiente de chuva – e evoluíram uma estratégia muito particular para isso.

Em momentos de “cheia”, quando esses ecossistemas alagados estão preenchidos com plantas, crustáceos, répteis, anfíbios, moluscos e outras formas de vida, Rivulídeos passam suas curtas vidas se alimentando de tudo que conseguem ingerir, crescendo e, eventualmente, depositando tantos ovos quanto possível no sedimento. Esses ovos sobrevivem ao ressecamento do ambiente, e podem resistir anos antes do próximo período de chuvas, quando as poças voltam a encher de água e de vida, permitindo que os ovos eclodam e o peixe recomece seu ciclo de vida.

Este modo de vida extremamente peculiar traz consequências para a conservação desses peixes. Espécies de Rivulídeos tendem a um certo hiperendemismo – a ter toda sua distribuição concentrada em uma área geográfica muito pequena – o que contribui para que sejam um grupo muito diverso, porém bastante ameaçado. Segundo Origuela, atualmente são mais de 320 espécies descritas no Brasil, e 129 destas já foram avaliadas como ameaçadas ou provavelmente extintas no país.  

E essa existência ligada a efêmeros ambientes alagados também impõe um protocolo muito específico àqueles que desejam trabalhar com esses animais.

“Quando a gente vai para campo, a gente não vai aleatoriamente”, diz Dalton Nielsen, outro pesquisador que integra o PAN dos Rivulídeos e colega de expedições de Origuela. “A gente vai já com um programa determinado porque a gente tem uma noção da ocorrência deles. Geralmente, está relacionada às bacias hidrográficas do país.”

 Mas para encontrar as espécies, especialistas devem contar, antes de mais nada, com a chuva que dá vida às poças onde os peixes vivem.

“A gente se junta, espera o momento propício, como se fosse realmente uma caçada, e a gente sai à caça dessas nuvens, desses locais”, diz Origuela. “A gente tem feito campanhas de maneira regular no noroeste mineiro há pelo menos cinco anos.” A equipe da qual Origuela faz parte visita a região, em intervalos menos regulares, desde 2015, e desde essa época existem espécies que eles não conseguem encontrar.

“A gente chega às vezes no brejo na época que era pra ele estar cheio, e ele está totalmente seco e esturricado”, completa Origuela.

Brejo anual em Janaúba, Minas Gerais. Imagem cortesia de Fábio Origuela.

Em 2024, Nielsen, junto a pesquisadores da Universidade Federal do Pará, fizeram uma expedição ao Rio Iriri, num projeto apoiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do estado. Segundo Origuela, “todas as ações que estavam relacionadas à área do litoral paraense, antes de chegar no Xingu, foram por água abaixo.” As áreas onde eles deveriam localizar os peixes estavam secas, apesar da época supostamente propícia para o trabalho de campo.

“Nos últimos 10 anos a gente está tendo algumas incongruências”, diz Origuela. “Os brejos, eles já não têm mais a regularidade que nós encontrávamos nos anos 90, no início dos anos 2000, na qual a gente chegava nas áreas e naquele período a gente sabia que tinha água.”

Eles também encontram problemas similares em outras regiões. “A gente está tendo problemas também no norte de Minas Gerais, na área de transição Cerrado-Caatinga, nas áreas de Cerrado à oeste, e na bacia do Paracatu e do Urucuia”, conclui Origuela.

E não só a pesquisa com peixes continentais vem sendo afetada por mudanças no clima. Em Rondônia, no município de Costa Marques, o trabalho de Albert Aguiar – especialista em biodiversidade da Permian Brasil, uma empresa de conservação florestal que atua através do mercado de carbono – também tem sido impactado pela seca e pela imprevisibilidade de chuvas.

Aguiar faz parte de um projeto de monitoramento de mamíferos e aves na Reserva Extrativista Estadual Rio Cautário, que se estende pelas duas margens do rio que confere seu nome, próximo à divisa com a Bolívia. Junto à doutoranda Surama Pereira, da Universidade Estadual do Maranhão, e o resto de sua equipe, ele realiza sua pesquisa na área que se encontra do lado do rio que não sofre com impactos de atividade madeireira, e que é mais distante da ocupação humana moderna.

Rio Guaporé em nível crítico, com bancos de areia expostos, em outubro de 2023. Imagem cortesia de Albert Aguiar.

É nessa região que a equipe tenta cobrir a maior diversidade de ambientes possíveis com suas estações amostrais: pontos da mata onde instalam armadilhas fotográficas e gravadores autônomos para registrar e estudar, respectivamente, os mamíferos e aves que habitam a região.

“A gente sai da nossa base com o carro, carregando um barco e motos”, diz Aguiar. “Então a gente percorre cerca de 100 km até uma outra comunidade, onde a gente pega o barco, coloca as motos em cima, desce o rio por 40 minutos, joga as motos pro lado de lá do rio e percorre mais 3 horas e meia de moto pra chegar nas áreas mais distantes de amostragem para colocar os gravadores.”

Todo este trabalho, em 2023, estava programado para acontecer entre outubro e novembro, época em que deveria estar começando a chover na região, fazendo com que os rios encham rapidamente e permitindo a navegabilidade que possibilita o acesso às estações amostrais do estudo. Mas o clima não contribuiu como o esperado.

“Ano passado teve áreas que a gente não conseguiu chegar, não deu tempo. O rio secou mais rápido do que era esperado pelos comunitários, pelas pessoas que moram ali há 30, 40, 50 anos.”

Este ano, a situação parece ainda menos promissora. Em junho de 2023, quatro meses antes do último período de amostragem do projeto, a estação fluvial do Rio Guaporé – rio onde deságua o Cautário, que fornece uma boa medida do nível de água da região – registrava níveis de 900 milímetros, um valor próximo da média histórica registrada para esta época do ano. Este nível eventualmente se aproximaria de seu mínimo histórico – cerca de 400 mm – durante os meses do trabalho de campo de Aguiar. Em junho de 2024, mês em que Aguiar conversou com ((o))eco pela primeira vez sobre essas questões, o nível do rio era de 534 mm, mais de 350 mm abaixo do ano anterior.

“Então, baseado nisso, a gente está tomando uma decisão. O que a gente faz esse ano? Vamos tentar antecipar, porque o rio já está secando em junho?”, diz Aguiar. “Provavelmente a gente vai ver, para a mesma época do ano, isso aqui ainda mais baixo, né? Esses 4 metros que estavam lá em outubro do ano passado, eles devem estar em 2, 3… a gente não tem como prever isso.”

Aguiar lembra que, como sempre, é difícil afirmar com certeza que essa queda no nível dos rios seja por conta de mudanças globais no clima – embora provavelmente seja o caso – ou efeitos como El Ninõ e La Ninã. “É tudo junto, na verdade”, diz.

 O que é certo é que essas alterações impõem um dilema sério para o projeto como um todo. O período de junho, julho e agosto, mesmo com o rio navegável, é um período ruim para a detecção de aves em particular. Idealmente, a amostragem desses animais deveria acontecer a partir de setembro, mas este ano – novamente – não há água suficiente para para o transporte.

“Alguns campos que foram antecipados com acesso via rio e moto não serão acessados”, diz Aguiar, já ao final de agosto. “Não há água suficiente no Rio Cautário para transporte de moto em barco. Assim, são áreas que potencialmente ficarão sem monitoramento, causando um buraco na cobertura temporal.”

Adiar o trabalho também é uma questão complicada, porque ele corre o risco de coincidir com o período chuvoso da Amazônia. Este período ocorre a partir de fevereiro, e também é um momento ruim para a detecção das aves. O excesso de chuva torna os gravadores menos eficientes, fazendo com que eles percam muita informação em relação ao canto dos animais.

“A gente está tentando entender […] como trabalhar, por que é ruim, né?”, diz Aguiar. “A gente tem que ter uma série histórica de monitoramento anual. Obviamente, nem todo ano vai ser igual, […] mas é ideal que a gente mantenha um método; mantenha uma sequência em que a gente consiga, com rigor científico, trabalhar esses dados, e depois passar para a auditoria e certificação de um bom projeto.”

Aguiar teme que esses “buracos”, causados por anos não amostrados, acabem levando seus dados a se tornarem “uma série histórica que vai ser um queijo suíço. Vai ser um labirinto. Cada ano vai ter um problema porque a gente não consegue prever o comportamento normal do clima”, ele conclui.

Vegetação aquática toma conta de trechos do Rio Paraguai devido à seca, impedindo que herpetólogos cheguem aos pontos amostrais de sua pesquisa. Imagem cortesia de Rafael Barros.

Outros ambientes, como o Pantanal, não estão isentos de problemas similares. Rafael Barros é pós-doutorando na Universidade Estadual do Mato Grosso e parte de um grupo de pesquisa que estuda a herpetofauna – répteis e anfíbios – na vegetação ripária do Rio Paraguai. Mas a seca em anos recentes também tem impedido o acesso a pontos amostrais que costumavam ser visitados em expedições passadas.

“Simplesmente, como não inundou, o aguapé [Eichhornia crassipes, planta aquática] praticamente tomou conta”, diz Barros. “Tem esse problema aqui no Pantanal, que, como tem muita vegetação aquática, e o rio tá secando, ela tá se acumulando dentro do rio, e aí não tem como passar.”

Segundo Barros, os pontos que tiveram seu acesso impedido já haviam sido previamente amostrados em 2018 e 2019, e agora os pesquisadores pretendiam fazer o levantamento de variáveis ambientais para tentar relacioná-las com a presença das espécies, na tentativa de entender que fatores estão influenciando a ocorrência ou a ausência delas em cada local. Mas para isso, os cientistas precisam chegar ao ponto exato onde as espécies foram originalmente coletadas.

“E, provavelmente, agora deve estar bem pior, porque tá mais seco ainda o rio, né?”, diz Barros. “Já estou até pensando em mudar o projeto por conta disso.”

Por fim, ele ressalta que há boas chances dessa tendência também afetar outros grupos de pesquisa no Pantanal. “Porque no final das contas eu acho que a maioria dos grupos trabalham assim, mostrando áreas próximas aos rios”, diz Barros. “Se o rio seca fica difícil de acessar.”

  • Bernardo Araujo

    Bernardo Araujo é ecólogo, conservacionista e comunicador científico.

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