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Nova regra deixará trabalhadores da cadeia do cimento mais expostos a poluentes perigosos

Nova resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) amplia possibilidade do uso de elementos químicos em fornos de cimenteiras, mas setor garante controle rigoroso

Emanuel Alencar ·
5 de outubro de 2020 · 4 anos atrás
Cimenteira em Cantagalo: MPF aponta lacuna de dados sobre impactos na saúde pública. Imagem Google/Reprodução

A indústria cimenteira do país está diante de uma polêmica com a aprovação de resolução na ruidosa reunião do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama), do dia 28 de setembro, que prevê a queima de Poluentes Orgânicos Persistentes (POPs) nos processos de fabricação de cimento. A nova norma amplia possibilidades de coprocessamento, que consiste no uso de resíduos na mistura que alimenta a chama do forno de cimenteiras. Com a nova regra, novos elementos químicos podem ser utilizados, desde que aprovados por órgãos licenciadores – normalmente, estaduais. Embora o governo Bolsonaro minimize os possíveis impactos nocivos, pesquisadores ouvidos por ((o))eco veem com preocupação a medida. Eles argumentam que a cadeia da fabricação de cimento tem pontos de gestão muito sensíveis, inclusive com trabalhadores exercendo manualmente algumas funções de mistura de produtos.

Biólogo, mestre em Ciência Ambiental e doutorando em Engenharia Ambiental na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), David Barreto analisou para a sua tese a indústria de mistura dos produtos de coprocessamento de Magé entre 2010 e 2015. Ele adverte que a adição de novos compostos representa um risco aos trabalhadores.

“Temos observado, de fato, uma redução das emissões de CO2 nos processos. Mas não há melhoria da toxicidade humana, da marinha (as indústrias de Magé ficam perto da Baía de Guanabara) e da eutrofização (resultante da poluição) da água nos arredores dessas indústrias. O trabalho de blendagem (mistura) muitas vezes é manual. Escrevi um artigo inclusive recomendando que órgãos de controle de trabalho revejam as normas de modo a automatizar os processos. Agora imagine com o agrotóxico entrando… O impacto vai ser maior”, conta Barreto.

Misturador de cimento tradicional. Foto: Needpix

De Magé, a mistura segue para as cimenteiras do município de Cantagalo, na Região Serrana do Rio, onde três indústrias transformam calcário e argila em clínquer, matéria-prima do cimento. Remontam há décadas os impactos negativos na saúde humana provenientes da queima dos fornos, lembra o engenheiro Ubirajara Mattos, professor do Programa de Pós-graduação em Engenharia Ambiental (Peamb), da Uerj. Em 2010, ele foi um dos autores de um relatório que verificou a necessidade em uma série de ajustes de gestão por causa de passivos no solo, nos rios e na atmosfera de Cantagalo.

“Para reduzir custos de energia, a indústria cimenteira começou a substituir, nos anos 1990, o coque e o petróleo por resíduos industriais e perigosos. Hoje há mais controles [dos poluentes], com a instalação de filtros de manga nas indústrias. Mas o blend [mistura] acaba sendo mais nocivo, pois são fórmulas que têm efeitos de diferentes composições químicas. As partículas variam de tamanho e o órgão ambiental só controla até uma determinada espessura. As muito pequenas não são controladas”, comenta ele, que critica a nova resolução federal: “É uma temeridade a possibilidade de queima de certos materiais cujos impactos são desconhecidos”.

Casos crescentes de doenças respiratórias e câncer

Com 20 mil habitantes, a pequenina Cantagalo, a 200 quilômetros da capital fluminense, possui várias jazidas de calcário e abriga o terceiro maior polo cimenteiro do país, reunindo três grandes grupos: Votorantim, CRH e Lafarge-Holcim. A chapa esquenta para valer nos fornos: a temperaturas de 1.200°C e 1.500°C, o calcário e a argila viram cimento, com o uso de resíduos diversos. Dentro dos fornos, parte dos materiais poluentes é destruída pelas altas temperaturas, uma segunda parte é incorporada ao clínquer, e uma terceira é dispersa juntamente com as emissões atmosféricas e com o produto final.

As empresas veem no coprocessamento uma forma sustentável de produção – pois elimina rejeitos, retirando-os do ambiente. Mas os enormes passivos ainda persistem e faltam nos licenciamentos, a cargo do Instituto Estadual do Ambiente (Inea), estudos suficientemente amplos e de profundidade técnica que demonstrem a extensão dos impactos das atividades das cimenteiras na natureza, diz o procurador do Ministério Público Federal Paulo Cezar Calandrini Barata, que atuou por três anos na região de Nova Friburgo.

Barata lembra que são poucos os elementos concretos para avaliar os impactos da indústria do cimento na atividade produtiva e na saúde humana do trabalhador e da população local. Ele acrescenta que a própria prefeitura de Cantagalo admite crescimento recente de casos de pessoas com doenças respiratórias e câncer na cidade.

“Existe uma crescente de casos de doença respiratória e de câncer associados à atividade cimenteira no distrito de Euclidelância, em Cantagalo. Doenças que não costumavam acontecer e passaram a aparecer. São estarrecedores os casos de subnotificação”, diz o procurador, que instaurou procedimento de investigação. “É um problema silencioso. A cidade vive das cimenteiras, ninguém reclama. Quando há estudos acadêmicos, falta pessoal e dinheiro”.

Sede da Votorantim Cimentos no município de Cantagalo (RJ). Imagem: Google/Reprodução

David Barreto, que fez análise do ciclo de vida dos produtos usados em cimenteiras no Rio, ressalta que a melhor destinação de embalagens de agrotóxicos deve dispensar as cimenteiras. “O Brasil tem uma cadeia de logística reversa de embalagens de agrotóxicos bem estruturada. A dúvida que eu tenho é: mandar essas embalagens para incineração é o melhor, do ponto de vista ambiental?”, questiona.

((o))eco entrou em contato com a secretaria de Comunicação do prefeito de Cantagalo, Guga de Paula (PP), mas não obteve retorno.

MMA: processo muito bem controlado

Ao rebater as críticas e preocupações dos ambientalistas durante a reunião do Conama, o secretário de Qualidade Ambiental do Ministério do Meio Ambiente, André França, disse que não há motivos para preocupação e que a medida não representa um “liberou geral” nos fornos de cimenteiras.

“Não é assim, a empresa pode queimar o que quiser. São vários passos que a empresa deve seguir para conseguir a autorização de produtos de outras naturezas. O processo é muito bem controlado. Inclusive a nova norma adiciona procedimentos mais claros e objetivos. Quanto a material particulado, por exemplo, estamos reduzindo de 70 para 50ml por Nm³. E estabelecendo de forma inédita limites para toxinas e furanos”, defendeu.

Em nota, a Associação Brasileira de Cimento Portland (ABCP) informou que a “resolução foi tecnicamente discutida e aprovada em reuniões anteriores da Câmara Técnica De Controle e Qualidade Ambiental e Gestão Territorial, composta por representantes de entidades empresariais e ambientalistas (ONGs) de âmbito nacional e dos governos federal, estaduais e municipais”. Defende ainda que a modernização e publicação da resolução para atividade de coprocessamento fomentará um “ecossistema muito mais sustentável”. “A partir desta ação, a indústria do cimento pretende reduzir 30% do total de emissões de CO2 até 2050 e substituir 55% do combustível fóssil, promovendo a reciclagem, a vida útil dos aterros sanitários e a erradicação dos lixões, gerando renda e qualidade de vida aos brasileiros”.

A reportagem pediu uma entrevista com representante da ABCP, que reúne dez empresas do setor, mas a entidade informou que só se pronunciaria por meio de nota.

Na reunião que aprovou a resolução, o único voto contrário foi o do ex-procurador Geral de Mato Grosso, Carlos Teodoro Irigaray, representante da Associação Novo Encanto de Desenvolvimento Ecológico. O secretário do Ambiente e Sustentabilidade do Rio, Altineu Cortes, ficou em silêncio: era o indicativo de que votou a favor.

Atualização: a nova resolução foi publicada no Diário Oficial da União na edição de 08/10. Acesse aqui a Resolução Conama/MMA nº 499 e leia na íntegra.

 

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  • Emanuel Alencar

    Jornalista e mestre em Engenharia Ambiental. É autor do livro “Baía de Guanabara – Descaso e Resistência” (Mórula Editorial) e assessor de Comunicação na Prefeitura do Rio

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